terça-feira, 27 de setembro de 2011
AS NOSSAS MEMÓRIAS FLEMING DE OLIVEIRA
(III)
A CARMINDA E A PARÁBOLA MINHOTA (sempre atual) DO MAU VIZINHO
A Carminda Afonso de Castro, nasceu no lugar da Lage, Vila Praia de Âncora, Minho, como gostava de dizer, filha de uma família pobre, que mourejava de pés descalços, de sol a sol, numa terra arrendada. Nunca andou na escola, mas sabia as horas, conhecia o dinheiro e ninguém a enganava nas contas do padeiro ou da mercearia.
O Minho foi sempre uma terra pobre de onde emigrava muita gente para o Porto, Lisboa, Brasil, África, França ou Canadá.
A Carminda tinha 17 anos quando veio para o Porto, servir como então se dizia, para casa de uns ingleses, na Ramada Alta. Não tinha consigo mais, do que o saco de pano que trazia às costas. Creio que nem mala de cartão.
Só depois é que foi para a casa da Avó Ferreira, na Avenida da Boavista, e quando os Zicos se casaram foi, com eles, para a Casa.
A Carminda tinha lá na terra a sua família, que ajudava como podia.
Mas onde gostava mais de estar, era connosco, em Miramar. Da terra recebia, às vezes, amoras ou framboesas silvestres, que faziam uma compota espessa preta ou avermelhada de que gostávamos imenso. A Carminda contava bem histórias ingénuas que inventava e que nós devorávamos, gulosamente, na proporção inversa do apetite, por certos pratos ou pela sopa. Por isso não nos importávamos nada quando os Zicos saíam para jantar fora ou em passeio.
Durante uns anos, recorda a Náná, os mais velhos, no Verão íamos com os Pais (Zicos) uns dias ao estrangeiro. Era cómico que ao chegar à Granja ou a Espinho, o Pai quisesse voltar para trás com saudades dos que tinham ficado.
Lembro-me, entre outras, uma viagem que nos anos 50 fizemos a Sevilha, Córdoba e Granada, a Náná muito sapudinha e a Núnú, onde tiramos uma fotografia num estúdio, vestidos como árabes, fumando cachimbo de água, foto que ainda possuo religiosamente, bem como registei a máxima árabe é tão bom não fazer nada e depois descansar. Também me lembro de uma outra viagem a S. Sebastião (Espanha) onde a Náná num parque de diversões montou um pobre burro e se agarrou desalmadamente ao seu pescoço, que quase ia morrendo afogado. Dessa vez, demos uma saltada a França, vimos pela primeira vez uma senhora de bikini e lembra a Náná que num restaurante o Fernando desabou a dizer palavrões (não, não era o meu costume); então o empregado no mais correcto português perguntou o que queríamos para sobremesa. A Mãe passou por todas as cores.
A Carminda não era uma beata, embora fosse temente de Deus. Não sei se em criança foi à catequese, mas seguramente não precisou disso para ser uma óptima pessoa. A sua cultura, que era popular e rural, não rejeitava, antes pelo contrário, algumas antigas crenças, superstições ou lendas do Alto Minho. Recordo as digressões que fazíamos pela Via Láctea ou Estrada de Santiago, como era conhecida, muito empoeirada pelas almas que vão em romaria a Santiago de Compostela, o hábito de encomendar as almas do Purgatório ou a crendice que à noite a procissão dos defuntos, descia às ruas escuras da freguesia.
Conhecia a Carminda algumas emocionantes histórias, que por vezes contava mas que apreciávamos menos que as do menino que ia de comboio comprar com 2$50 um carro a Coimbra, e nos dizia ter aprendido com as velhotas da terra, nas noites de inverno, à volta da lareira, antes de vir servir para a cidade. Nessas histórias apareciam bruxas e espíritos maus, que se reuniam em lugares tremendos como a figueira do enforcado ou o pego do afogado, o que explicava certos e inexplicáveis males que acontecem, com a morte dos inocentes.
Já era grande e pai de filhos, quando percebi o que eram os custodinhos. Eram os bebés, antes de nascer, ter nome ou ser baptizados. Quando antigamente uma senhora estava à espera de bébé, não se sabia se era menino ou menina, era o custodinho. Em casa dos Zicos fomos todos custodinhos e claro a Raquel, Paula e Miguel também foram custodinhos, no dizer da Carminda. A expressão custodinho era típica do Minho e foi uma entre muitas, que a Carminda introduziu na Casa. É aquele que deve ser guardado das bruxas ou dos que lhe podem fazer mal. São os inocentes.
Como disse, a nossa Carminda nunca foi à escola.
Falava-nos da sua devoção ao S. Bartolomeu, que era o advogado dos medos. O S. Bartolomeu, um dia dominou e prendeu o mafarrico, o diabo, e salvou uma criança que estava possuída.
Lembro-me, de ouvir falar numa antiga romaria que se fazia em Âncora, terra da Carminda, talvez do tempo da Idade Média, aonde havia uma cerimónia para impedir que o mafarrico, fizesse mal às crianças.
Um dia, vim encontrar esta ideia, na iconografia do túmulo de D. Pedro, no Mosteiro de Alcobaça.
Disse-me a Biquica que me lembrou duma história de Miramar, que a Carmindinha querida, fazia connosco para nos gozar dizendo que era para tirar o medo do escuro e da noite…Trincar uma crista de galo (quando havia um que ela destinava ao repasto) dizendo que imediatamente ficávamos sem medo. Mandava-nos passar pela portinha pequenina que nos levava ao ainda terreno do Santos Coelho, sozinhos, um de cada vez, e andar ali um bocado às escuras. Por segundos, todos julgávamos que a crista do galo era miraculosa.
Deus nos livre dos maus vizinhos, era uma ladainha que ouvi algumas vezes à Carminda, misturada com algumas inocentes asneirolas, invocações ao Santo António de Lisboa e padres-nossos, para atalhar a um mal ou desgraça. Ter um mau vizinho, é muito mau porque prejudica as relações das pessoas, é uma autêntica desgraça. O Santo António, salvou o pai, que ia a caminho da forca, por causa da infâmia de falsas acusações, feitas por um mau e invejoso vizinho.
-Não gosto desta sopa. Conte uma história, Carminda.
-Está bem, mas primeiro o menino (a) vai comer a sopa.
Um dia, em que Nosso Senhor veio ao Mundo, encontrou um lavrador a trabalhar a terra ao Domingo, com um arado de bois.
-Solta os bois e guarda o Dia Santo, disse-lhe o Senhor.
-Não posso Senhor, que tenho mulher e filhos pequeninos para cuidar, respondeu o lavrador.
-Solta os bois e guarda o meu Domingo, pois mais vale quem Deus ajuda do que quem muito madruga, insistiu o Senhor.
-Tendes toda a razão, mas não posso, pois enquanto tiver forças, tenho de trabalhar.
E o Senhor continuou a insistir:
-Homem teimoso, solta os bois, pois ainda te mando raios e trovões que te levam num piscar de olho.
E o lavador respondeu:
-Não posso, meu Senhor, que tenho palha e pão para arrecadar.
O Senhor repetia e o lavrador continuava a dizer que tinha de trabalhar na terra.
-Solta os animais, homem sem fé, que te mando moléstia que te leva os bois de morte.
-Não posso Senhor, se me matais os bois, ainda mais tenho de trabalhar.
Como o lavrador não cedia aos argumentos do Senhor, Este resolveu utilizar um decisivo:
-Solta os bois, guarda o dia Santo, que senão mando-te um mau vizinho, para o pé da porta.
Ao ouvir esta ameaça, o lavrador ficou aterrado e abandonando os animais desatou a fugir leira acima, em direcção a casa gritando:
-Piedade Senhor, tende compaixão dos pobres.
Esta história, que agora recuperei, já a havia publicado há alguns anos num jornal aonde colaborava e num artigo dedicado à memória da Carminda.
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