sexta-feira, 10 de março de 2017

TODOS OS SANTOS




Ti’ Zé, lembra-se bem do S. Martinho, quando há muitos anos, de verruma em punho, ia abrir um orifício na madeira do pipo, de onde sairia, de certeza certa, um belo vinho. Bebido o copo, com sincera reverência, apesar de não tirar o boné, tapava o buraco com um olhar embevecido, pois ele bem sabia que ali estava o produto da sua lavra de um ano, com aroma e paladar inconfundíveis em qualquer parte do Mundo. Vinho não há melhor de que o das encostas da Castanheira ou dos Montes, “terra de muito vinho e poucas fontes”. E disso lá ele percebia…
Antes do S. Martinho, há uma data e um momento, muito relevantes no sentimento popular. No dia 2 de Novembro multidões, como que procissões, visitavam o cemitério, talvez mais conscienciosamente que hoje, as campas dos seus mortos. Ao final do dia, já se encontravam muitas velas a arder.
Aquela data não foi escolhida ao acaso. A Igreja Católica celebra no dia 1, “Todos os Santos”, e no dia 2, os “Fiéis Defuntos”. Hoje em dia, por ser mais prático, juntam-se as duas efemérides. O culto dos mortos, no dia que lhes é dedicado, traduz-se em ritos nem sempre iguais, embora com o comum da romagem ao cemitério, a colocação de flores e velas sobre as campas. Esta é uma prática corrente, tais celebrações, costumes e crenças existem em todos os países da Europa, onde se acredita, embora com variantes, que “no dia consagrado aos mortos as suas almas, isoladas ou em grupo, visitam na terra os lugares que habitaram em vida. Moisés Espírito Santo, escreveu que desde os tempos mais arcaicos, anteriores ao cristianismo, que os mortos eram celebrados no princípio do inverno. O frio, a chuva, as sombras, tudo isto contribui para a relação entre o inverno e a morte, época dos frutos secos (figos, nozes, uvas passas, castanhas). O fruto seco é um fruto morto. É a morte da terra que também tem como simbolismo a morte das pessoas. O culto dos mortos e os seus rituais também têm o efeito de acalmar. São uma recompensa por todas as injustiças que lhes possam ter sido feitas em vida. Apaziguar a memória, o espírito dos mortos é próprio de todas as sociedades”.
Crentes, menos crentes e não-crentes recordam, sem sentimento mórbido ou de luto, os que já partiram, em gestos traduzidos por um simples ramo de crisântemos, uma oração ou mesmo pelo simples recolhimento frente à sepultura. “Basta um ramo de flores, não é preciso um braçado”, dizia-se no Porto em casa de meus Pais. Ramos e vasos de flores, das mais variadas qualidades, cores e tamanhos, velas grandes, pequenas, brancas, vermelhas, amarelas, lamparinas, castiçais ou pequenas taças de cera. Tudo isto e, muito mais, é colocado ao dispor das pessoas, nas semanas que antecedem o um ou dois de Novembro. O momento é de comprar velas, encomendar flores, porque o que importa é deixar as campas das familiares (“é a voz do sangue”, lembrava-me a minha Mãe, “sabes estão ali pessoas (os avós), sempre muito por nós queridas”) devidamente ornamentadas para o grande dia. Gestos que marcam a saudade dos que já não pertencem ao número dos vivos, do resto da família desaparecido, e dos amigos. Em cada recanto, depara-se com a fotografia de um conhecido, que traz à memória recordações, algumas longínquas outras bem mais próximas, uma lágrima teimosa que não se consegue reter.
A visita ao cemitério nesse momento não significava nunca um sacrifício para cada um que lá vai. Pelo menos fui assim habituado a pensar ou sentir. Não é uma seca. Antes, revela a sensibilidade humana, muito portuguesa, perante o mistério da morte, a condição mortal do homem.

A comemoração dos defuntos está de há muito na sequência da solenidade de “Todos os Santos”. Nesta festa, põe-se em relevo o exemplo de um sem-número de cristãos, cujo nome desconhecemos, mas que procuraram, na existência terrena, a santidade. Gente de carne e osso que levou uma vida normal, no meio de angústias, desilusões, traições, alegrias, sofrimentos e privações. E, para quem a morte era, apenas, a passagem para uma outra vida, sem fim. O “Dia dos Defuntos”, obriga ainda que de forma fugaz, a olhar para o que é cada um. Questiona-nos sobre a brevidade dos dias que se vivem. E a considerar que se torna urgente dar um verdadeiro sentido à vida incerta. Não por medo, mas por uma fidelidade às convicções de consciência. O “Dia dos Fiéis Defuntos”, para mim agora na província (Alcobaça) ou antigamente na cidade (Porto), será sempre um momento importante na minha formação e, claro, portuguesa.

Sem comentários: