segunda-feira, 19 de setembro de 2011
REVIVENDO EÇA DE QUEIROZ, COM UM ARROZ DE FAVAS
(II)
O FASCÍNIO DE TORMES E A FUNDAÇÃO EÇA DE QUEIROZ
No último verão (2010), minha Mulher e eu visitamos a Fundação Eça de Queiroz (Tormes-Baião-Douro), com direito a visita guiada. Tormes é um lugar mítico, a designação literária que Eça de Queirós deu a esta casa e quinta, aí situando a acção do seu romance A Cidade e as Serras. A casa (com capela, pátio, etc) possui uma componente museológica e é também a sede da F.E.Q. Foi interessante conhecer a casa onde passou, ainda que por não muitos momentos, esse enorme vulto da literatura. Contrariamente ao que julgávamos, Eça sempre que ali se deslocou, foi para tratar de burocracias, relacionadas com a herança da esposa e especialmente para receber rendas.
Da primeira vez, teve a impressão retratada em A Cidade e as Serras. A casa estava desabitada e porque os caseiros não tinham onde colocar os cereais, as grandes salas eram usadas como celeiro e a criação andava à solta pelas divisões. Isso decorre de uma carta que escreveu a sua mulher: … a casa é feia, muito feia, e à fachada mesmo pode-se aplicar, sem injustiça, a designação de hedionda (repugnante, repulsiva). Tem um arco enorme; e, por debaixo dele, duas escadas paralelas, que são de um mau gosto incomparável.
Foi talvez devido ao facto de Eça estar a chegar de Paris que o não fez aderir de imediato a beleza das construções rurais do Alto Douro, que ainda hoje nos deslumbram.
Eram enormes duma sonoridade de casa capitular, com grossos muros enegrecidos pelo tempo e o abandono, e regelados, desoladamente nuas, conservando apenas aos cantos algum monte de canastras ou alguma enxada entre paus. Nos tectos remotos, de carvalho apainelado, luziam através dos rasgões manchas de céu. As janelas, sem vidraças conservavam essas maciças portadas, com fechos para as trancas, que, quando se cerram espalham a treva. Sob os nossos passos, aqui e além, uma tábua podre rangia e cedia.
Tivemos oportunidade de ver a famosa mesa do Arroz de Favas.
Passo a explicar.
Jacinto não era esperado quando chegou a Tormes. E por isso, as refeições que lhe prepararam, foram do mais simples e do que na época do ano (meados de Maio) a terra dava, ou seja, favas. Daí o Arroz de Favas que, por não ser civilizado, não era apreciado em Paris, mas que em Tormes foi devorado, com especial apreço.
Andando por Tormes, vê-se que a casa alberga o espólio de Eça, o que resta da sua biblioteca, mobiliário do quarto parisiense, a mesa alta onde escrevia de pé, quadros ou gravuras, a cabaia (vestuário de grandes mangas, aberto ao lado, usado na China e noutros países orientais, que inspirou O Mandarim), que se encontrava em Neuilly-Paris e veio para Tormes, após a sua morte e por iniciativa da esposa.
Para um apreciador de Eça, o fascínio de Tormes (que hoje pouco tem a ver com o original, que nem se chamava Tormes), decorre de ser a inspiração de grande parte de A Cidade e as Serras.
Chegados ao portal solarengo e entrando no terreiro lajeado de granito, mal compreenderemos, hoje, que Eça tenha atribuído à casa, quando a visitou pela primeira vez, em 1892, a designação de feia, muito feia e até de hedionda. Não admira, porque se lhe deparou, como se referiu, mais do que propriamente uma casa, um vasto celeiro, onde os caseiros guardavam e as alfaias agrícolas.
Nos tectos remotos, de carvalho apainelado, luziam através dos rasgões manchas de céu, informa-nos Zé Fernandes (o narrador). Janelas com vidraças, só as havia no quarto em que Eça de Queiroz dormia, onde hoje se encontra hoje a sua biblioteca.
A casa, sede da Fundação Eça de Queiroz (FEQ), apresenta o conforto, a dignidade e um arranjo que teria encantado o seu patrono. Uma guia, percorre sala por sala, relacionando tudo com uma suposta vivência de Jacinto, invadindo mesmo a sala onde se encontrava a ver televisão, a nonagenária e muito distinta viúva de um neto de Eça (Presidente da FEQ), terminando o percurso na capelinha do século XVI.
Uma eira, velha e mal alisada, dominava o vale, donde já subia tenuamente a névoa de algum fundo ribeiro.
Se o visitante, terminada a visita à casa, rumar à eira, poderá à noite (sugere-se dormir na Casa do Silvério) contemplar um sumptuoso céu estrelado, e terá diante de si o panorama grandioso das serras, para além do rio Douro. Do seu terreiro, poderão experimentar-se jacínticas iniciações, ao contemplar o enegrecimento dos montes que se embuçam em sombra; os arvoredos emudecendo, cansados de sussurrar; o rebrilho dos casais mansamente apagado; o cobertor de névoa, sob que se acama e agasalha a frialdade dos vales; um toque sonolento de sino que rola pelas quebradas e o segredado cochichar das águas e das relvas escuras…
Em baixo, no vale, existe um pequeno cemitério, onde repousam os restos mortais de Eça.
E se o visitante tiver um trepar fácil e condescendente, sugere-se que desça à estação de caminho de ferro, junto ao Douro, onde Jacinto e Zé Fernandes desembarcaram e de onde partiram para a ascensão da serra, por entre espertos regatinhos, grossos ribeiros açodados, carvalhos, macieiras, azinheiras, laranjais rescendentes e melros cantantes.
A quinta, hoje preparada para a produção de um esperto, fresco e seivoso vinho branco, apresenta, aqui e além, construções rurais primitivas recuperadas, as antigas casas de caseiro. Jacinto, habituado ao bom velho Vinho do Porto, da adega do avô Galião e aos opíparos jantares parisienses, regados a champanhes e aos raros borgonhas e bordéus, desde um Chatêau d'Yquem a um Romanée-Conti, entusiasmou-se com o seu recém-descoberto vinho verde branco de Tormes.
(III)
A CIDADE E AS SERRAS
A Cidade e as Serras, publicado postumamente em 1901, o ano seguinte ao falecimento do autor, que não reviu as provas, é o desenvolvimento do conto Civilização (1892) e um dos seus mais significativos romances. Denso, belo, ao longo do qual ironizam-se os males da civilização, fazendo-se elogio dos valores da natureza.
O romance, pertence à última fase do escritor, que se afasta do realismo e abandona a crítica pesada à sociedade portuguesa. O próprio título dá, aliás, boas indicações sobre o sentido do enredo.
É considerado, juntamente com A Ilustre Casa de Ramires e Correspondência de Fradique Mendes, como integrando uma trilogia cujo ponto comum é a crítica ao ambiente social e urbano de Portugal. José (Zé) Fernandes, narra a história do protagonista Jacinto. Na composição, são destacados os episódios diretamente relacionados com a personagem principal, ficando os factos da história de Zé Fernandes apenas como elos da história vivida por aquela. Desde o início, o narrador apresenta um ponto de vista preciso, depreciando a civilização citadina.
O meu amigo Jacinto nasce num palácio, com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival. No Alentejo, pela Estremadura, através das duas Beiras, densas sebes ondulando pôr e vale, muros altos de boa pedra, ribeiras, estradas, delimitavam os campos desta velha família agrícola que já entulhava o grão e plantava cepa em tempos de el-rei D. Dinis. A sua Quinta e casa senhorial de Tormes, no Baixo Douro, cobriam uma serra. Entre o Tua e o Tinhela, por cinco fartas léguas, todo o torrão lhe pagava foro. E cerrados pinheirais seus negrejavam desde Arga até ao Mar de Âncora. Mas o palácio onde Jacinto nascera, e onde sempre habitara, era em Paris, nos Campos Elísios, nº. 202.
No romance, o escritor relata o trajeto de Jacinto, um ferveroso adepto do progresso e da civilização, da cidade para as serras. Troca o civilizado mundo parisiense, repleto de supostas comodidades provenientes do progresso tecnológico, pelo mundo natural, primitivo e pouco confortável, no sentido dos bens que caracterizam a vida urbana, mas onde encontra a felicidade, mudando radical e definitivamente de opinião.
A Cidade e as Serras, preconiza uma relação entre as elites e as classes subalternas, na qual aquelas promovessem socialmente estas, como faz Jacinto ao reformar a propriedade e melhorar as condições vida dos trabalhadores.
Através do personagem central, Jacinto, que representa a elite portuguesa, a obra critica o estilo de vida afrancesado e desprovido de autenticidade, que enaltece o progresso urbano/industrial e se desenraíza do solo e da cultura do País.
Esta apologia da natureza, não pode ser confundida com o elogio da rotina, pacatez e mediocridade da vida campestre, do Portugal analfabeto e oitocentista. Ao contrário, trata-se de agigantar o espírito lusitano, no seu carácter activo e trabalhador. Assim, pode-se afirmar que depois da tese (a hipervalorização da civilização) e da antítese (a desvalorização da natureza), Jacinto busca a síntese, ou seja, o justo equilíbrio, que decorre da racionalização e da modernização da vida no campo.Quando se deslocou para a serra, Jacinto sentiu um irresistível ímpeto empreendedor contra as resistências dos empregados ao trabalho. Concluindo ao buscar a felicidade, empreendeu uma viagem que o reencontrou consigo e com o País (Portugal). Podemos considerar A Cidade e as Serras um romance no qual se destaca a categoria espaço, na medida em que os ambientes são fundamentais para a compreensão da história, destacando-se os contrastes por meio dos quais se contrapõem. A amplidão da Quinta de Tormes contrastava com a estreiteza do universo tecnológico do parisiense 202, o que apontava para a oposição entre o espaço civilizado e o espaço natural, presente ao longo do romance.
Um certo dia, Jacinto, aborrecido da vida urbana parisiense, participou a Zé Fernandes a sua partida para Portugal, a pretexto de transladar os restos mortais de seus avós, deslocando para lá os confortos do palácio. Seu avô, era o gordíssimo e riquíssimo miguelista Jacinto, a quem chamavam em Lisboa o D. Galião, que descendo uma tarde pela travessa da Trabuqueta, rente dum muro de quintal que uma parreira toldava, escorregou numa casca de laranja e desabou no lajedo. Da portinha da horta saía nesse momento um homem moreno, escanhoado, de grosso casaco de baetão verde e botas altas de picador, que, galhofando e com uma força fácil, levantou o enorme Jacinto - até lhe apanhou a bengala de castão de ouro que rolara para o lixo. Depois, demorando nele os olhos pestanudos e pretos:
-Ó Jacinto Galião, que andas tu aqui, a estas horas, a rebolar pelas pedras?
E Jacinto, aturdido e deslumbrado, reconheceu o sr. Infante D. Miguel!
Entretanto, perderam-se as bagagens, que, por engano, foram remetidas para Alba de Tormes (Espanha), pelo que o supercivilizado Jacinto chegou a Tormes, apenas com a roupa do corpo.
Em estreito contacto com a natureza, Jacinto renovou-se, primeiro liricamente, numa atitude de encantamento. Nessa fase da narrativa, é apresentado o maior contraste entre as cidades e as serras, e o autor descreve com detalhe aquela região do Douro. Integrando-se depois na vida produtiva do campo, aplica os seus conhecimentos técnicos e científicos à situação concreta de Tormes planeia construir queijarias, plantar árvores, fazer lavoura, etc.
Sem romper totalmente com os valores da civilização, Jacinto adaptou o que pode ao campo. Modernizaram-se o campo e a serra. Até essa parte da narrativa, Jacinto via ainda a serra como um lugar perfeito e ideal.
Na obra, a apologia da natureza, insiste-se, não pode ser confundida com o elogio da mesmice e da mediocridade da vida campestre de Portugal.
Pelo contrário.
Na verdade, Jacinto confrontado com os problemas sociais, decidiu tomar uma atitude. Compadecido da situação de uma senhora enferma, trouxe-lhe médico e boticário. Desse ponto em diante, Jacinto passou a ser visto como um verdadeiro pai dos pobres. Ao príncipe da Grã-Ventura, só faltava um lar, o que veio a ocorrer, por meio de seu casamento com a prima de Zé Fernandes, Joaninha, de quem teve dois filhos sadios e alegres. Numa das visitas à família do amigo, Jacinto conhecerá a prima de Fernandes, Joaninha, uma camponesa típica. Apaixonado, o rico rapaz acaba casado com ela, Depois de cinco anos de felicidade, o dilema existencial entre a cidade e as serras irá resolver-se-à, finalmente, pois e chegarão os caixotes antes embarcados em Paris e perdidos há anos em Espanha. Jacinto aproveitará muito pouco do que há de civilização nas malas.
Feliz, no quotidiano da serra, Jacinto não voltou a Paris, ao contrário de Zé Fernandes, que lá foi mais uma vez e entendeu o motivo da tristeza daquele quando lá vivia, a pressa, a falsidade, a degeneração do espírito da cidade e das pessoas, como o Grão-Duque Casimiro, a condessa e o conde de Trèves, o banqueiro judeu Efraim, Madame Oriol e outros. Enfim, Zé Fernandes voltou a Tormes onde percebeu que está ali o Castelo da Grã-Ventura que o seu príncipe precisava para ser feliz
(CONTINUA)
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