segunda-feira, 19 de setembro de 2011

REVIVENDO EÇA DE QUEIROZ, COM UM ARROZ DE FAVAS



(I)
EM QUE SE FALA DE GASTRONOMIA

A gastronomia é um ramo que, genericamente, compreende a culinária, a bebida, os materiais usados na alimentação e, mesmo, a relação cultural com ela associados. Um gastrónomo pode ser um cozinheiro, mas igualmente uma pessoa que se preocupa com uma alimentação requintada, não apenas na forma como é preparada, mas também como é apresentada, por exemplo, com o vestuário, a música ou a dança.
Por essas razões, a gastronomia tem um âmbito maior que a culinária, que se ocupa, especificamente, com a técnica de confecção da alimentação.
O prazer proporcionado pela comida tem sido, desde sempre, um dos fatores mais importantes da vida individual ou colectiva. A gastronomia, nasceu desse prazer e constituiu-se como a arte de cozinhar e associar os alimentos, para lhes retirar o máximo proveito. Cultura muito antiga, a gastronomia esteve na origem de grandes transformações sociais e políticas. A alimentação passou por várias etapas, ao longo do desenvolvimento humano, evoluindo do caçador nómada ao homem sedentário, quando este descobriu a importância da agricultura e da domesticação dos animais.
A fixação à terra trouxe uma maior abundância de comida, com o correspondente aumento demográfico que, por sua vez, nalguns casos, acarretou o esgotamento dos recursos e a migração.
A riqueza proporcionada pela abundância, acarretou curiosidade pela novidade e o exotismo. O homem teve necessidade e interesse em complementar a sua dieta com alimentos que localmente não dispunha, dando origem ao comércio levado a cabo por alguns que continuaram nómadas, para que muitos outros se pudessem fixar. O homem que viajava, como o comerciante, não só levava aquilo que ou lhe faltava, como introduziu novos alimentos.
A humanidade cedo se apercebeu das virtudes da associação de certas plantas aromáticas aos alimentos para lhes valorizar o sabor, contribuir para a sua conservação e permitir uma melhor e mais saudável assimilação. Guerras se fizeram pela apropriação de recursos alimentares, quando determinam o poder para quem domina a sua gestão. Recorde-se que a procura das especiarias foi um fator determinante para os portugueses partiram rumo aos Descobrimentos, que teve como um importante complemento, o controlo das suas rotas.
A gastronomia ocupou lugar de destaque na literatura portuguesa.
Camilo Castelo Branco, era avesso a descrições, mas não resistiu a descrever, por exemplo, um saboroso caldo verde. Ramalho Ortigão conseguiu espiritualizar uma batata, ao conferir-lhe um sabor metafísico, como diria o Conselheiro Acácio, enquanto que Eça de Queirós, esteta na arte de comer, fez inúmeras menções a restaurantes e ementas (não propriamente receitas), marcando presença ao longo da sua obra, com descrições sumarentas de comida e refeições. É, talvez, o escritor português cuja obra, em maior escala, menciona a gastronomia como parte da fabulação. A arte da cozinha tem pois, muito em comum com a literatura. Os escritores, os poetas, não escapam à divina tentação de invenção/utilização culinária.
Eça de Queiroz, no texto Cozinha Arqueológica, que saiu pela primeira vez, em três artigos, na Gazeta de Notícias, no Rio de Janeiro, não legou receitas, aliás não praticou a arte culinária (ao que sabemos), mas destacou a importância do alimento na cultura humana:
...a cozinha e a adega exercem uma larga e directa influência sobre o homem e as sociedades.
E, no entanto, o escritor, tão voltado para a boa cozinha, tinha uma saúde frágil, sendo obrigado a privar-se dos bons pratos à portuguesa, para evitar consequências desastrosas. Nos últimos anos, quando próximo da família, era obrigado a controlar-se, pois esta tinha-lhe imposto um regime frugal, embora sempre que podia desrespeitava-a, regalando-se por exemplo, com um estupendo bacalhau à cebolada.
(…) Diz-me o que comes, dir-te-ei quem és. O carácter de uma raça pode ser deduzido simplesmente do seu método de assar a carne. Lombo de carne preparado em Portugal, em França ou Inglaterra, faz compreender talvez melhor as diferenças intelectuais destes três povos, do que o estudo das suas literaturas.
Segundo ele, a mesa constituiu sempre um dos fortes, senão o mais forte alicerce das sociedades humanas. Já os Gregos diziam, que a mesa é a alcoviteira da amizade! Não só da vida íntima, mas na vida pública das nações, o jantar constitui a melhor e a mais solene cerimónia que os homens acharam para consagrar todos os seus grandes actos, imprimir-lhe um carácter de união e de comunhão social. Outrora não havia fundação de cidade, tratado de paz, instalação de magistratura, que não fosse acompanhada e corroborada por um festim. Ainda hoje (1893) se não cria um grémio ou um sindicato, sem que os sócios jantem, cimentando os estatutos com champanhe e túbaras. As próprias relações do homem com a divindade estabeleceram-se sempre através da comida. O sacrifício da rês, sobre a ara, era uma espécie de merenda espiritual, em que o Deus, atraído pelo cheiro da carne assada, descia e se tornava acessível ao crente, partilhando com ele as vitualhas santas. O cristianismo, neste ponto, concordou com o paganismo - e a missa, pela consagração do pão e do vinho, é um verdadeiro banquete celebrado entre a terra e o céu.
Ora porque a cozinha e a adega exercem uma tão larga e directa influência sobre o homem e as sociedades, é que eu estranhava há pouco, folheando Ateneu, que a erudição arqueológica não estudasse de um modo mais experimental e íntimo a cozinha dos antigos, para lhes aprofundar mais completamente a estrutura moral. Diz-me o que comes, dir-te-ei quem és. O carácter de uma raça pode ser deduzido simplesmente do seu modo de assar a carne. Um lombo de vaca preparado em Portugal, em França ou Inglaterra faz compreender talvez melhor as diferenças intelectuais destes três povos, do que o estudo das suas literaturas. O macarrão é por si só o mais instrutivo comentário da história das Duas Sicílias. E, sendo esta uma verdade admitida já desde Montesquieu, porque se tem descurado tão levianamente o estudo prático da culinária greco-latina?
Decerto, não são os documentos que faltam. A mesa e os seus prazeres foram um dos assuntos sobre os quais se exerceu, com mais afinco, o génio poético e mesmo filosófico dos Antigos. Horácio, filho dedicado do Epicuro, não cessou de cantar honestamente a garrafa e o prato. Todo um livro dos Epigramas de Marcial é consagrado a celebrar o que se come e o que se bebe. Com o mesmo cálamo que traçava a Eneida, Virgílio compôs um poema sobre os doces de sobremesa. O mais severo dos homens, Catão, dedica páginas graves à couve, às suas variedades, às suas virtudes, à sua acção nos costumes. De uma simples ceia, Petrónio tirou todo um livro. E a História do Mundo, do sábio Plínio, é quase uma história universal dos comestíveis.

Eça descreveu jantares memoráveis, concretamente em A Cidade e as Serras, que vamos seguir de perto. Em A Cidade e as Serras, Jacinto anuncia uma noite a José Fernandes uma festa no (Paris) 202, por causa do Grão-Duque Casimiro, que lhe ia mandar um peixe delicioso e muito raro, que se pesca na Dalmácia. Mas em vez de almoço, o Grão-Duque reclamou uma ceia. Serviu-se um Porto de 1834, envelhecido nas adegas portuguesas do avô D. Galião. O primeiro serviço, foi um consommé frio com trufas, vinho branco (Chateau-Yquem). E aguardava-se já o peixe famoso da Dalmácia, o peixe de S. Alteza, o peixe inspirador da festa! Mas eis que o mordomo balbuciou uma confidência a Jacinto, o elevador dos pratos, ao subir o peixe de S. Alteza, inesperadamente, desarranjou-se e ficou encalhado. Tragédia!
Todos os esforços foram em vão, pois o peixe permanecia na travessa, em baixo, na treva, entre rodelas de limão, numa inércia de bronze eterno, pelo que teve de ser abandonado. Serviu-se um Chateau-Lagrange (um bordeaux St. Julien), o Barão de Pauillac (peça de carneiro que compreende a sela e as duas coxas), champanhe, ortolan (caça fina) e champanhe, coalhado em sorvete.
Ainda em A Cidade e as Serras, após a chegada de Jacinto a Tormes, segue-se a primorosa narrativa do chamado jantarinho de Suas Incelências que não demorará um credo, como veremos mais à frente.

(CONTINUA)

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