-PROBLEMAS DA JUSTIÇA-
A credibilidade da
justiça portuguesa, na viragem do século XIX, estava a tornar-se preocupante,
no que parece ser uma insanável fatalidade nacional.
O
alegado descrédito da justiça não dependia, tão só, de as leis serem, más ou
confusas.
Dependia
já, diziam os republicanos, do clientelismo/caciquismo, do arrastamento dos
processos, dos julgamentos e condenações na praça pública como aconteceu na
Comarca de Alcobaça, em 1902 e 1906, com duas acusações por crimes graves, que
se revelaram infundadas e os réus absolvidos, sem que nada tenha acontecido aos
responsáveis Elvira Clementina, de Évora de Alcobaça (despeitada por um marido
infiel) e Damião Sousa (um vingativo proprietário do Vimeiro), que arruinaram
ou deixaram manchas inapagáveis na reputação de pessoas inocentes.
Por tudo isto, entendiam os republicanos, na
oposição, que a crise da justiça constituía um círculo vicioso, e a sua
resolução era considerada prioridade para a evolução do País, a par da
educação/instrução. A crise da justiça era
(segundo os mesmos), uma crise da educação/instrução.
O Semana Alcobacense (abril de 1906),
congratulava-se com as propostas do Ministro da Justiça que denotavam (…) uma qualidade que os senhores políticos da
monarchia persistentemente mostram não possuir (…) e que (…) não servem os
interesses do Padre Matos ou da caterva que o acompanha (…). As propostas
de lei do Ministro da Justiça ao Parlamento/Cortes que acabaram por não ter
sequência, pois que caíram antes de serem aprovadas, por entretanto ter sido
empossado o governo de João Franco, referiam-se a responsabilidade ministerial, corecção de menores delinquentes, jury
criminal, liberdade de imprensa (extinção do gabinete negro, prohibição de
censura prévia e da apreensão de jornaes), processo criminal (tornar o jury
criminal mais perfeito, resolver a questão do juramento que será feito sob a
honra ou segundo a religião de cada um) várias providências sobre a organização
judiciária.
O mesmo semanário, louvava e admirava estas
propostas do titular da pasta da Justiça, salientando que quando na oposição os políticos não se cansam de
fazer promessas de administração honesta, intelligente e liberal, porém chegados
que são ao poder, esquecem e renegam todos os seus promettimentos, sem nenhum
respeito por si próprios nem pelos outros.
-OS
JURADOS-
Interessando-se pelos problemas da Justiça e
do júri em particular, o mesmo semanário (apesar de o seu diretor não possuir
formação jurídica para além de uma breve passagem por Coimbra), voltava ao tema
e referia que ocorre-nos perguntar: está
o júri organizado em Portugal de modo a oferecer a sólida garantia de justiça
que é licito esperar dele, mais, que dele devemos exigir? Nós dizemos que não.
Pode ser que tenhamos contraditores, que com bons argumentos venham rebater a
nossa opinião; mas, enquanto isso se não der, de forma a deixar-nos
absolutamente convencidos de que laboramos num erro grave, não teremos outra
resposta para essa interrogação. É tão alto, tão complexo o papel do júri
criminal, que, para que ele possa corresponder cabalmente á nobilíssima ideia
que determinou a sua criação, entendemos dever presidir á escolha dos elementos
a constituí-lo, o máximo escrúpulo, o mais são critério, toda a inteligência e
imparcialidade.
-A
CADEIA-
Mário Ferreira da Rocha Calisto, Delegado do
Procurador da República e Diretor da Repartição de Investigação, junto da
Polícia Cívica de Lisboa, em 1912 publicou o opúsculo A Comarca de Alcobaça,
nos annos de 1905 a 1911, onde fazia acusações muito graves ao funcionamento do
Tribunal e Cadeia Comarcã, instalados (em más condições) na Ala Norte do
Mosteiro, respetivamente no primeiro andar e rés-do-chão.
A cadeia, como vinha denunciando Calisto,
não tinha condições nem segurança, pelo que não era rara, a evasão de detidos.
A fuga ocorrida em julho de 1914, teve um impacto especial. Doze presos,
arrombaram numa noite de sexta-feira para sábado, as grades da janela da cela
que dava para o Rossio, obrigando os companheiros a vir também para a rua. Só
na manhã de sábado, as autoridades tomaram as providências conducentes à
captura dos fugitivos. Seis deles, apresentaram-se pouco depois ao carcereiro
que ficou perplexo, mas os restantes continuaram ao largo, com pouca vontade de regressar à hospedaria. Este acontecimento,
mais uma vez, fez reconhecer a imperiosa necessidade de a cadeia ter uma guarda
permanente (o carcereiro ao fim do dia ia para casa e só regressava de manhã),
de modo a prevenir e evitar a repetição de acontecimentos dessa natureza.
Esta fuga não foi única, nem a primeira. Por
volta das três horas de 7 de novembro de 1901, seis presos na cadeia comarcã,
depois de serrarem as grades da janela da cela, abrirem a porta de madeira da
janela com uma chave feita a partir de um garfo e compeliram os demais a
acompanhá-los. Uma vez na rua, antes de rumarem a um qualquer destino,
dirigiram-se para a rua D. Pedro V, a fim de assaltar o estabelecimento de
venda de produtos alimentares do comerciante José Manuel Peça, o que não
conseguiram por a porta ter resistido. Nove dos fugitivos (como no episódio
anterior), ter-se-ão arrependido pelo que, ao raiar do dia, foram bater à porta
da cadeia mesmo antes da chagada do guarda. Informados do sucedido, o Delegado
do Procurador Régio e o Secretário da Administração do Concelho, Rafael Pinto
Eliseu, trataram de adotar as medidas que o caso reclamava, pelo que este, logo
de manhã pelas 10 horas, acompanhado por um polícia, deu busca a um bordel
muito frequentado e às tabernas da vila e redondezas, sem esquecer as casas de
família dos fugitivos. Informado por umas peixeiras, de que um dos fugitivos
fora visto a dirigir-se a pé na estrada para a Nazaré, Rafael Pinto Eliseu para
aí rumou na companhia de um polícia e de um oficial da Administração,
capturando-o facilmente, pois não ofereceu resistência. Nesse momento, o
fugitivo confessou-se aliviado por ter terminado a aventura e indicou a Venda
das Raparigas como a direção que os outros tomaram. Assim, as autoridades para
lá se dirigiram, pelo que na Charneca da Memória do Rei, eram presos pouco
depois, o ex-sacristão e ex-seminarista Bispo
e o serralheiro Lagarto, mentores da
operação e tidos como os mais perigosos, com fome e sem oferecerem resistência.
Por estarem armados, foram conduzidos com escolta militar para Rio Maior, não
sem ainda haverem esclarecido que havia companheiros de fuga escondidos na
Rabaceira. Expedido um telegrama para o Administrador do Concelho de Caldas da
Rainha, este não fez demorar as providências, pelo que, no dia seguinte, era
recebido na Administração do Concelho em Alcobaça uma informação telegráfica
dando conta da prisão dos fugitivos. O Bispo
e o Lagarto vieram a ser condenados
no Tribunal de Alcobaça a pesada pena, seguida de degredo em Angola, de onde ao
que se saiba não regressaram.
No segundo domingo de julho de 1909, cerca
das 14 horas, o perigoso António dos Santos, o talhante Milheiro, que tinha sido condenado em pena maior, por um sádico
crime de homicídio utilizando uma faca para abater suínos, evadiu-se da prisão
da vila, de uma forma engenhosa e pouco de previsível.
Enquanto se achava no claustro da prisão,
com outros presos a receber visitas, o carcereiro preparou-se para ir levar ao
Quartel as latas vazias para serviço da alimentação dos presos, pelo que
colocou o tabuleiro à cabeça e dirigiu-se para a porta de saída, vindo o Milheiro logo atrás e muito junto a ele,
sem que tivesse sido notado, pois usava alpercatas que lhe abafavam o ruído dos
passos. O preso assistiu ao abrir e fechar da porta, acompanhou os passos e
movimentos do carcereiro saindo ambos para a rua, onde aguardou a ida do
carcereiro para o quartel, encostado a porta da prisão a fumar um cigarro.
Passado pouco tempo, atravessou o Rossio a fingir contar dinheiro para
disfarçar e não despertar espanto e seguiu pela Travessa da Cadeia
desaparecendo.
Como se alimentavam os presos?
Há poucas descrições do que era a vida
prisional no País, mas as que existem ou a ideia que se recolhe, é pouco
abonatória, tal como decorre de algumas conversas com o alcobacense Manuel Carcereiro. Em muitos casos, era uma
pequena broa muito dura e duas malgas de caldo aguado, num ritmo quotidiano e
imutável. Os que tinha mais recursos ou família, defendiam-se melhor, sem
prejuízo de por vezes terem de dar uma comissão em géneros ao guarda ou
carcereiro.
Quando o carcereiro regressou do quartel,
constatou a evasão do Milheiro e,
apesar das providências imediatamente adotadas e das pistas seguidas, apenas na
noite de terça para quarta-feira, por volta da hora de jantar, foi capturado no
lugar de Salgado/Famalicão da Nazaré, em casa de José Maria Saraiva seu
cunhado, também talhante que foi preso como cúmplice, dando ambos entrada na
cadeia mal chegou o carcereiro.
A captura efetuou-se no momento em que o Milheiro estava a contar ao Saraiva e à
mulher, com calor e entusiasmo, a forma como tinha praticado à facada o
homicídio de um vizinho, que lhe devia 30 reis desde a Páscoa!
Esta captura foi devida às prontas e
acertadas providências tomadas pelo Delegado do Procurador Régio Dr. Mário
Calisto, ao auxílio dos Administrador do Concelho e Secretário, bem como das
forças policiais requisitadas. O Milheiro
veio a ser condenado a 20 anos de prisão e degredado para África, de onde
ao que consta não terá regressado.
Estava ainda muito longe o tempo de haver
condições para que os presos da cadeia de Alcobaça tivessem a sua Festa de Ano
Novo, como veio a acontecer em 1921, em que uma comissão composta pelo Delegado
do Procurador da República/Almeida Ribeiro, Administrador substituto do
Concelho/Joaquim Ferreira da Silva e o Solicitador encartado /Manuel da Silva
Carolino (mais tarde polémico Presidente da Câmara, muito conotado com o Estado
Novo), tomou a iniciativa de lhes oferecer um jantar na sala de audiências do
tribunal. A sala recebeu funcionários judiciais, das finanças, do município,
advogados e algum público, tendo durante o jantar atuado com agrado a Banda de
Alcobaça, paga com a refeição. No fim
do jantar, subiu à tribuna Almeida Ribeiro, que agradeceu as cerca de 20
presenças, e particularmente, as da Banda. A instâncias de alguns amigos, o Dr.
Alberto Vila Nova, referiu o significado da inédita iniciativa, já que não era
conhecido no País algo semelhante, que prestigiava a comarca e a justiça, conseguindo com a sua palavra fluente e
burilada tocar a sensibilidade dos próprios presos, como o testemunharam as
lágrimas que dos seus olhos nessa ocasião se desprenderam em abundância.
Na antiga Sala das Conclusões do Mosteiro,
funcionou a Repartição de Finanças e a cadeia comarcã, como se referiu. Neste espaço decorriam os atos que não fossem de
caráter religioso como assinaturas de acordos, escrituras ou testamentos. Até
aos princípios do séc. XVII, estiveram nesta sala as estátuas de alguns Reis de
Portugal que, a partir do séc. XVIII, passaram para a denominada Sala dos Reis.
A partir do séc. XVIII na Sala das Conclusões tinham lugar os encontros com
convidados importantes dos Abades. Na pedra de duas janelas que dão para
a atual Praça 25 de Abril, encontram-se gravadas umas inscrições feitas por
presos, de que se destacam duas, uma de 1911 e outra de 1921, esta da autoria
de José de Sousa, de Valado de Frades, que entrou em 23 de junho de 1921, pelas
6 horas que ainda encontrou na prisão, José Verdasca, dos Montes, que havia
anavalhado Francisco Miguel no ventre, que veio a falecer no Hospital de
Alcobaça, sem possibilidade de ser transferido para o de S. José em Lisboa.
-UMA
AZEDA POLÉMICA-
Segundo o Delegado do Procurador Régio Dr.
Mário Calisto, ao deparar-se com o cancro
voraz que era o estado de coisas que não conseguiu exterminar, apesar dos
seis anos de exercício no Tribunal de Alcobaça, ao ser transferido para outra
comarca quis deixar uma explicação pública sobre atos que tão fortemente o prendiam aos haveres dos desgraçados e que abusos
inverosímeis deixaram crear e engrossar.
Na opinião do Dr. Calisto, o Tribunal de
Alcobaça encontrava-se completamente
indisciplinado e, sobretudo, inteiramente desmoralizado. E nem outra coisa era
de esperar, visto os processos que se empregaram para evitar a minha ação
fiscalizadora. De acordo com a opinião do mesmo magistrado do M.P.,
procurou-se criar, por todas as formas possíveis, entre o pessoal do tribunal,
uma atmosfera de antipatia para com ele, dado que não se amoldava a
determinadas pretensões, pelo que, sendo tal impossível dentro da Lei, saltava-se para fora dela. Os escrivães, vieram dar a Resposta dos Escrivães da Comarca de
Alcobaça ao Pamphleto do Doutor Mário Ferreira da Rocha Calixto. Segundo os
escrivães, Mário Calisto ex-predialista (expressão
cujo sentido se desconhece),
ex-teixeirista (a 27 de junho de 1910 tomou posse o último governo da
monarquia, presidido pelo chefe formal dos regeneradores Teixeira de Sousa, com
o apoio dos dissidentes progressistas e que terá colhido simpatias de Calisto,
apesar de se dizer republicano),
ex-Delegado do Procurador da República na Comarca de Rezende, ex-Delegado do
Procurador da República (melhor dizendo, Régio pois isso foi no tempo da
monarquia) nesta Comarca de Alcobaça e
atual e prestimoso membro do Centro Radical Democrático de Lisboa, titulo que
lhe conferiu o atual cargo, também chefe da Repartição de investigação junto da
polícia civil de Lisboa, o Bacharel em Direito, Mário Ferreira da Rocha
Calixto, teve ensejo de dar expressão ao seu ódio ao funcionalismo judicial
desta Comarca, única faculdade que sempre cultivou à sua vontade enquanto
infelizmente o cargo de Ministério Publico aqui.
Numa linguagem inusitadamente violenta, os escrivães mais lhe apontavam o
amontoado de dislates e de falsas apreciações, onde cada frase é uma punhalada à falsa fé, por quem continua
a procurar sujar com a baba peçonhenta,
sem vacilar no lançar mão da pior arma que qualquer criatura pode empregar, a
falta de verdade no que diz, criando sempre uma atmosfera de suspeições
(Calisto nesse entendimento seria dúplice, simultaneamente republicano e
monárquico), abusando da ignorância e falta de conhecimento dos serviços
judiciais por parte de pessoas estranhas à classe e a quem mistificou com a frase empolada de mulher virtuosa que nem
sempre o fora, abusando o seu cargo na Comarca e da fortuna pessoal que
aqui veio pescar (Ao que parece estariam eles a referir-se ao
casamento com Maria da Luz Raposo de Magalhães, filha de José Eduardo Raposo de
Magalhães). Daí os
republicanos, como o advogado e dirigente local José Joaquim Cardoso e o
advogado monárquico Freitas da Cunha, eventualmente outros mais, sentirem
necessidade de reclamarem atenção sobre a conduta pessoal e funcional dos
magistrados em geral, sem propriamente se dirigirem ao Dr. Calisto, em ordem a evitar que ao receber, de modo
inapropriado, auxílios, contribuições ou benefícios de pessoas físicas, de
entidades públicas ou de empresas privadas, inclusive daquelas que figuram em
processos judiciais, desrespeitem os valores que condicionam o exercício
honesto, correto, isento e independente da sua função.
Mário Calisto não mantinha
grandes relações de tipo pessoal, com o juiz da comarca, o estimado Dr. José
Pereira Zagallo, com os advogados que habitualmente trabalhavam no tribunal,
muito menos com os escrivães.
A título de curiosidade refira-se que o Dr.
José Pereira Zagallo teve uma afetuosa
despedida, quando foi tomar posse na comarca de Águeda. Além dos
funcionários judiciais, outras pessoas acompanharam-no à estação de Valado de
Frades (entre estes não se encontrava o Dr. Calisto), manifestando-lhe não
apenas a estima pessoal, mas também o apreço como desempenhou em Alcobaça as
funções judiciais, durante quase sete anos. Dias antes, fora realizado em
Alcobaça no Hotel Central, um banquete de despedida, oferecido por funcionários
do Tribunal, Delegado do Procurador da República (neste caso, ao que parece,
por mero dever de ofício, pois tratava-se de Mário Calisto), Advogados,
Autoridades civis, militares, Pároco e Amigos, num total de perto de 40
pessoas. Antes do banquete, os convivas foram fotografados em grupo por Carlos
Gomes (Fotografia Rebelo), no Claustro de D. Dinis. Para substituir o Dr. José
Zagallo, foi nomeado o Dr. Barata do Amaral, sendo a interinidade do lugar
entregue ao alcobacense Augusto Rudolfo Jorge.
Mário Calisto era tido como
pessoa reservada, embora por vezes colérico, pouco visto na rua, nesse caso
normalmente acompanhado pela esposa Maria da Luz ou filha Maria Fernanda de
tenra idade, salvo quando ia ao Centro Republicano, o que não acontecia com regularidade.
Quando passava por algum conhecido, levantava a cartola e estugava o passo
miudinho, pois de outro modo andava devagar. Não saía de casa sem chapéu alto,
fraque e bengala. Ao que consta, eram reduzidas as suas relações com a família
da esposa Raposo de Magalhães, embora nela se assumissem todos como
republicanos.
Mas no caso do Dr. Calisto, o
nível da sua militância era vista com algumas reserva e o incidente com os
escrivães, não foi bem aceite.
A cultura judicial, assim se dizia no meio,
deveria pautar-se pela contenção verbal, pela discrição de atitudes e pelo
rigor profissional o que, em geral, é timbre dos servidores da causa da
Justiça, pelo que a polémica surpreendeu advogados e outros agentes da justiça,
mesmo fora de Alcobaça. Este tipo de
polémica era raro em Portugal e, em Alcobaça ou mesmo no Distrito, não havia
memória de algo semelhante, muito especialmente com a intervenção de um
magistrado. Mas como tudo na vida, também ocorreu a insuspeitável exceção….
Os advogados (como o autor deste texto sabe,
pois conhece os ardores da profissão), utilizam por vezes nas audiências uma
linguagem mais forte, o que em geral não põe em causa as relações de respeito
pessoal e profissional. Havia alcobacenses que, quando sabiam irem estar em confronto
o monárquico Dr. Freitas e o republicano (militante) Dr. José Joaquim Cardoso,
subiam as escadas de acesso ao tribunal, com o espírito semelhante ao de quem
vai ao teatro. Esses juristas, apesar das divergências políticas, públicas e
notórias, mantinham cordiais relações, que apreciavam salientar.
A polémica entre os escrivães e o Delegado
do Procurador Régio, pelo seu conteúdo e abrangência, quando muito seria objeto
de apreciação e discussão no meio judicial, mas o de Alcobaça acompanhou com
moderado interesse, sem perceber bem o que estava em discussão (política,
dinheiros?).
Ao que foi possível apurar, agindo e contra
reagindo, inicialmente com muita fogosidade, os ânimos acabaram por serenar e o
litígio não teve mais desenvolvimentos.
-CONHECIMENTO
DO CRIME PELO JORNAL-
Dois rapazolas de Pataias, de mau vinho, em
3 março de 1921, agrediram à paulada e à porta de uma taberna, um resineiro que
requestava a namorada de um, o qual apesar de transportado de urgência por
comboio para Lisboa, veio a falecer no dia seguinte.
Os agressores foram para as respetivas
casas, sem que houvesse quem os impedisse, só tendo sido presos e transportados
para a prisão de Alcobaça, depois de o Administrador do Concelho ter tomado a
iniciativa com a leitura do evento num jornal da Marinha Grande.
-UMA
HISTÒRIA DE JURADOS-
O Dr. Amílcar Magalhães, advogado (falecido
na década de 1980), contava que fazia parte do anedotário forense de Alcobaça,
uma cena passada no tempo da I República.
O Júri de Alcobaça preferia julgar de acordo
com a realidade que conhecia, o que nem sempre estava refletido no processo,
como sabia bem o advogado João de Caires, que sustentou num discurso melodramático, bombástico, retórico,
muito ao estilo da época, a inocência do cliente que, a final, foi condenado a
pesada pena. Terminado o julgamento, os jurados aproximaram-se do Dr. Caires,
fizeram rasgados elogios ao discurso, o que ele estranhou, pois vocês estão a elogiar-me tanto, mas
condenaram o meu cliente.
E um deles respondeu
que, nós sabíamos perfeitamente que o
Guedes matou o Lopes.
No Júri da província
era assim, assegurava o experiente Dr. A. Magalhães (que todavia nunca
trabalhou com jurados, já que enquanto advogado, durante cerca de 40 anos, o
Código de Processo Penal não previa a sua existência), pois que se a
argumentação do advogado não estivesse conforme com o que os homens bons entendiam justo,
dificilmente se conseguia um bom resultado.
E acrescentava que
era preciso perceber isto e depois ter cuidado.
-A ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA-
Durante
séculos na monarquia portuguesa houve duas justiças, a senhorial (terras
coutadas e honradas exercida por nobres e eclesiásticos) e a real (exercida
pelo Rei quando efetuava digressões pelo reino).
Este
sistema de organização judiciária que, ao longo dos séculos sofreu obviamente
alterações, teve a grande reforma com a Constituição (liberal) de 1822,
extinguindo os Tribunais Superiores da Corte, em cuja cúpula estava o Supremo
Tribunal. Com esta Constituição, o poder judicial passou a ser cometido
exclusivamente a juízes, sem que as Cortes ou o Rei o pudessem mais exercitar.
Na Primeira Instância foram criados juízes de facto e de direito, ficando o
cargo de juíz reservado a cidadãos masculinos com o curso de Direito e mais de
25 anos.
Com a Carta
Constitucional, surgiram os jurados, os juízes de paz, os juízes de Direito e
das Relações. Com esta alteração passou a ser nomeado pelo Rei, um Juiz de
Direito por comarca, dividida esta em julgados e sub-divididas em freguesias.
Foi no âmbito desta reforma que em 1832 foi criado o Supremo Tribunal de
Justiça, cujo primeiro Presidente, José Silva Carvalho (maçon e antigo
ministro), foi nomeado em 1833 com nove conselheiros aonde se incluíam o
Presidente e Procurador-Geral da Coroa. Por esta altura, foram suprimidos os
juízes ordinários com o fundamento de a sua maioria ser inepta para administrar
a justiça, e o Desembargo do Paço. Os Tribunais da Relação de Lisboa e Porto
que sucederam respetivamente à Casa da Suplicação e à Casa do Cível, foram criados
em 1835. A matéria da organização judiciária passou a integrar a Nova Reforma
Judiciária (Passos Manuel e Decretos de 1836 e 1837).
Após a Revolução de
Setembro
de 1836, a Carta foi abolida e em seu
lugar reposta em vigor (a título provisório), a Constituição de 1822. A Constituição de
1938 foi como que uma síntese dos textos das de 1822 e 1826, tendo como
características fundamentais o princípio clássico da tripartida dos poderes, o
bicameralismo das Cortes, o veto absoluto do rei e a descentralização
administrativa. Esta Constituição reafirmou a soberania nacional, restabeleceu
o sufrágio universal direto e eliminou o poder moderador.
Nesse sentido
ampliou o regime de eleição dos juízes e os de nomeação, bem como autorizou o
Governo a rever vários diplomas no que veio a chamar-se a Novíssima Reforma
Judiciária de 1841, de Costa Cabral. A divisão judicial no Continente e Ilhas
Adjacentes, passou a envolver distritos, comarcas, julgados e freguesias, sendo
que cada distrito tinha uma Relação, cada Comarca um Juíz de Direito, cada
Julgado um Juíz ordinário e um Juíz de Paz e cada Freguesia um Juíz eleito.
Assim, o território do Reino foi dividido para efeitos judiciais em comarcas,
cada uma com pelo menos um círculo de jurados, em cuja sede o juíz tinha de
fazer as audiências gerais. Com esta reforma, foram restruturados o Supremo
Tribunal de Justiça (com juízes nomeados pelo Rei, sob proposta do Conselho de
Estado), as Relações (com juízes nomeados pelo Rei, os Desembargadores), os
juízes letrados de Primeira Instância (nomeados pelo rei) que julgavam de
Direito onde houvesse juízes de facto ou jurados, bem como, julgavam de facto e
de direito onde os não houvesse. Também, foram restruturados os juízes eletivos
em pequenas circunscrições, que julgavam pequenas causas sem recurso.
A
I República pouco ou nada investiu nesta matéria, pelo que manteve
fundamentalmente, a organização judiciária implementada ao longo do período da
monarquia liberal.
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