Não tenha pena, caro leitor,
de quem trabalha à noite. E, seja como for, não tenha pena de mim, pois sou uma
dessas pessoas.
Para quem trabalha à noite
numa cidade, as horas que antecedem a aurora podem ser quase líricas. O
trabalho seria glorioso se pudesse ser feito nestas horas suaves, em que o dia
vai surgindo aos poucos. Nas ruas, os automóveis apagam os faróis à medida que
a luz começa a nascer no oriente. As ruas e edifícios parecem mais limpos,
calmos e promissores. Nunca há raiva numa cidade ao alvorecer. Ela é calma e
maternal. Os prédios abrigam pessoas adormecidas.
O que é que acontece? Não se
pode negar que a agitada cidade de Lisboa que vemos das 9h às 18h perdeu a
rósea promessa da alvorada. As ruas e edifícios ficam feios e ameaçadores. Na
hora de ponta, todos se mostram ansiosos. À luz impiedosa do sol, as pessoas
revelam o que há de pior em si. O dia pode ter sido bom, mas parece fatigado à
medida que as pessoas o vão dando por terminado.
Como trabalhadores noturnos,
devemos-nos preocupar em não demonstrar superioridade relativamente aos que
trabalham de dia. Na verdade, não somos melhores que os outros… isto é, penso
que não. Mas o ato de ir solenemente para o trabalho, enquanto os outros estão de chinelos a ver televisão, a beber um
copo, ou a jogar cartas, cria-me a sensação de uma puritana devoção, como se
fossemos os únicos do mundo, verdadeiramente responsáveis. Devemos ter uma
força de vontade quase desumana, para não nos sentirmos hipócritas quando
declinamos um convite para um jantar num restaurante da moda ou ir a uma vernissage, com aquele invencível
argumento Desculpe, mas tenho de
trabalhar. Foi aliás o que me aconteceu na semana passada, quando tive de
preparar um artigo para enviar ao meu amigo JERO. Mas ele, pessoa de
extraordinário bom senso, compreendeu-me.
As pessoas, em geral, tendem
a ser mais gentis à noite. Senão, vejamos o tom dos programas de televisão, que
de dia passam com berreiro e à noite são transmitidos com deliciosa casualidade
e em lugar do espetáculo, tem a subtileza do comentário fino do Jerónimo ou da mera observação da Catarina.
Creio que a mente criativa
funciona melhor durante as horas de treva, sem as perturbações do ritmo intenso
do dia. A imaginação funciona melhor quando a distância já não está limitada
pela paisagem visível do dia e se estende pelo firmamento das estrelas
iluminadas por lâmpadas celestiais, distando milhões de anos-luz, pelos escuros
corredores do espaço. Os céus não dão apenas testemunho da glória de Deus, mas
também brincam com certos cálculos. De noite, o espaço é ilimitado e o tempo
adquire uma outra dimensão. Ideias que de dia parecem ambiciosas, absurdas, são
mais plausíveis quando vistas em relação à esplêndida geografia dos céus, e as
frustrações baseadas nas amarguras, deixam de parecer definitivas. Depois de
dormir já há vários anos até, pelo menos ao início da tarde, só consigo
reconciliar-me com a realidade ao fim do dia de sol.
Convenci-me que é muito
melhor levantar-me quando acabo de
dormir, livre da tirania do despertador madrugador. Tenho pensado se o
lazer, não deveria vir antes do viver (tenho que propor isto ao Dr. Costa) para
que este pudesse ser enfrentado com mais resignação, neste tempo de crise.
Ninguém deveria partir para o trabalho do dia-a-dia, de forma mecânica. Deixem
que se pense na possibilidade de fazer alguma coisa diferente ou útil, antes do
fim do dia. É agradável não ter de mergulhar, furiosamente, no horário de
trabalho que, sendo automático e pré-fixado, não deixa margem de manobra à
improvisação.
A melhor hora de trabalhar é,
pois, caro leitor e acredite no que digo, depois do crepúsculo, já que a
paciência não é pressionada pelas solicitações do mundo lá fora. Afinal, quem
inventou o costume de trabalhar durante o dia, cometeu um grave erro e pelo que
espero que o Dr. Costa, o Jerónimo e a Catarina o venham a corrigir...
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