Ti’
Zé, lembra-se bem do S. Martinho, quando há muitos anos, de verruma em punho,
ia abrir um orifício na madeira do pipo, de onde sairia, de certeza certa, um
belo vinho. Bebido o copo, com sincera reverência, apesar de não tirar o boné,
tapava o buraco com um olhar embevecido, pois ele bem sabia que ali estava o
produto da sua lavra de um ano, com aroma e paladar inconfundíveis em qualquer
parte do Mundo. Vinho não há melhor de que o das encostas da Castanheira ou dos
Montes, “terra de muito vinho e poucas
fontes”. E disso lá ele percebia…
Antes
do S. Martinho, há uma data e um momento, muito relevantes no sentimento
popular. No dia 2 de Novembro multidões, como que procissões, visitavam o
cemitério, talvez mais conscienciosamente que hoje, as campas dos seus mortos.
Ao final do dia, já se encontravam muitas velas a arder.
Aquela
data não foi escolhida ao acaso. A Igreja Católica celebra no dia 1, “Todos os Santos”, e no dia 2, os “Fiéis Defuntos”. Hoje em dia, por ser
mais prático, juntam-se as duas efemérides. O culto dos mortos, no dia que lhes
é dedicado, traduz-se em ritos nem sempre iguais, embora com o comum da romagem
ao cemitério, a colocação de flores e velas sobre as campas. Esta é uma prática
corrente, tais celebrações, costumes e crenças existem em todos os países da
Europa, onde se acredita, embora com variantes, que “no dia consagrado aos mortos as suas almas, isoladas ou em grupo,
visitam na terra os lugares que habitaram em vida. Moisés Espírito Santo,
escreveu que desde os tempos mais
arcaicos, anteriores ao cristianismo, que os mortos eram celebrados no
princípio do inverno. O frio, a chuva, as sombras, tudo isto contribui para a
relação entre o inverno e a morte, época dos frutos secos (figos, nozes, uvas
passas, castanhas). O fruto seco é um fruto morto. É a morte da terra que também
tem como simbolismo a morte das pessoas. O culto dos mortos e os seus rituais
também têm o efeito de acalmar. São uma recompensa por todas as injustiças que
lhes possam ter sido feitas em vida. Apaziguar a memória, o espírito dos mortos
é próprio de todas as sociedades”.
Crentes,
menos crentes e não-crentes recordam, sem sentimento mórbido ou de luto, os que
já partiram, em gestos traduzidos por um simples ramo de crisântemos, uma
oração ou mesmo pelo simples recolhimento frente à sepultura. “Basta um ramo de flores, não é preciso um
braçado”, dizia-se no Porto em casa de meus Pais. Ramos e vasos de flores,
das mais variadas qualidades, cores e tamanhos, velas grandes, pequenas,
brancas, vermelhas, amarelas, lamparinas, castiçais ou pequenas taças de cera.
Tudo isto e, muito mais, é colocado ao dispor das pessoas, nas semanas que
antecedem o um ou dois de Novembro. O momento é de comprar velas, encomendar
flores, porque o que importa é deixar as campas das familiares (“é a voz do sangue”, lembrava-me a minha
Mãe, “sabes estão ali pessoas (os
avós), sempre muito por nós queridas”)
devidamente ornamentadas para o grande dia. Gestos que marcam a saudade dos que
já não pertencem ao número dos vivos, do resto da família desaparecido, e dos
amigos. Em cada recanto, depara-se com a fotografia de um conhecido, que traz à
memória recordações, algumas longínquas outras bem mais próximas, uma lágrima
teimosa que não se consegue reter.
A
visita ao cemitério nesse momento não significava nunca um sacrifício para cada
um que lá vai. Pelo menos fui assim habituado a pensar ou sentir. Não é uma seca. Antes, revela a sensibilidade
humana, muito portuguesa, perante o mistério da morte, a condição mortal do
homem.
A
comemoração dos defuntos está de há muito na sequência da solenidade de “Todos os Santos”. Nesta festa, põe-se em
relevo o exemplo de um sem-número de cristãos, cujo nome desconhecemos, mas que
procuraram, na existência terrena, a santidade. Gente de carne e osso que levou
uma vida normal, no meio de angústias, desilusões, traições, alegrias, sofrimentos
e privações. E, para quem a morte era, apenas, a passagem para uma outra vida,
sem fim. O “Dia dos Defuntos”, obriga
ainda que de forma fugaz, a olhar para o que é cada um. Questiona-nos sobre a
brevidade dos dias que se vivem. E a considerar que se torna urgente dar um
verdadeiro sentido à vida incerta. Não por medo, mas por uma fidelidade às
convicções de consciência. O “Dia dos
Fiéis Defuntos”, para mim agora na
província (Alcobaça) ou antigamente na cidade (Porto), será sempre um momento importante
na minha formação e, claro, portuguesa.
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