segunda-feira, 19 de setembro de 2011

REVIVENDO EÇA DE QUEIROZ, COM UM ARROZ DE FAVAS



(IV)
UM BELO ARROZ DE FAVAS EM TORMES
Li pela primeira vez A Cidade e as Serras, já lá talvez mais de 50 anos, não apenas por obrigação liceal. Quando, no despertar da adolescência, o interesse pela leitura de obras literárias portuguesas ia nascendo, fomentado pelos meus Pais, eu sentia que era imperativo conhecer, de forma crescente, o imaginário que os autores, na altura indicados como modelos canónicos, tinham criado para meu conhecimento e deleite.
Efectivamente, o meu entusiasmo juvenil pela literatura ainda que estimulado pelo prof. Óscar Lopes, de forma alguma, poderia conferir-me o estatuto de leitor crítico, até porque quaisquer que fossem as minhas convicções de uma hermenêutica consistente, face a um Eça, não poderiam passar, obviamente, de fantasistas aventuras juvenis.
De qualquer forma, os conhecimentos que possuía do código linguístico do Português (nessa altura era obrigatório saber ler e escrever português e estudava-se latim), associados a um incipiente reconhecimento dos códigos retóricos, estilísticos e ideológicos (não obstante meu Pai ser Advogado), que estruturam a obra literária, não impediram que fosse naquele período que tivesse nascido o meu fascínio por uma obra que hoje ainda reputo de relicário da Literatura Portuguesa,
Eis que no verão de 2010, pareceu estarem de novo, Jacinto e Zé Fernandes, à minha volta. Quando regressei a casa/Alcobaça, fui reler depressa o livro, há muito arrumado. A mágica prosa de Eça despertou, de súbito, o sortilégio nela contido, como acontecia, salvas as devidas proporções, com Vergílio Ferreira, in Conta-Corrente-15.08.1975,
Que fazer? Que ler? Que pensar? Tomo A Cidade e as Serras, releio pela centésima vez algumas páginas da segunda parte. E um prazer infinito inunda-me na alegria da serra, no prazer sensório da realidade inventada pela magia da palavra do maior artista dela na nossa literatura. E a cada passo estremeço de uma delícia indizível na «água nevada e luzidia» da fonte, no grande salão em que o ar circulava «como num eirado», no vinho «seivoso», no grande salão vazio «como uma sonoridade capitular». Todo o «estilo» de Eça se nos dirige aos sentidos que vibram não com a realidade conhecida mas com o prazer que está lá e só na memória se conhece ou na translação dessa realidade que nela vibra e só num sobressalto se conhece como presença oblíqua e incerta. Assim o vinho e a água e tudo o mais é na escrita de Eça que nos sabem maravilhosamente - não no vinho e água que bebemos. Assim o real é insípido e inexpressivo sem o calor e a expressão que o artista lhe inventa e nos ficam submersos na memória e aí procuramos indistintamente para haver sabor e o mais quando em presença desse real.
Com a leitura, surgiu-me a ideia bem prosaica, que um Arroz de Favas, assim elogiado, não podia ficar sem prova. Deste enlevo, arrancou-me o Melchior, com o doce aviso do jantarinho de suas incelências. Era noutra sala, mais nua, mais abandonada: - e aí logo à porta o meu supercivilizado Príncipe estacou, estarrecido pelo desconforto, e escassez e rudeza das coisas. (...)
Jacinto ocupou a sede ancestral, e durante momentos (de esgazeada ansiedade para o caseiro excelente) esfregou energicamente, com a ponta da toalha, o garfo negro, a fosca colher de estanho. Depois, desconfiado, provou o caldo, que era de galinha e rescendia. Provou, e levantou para mim, seu camarada de misérias, uns olhos que brilharam, surpreendidos. Tornou a sorver uma colherada mais cheia, mais considerada. E sorriu, com espanto:
- Está bom!
Estava precioso: tinha fígado e tinha moela; o seu perfume enternecia; três vezes, fervorosamente, ataquei aquele caldo.
-Também lá volto!-exclamava Jacinto com uma convicção imensa. -É que estou com uma fome... Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome.
Foi ele que rapou avaramente a sopeira. E já espreitava a porta, esperando a portadora dos pitéus, a rija moça de peitos trementes, que enfim surgiu, mais esbraseada, abalando o sobrado – e pousou sobre a mesa uma travessa a transbordar de arroz com favas. Que desconsolo! Jacinto, em Paris, sempre abominava favas!... Tentou todavia uma garfada tímida-e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus. Outra larga garfada, concentrada, com uma lentidão de frade que se regala. Depois um brado:
-Óptimo!... Ah, destas favas, sim! Ó que fava! Que delícia! (...)
- Pois é cá a comidinha dos moços da Quinta!
E cada pratada, que até suas incelências se riam... Mas agora, aqui, o Sr. D. Jacinto, também vai engordar e enrijar!

Que Caldo de Galinha com Fígado e Moelas, terá comido Jacinto?
Calculo que o caldo servido a Jacinto, terá sido preparado a partir de uma galinha caseira, água a ferver temperada com sal, algum chouriço e presunto. Quando a panela se encontrar em ebulição, deita-se-lhe a galinha deixando prolongar a ebulição lenta, durante cerca de duas horas, isto conforme a ave seja mais ou menos tenra. Junta-se ao caldo/canja os miúdos da galinha, a moela, o fígado e até mesmo os ovos ainda mal formados.
Na verdade, Jacinto tinha razão, era bom, muito óptimo.

Como seria, o Arroz de Favas à Moda de Tormes, servido depois de um caldo de galinha com fígado e moelas e antes de um creme queimado?
Em casa de um amigo, do Marco de Canavezes, um Arroz de Favas tem a receita :
Ingredientes:
Favas; Cebola; Azeite; Louro; Sal; Pimenta e Arroz.
Modo de preparar:
Pica-se uma cebola grande e alhos e refoga-se com azeite.
Refogada e alourada a cebola, juntam-se as favas previamente descascadas e um caldo (de carne, de alho e coentros ou próprio para temperar arroz). Coze durante cinco minutos, junta-se água, três vezes mais do que o arroz e duas folhas de louro.
Quando levantar fervura, tempera-se com sal e pimenta, juntando-se depois o arroz lavado até ficar bem cozido, mas suficientemente molhado, malandro, para ser servido na hora.
Para que o arroz fique malandro e não empapado, sugere-se utilizar arroz estufado.

Mas esta receita não é a única, nem necessariamente a melhor.
Outras existem, mais ou menos semelhantes, desde que levem os seguintes,
Ingredientes:
-Favas (sem dúvida); Cebola; Alhos; Azeite; Louro; Sal; Pimenta e
Arroz.
Modo de preparar:
-Refoga-se e aloura-se uma cebola grande, picada, e alguns dentes de alho em azeite.
-Juntam-se as favas previamente descascadas e um pouco de caldo de carne ou de frango, e
-Deixa-se cozer durante cinco minutos.
-Juntam-se duas folhas de louro e três chávenas de água de cozer frango.
-Depois de levantar fervura, tempera-se com pimenta, rectifica-se o sal e junta-se depois uma chávena de arroz.
-Quando cozido, arrefece-se um pouco o tacho, mergulhando-o em água fria, para que o arroz se mantenha malandro.
-Entretanto, alouram-se pedaços de frango cozido, numa frigideira com um pouco de azeite onde previamente se tinha alourado alguns dentes de alho e acompanha-se com o arroz.
Jacinto ainda comeu à sobremesa um Creme Queimado.
À mesa onde os pudins, as travessas de doce (...). - Como gostar! Mas é que delira! ... Pudera! Tanto tempo em Paris, privado dos pitéus lusitanos.
Eça não dá aqui a receita (como em nenhuma parte, ao que me recorde), mas na forma tradicional, esta não deveria variar muito da seguinte elaboração que também se levava a cabo no Entre Douro e Minho:
-Prepara-se uma caçarola, aonde se deita 125 gr. de farinha-triga muito fina, que se desfaz com uma colher de pau (se a ASAE não estiver presente). Depois de bem desfeita, adicionam-se 10 a 12 gemas de ovos, 300gr. de açúcar e ainda uma pitada de sal fino. Mexe-se até esta massa, ficar bem ligada. Coloca-se 1,5l de leite a ferver, ao qual se vai juntar lentamente o referido polme, sem parar de mexer. Atam-se um pau de canela, meia casca de limão e outra de laranja, com um barbante e deita-se dentro do creme. De seguida, leva-se a caçarola ao lume mexendo sem parar até ferver bem. Se se entender que o creme está espesso, pode-se juntar leite até obter a consistência desejada. Finalmente verte-se numa travessa, junta-se açúcar fino por cima, queima-se com um ferro em brasa e vai a correr para a mesa, a fim ser comido gulosamente.

(CONTINUA)

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