quinta-feira, 22 de setembro de 2011

ULISSES E O CANTO DAS SEREIAS (segundo Kafka)


Franz Kafka, nasceu numa família de classe média judia em Praga, a 3 de Julho de 1883 e faleceu em Klosterneuburg, a 3 de Junho de 1924. É considerado um dos maiores escritores de ficção da língua alemã do século XX. As suas obras escritas, na maioria incompletas e publicadas postumamente, destacam-se entre as mais influentes da literatura ocidental.
Obras como a novela A Metamorfose e romances como O Processo ou O Castelo, retratam pessoas preocupadas com o pesadelo de um mundo impessoal e burocrático.
Um dia destes, reencontrei na minha biblioteca, de certo modo por acaso, A Metaformose, numa edição espanhola com bastantes anos e um texto que me pareceu curiosamente interessante (e actual), que não resisti a traduzir e aqui a apresentar:
A fim de se proteger do canto das sereias, Ulisses tapou os ouvidos com cera e mandou que o acorrentassem firmemente ao mastro principal do barco. Sem dúvida, desde sempre, quaisquer outros marinheiros, teriam podido fazer o mesmo, mas mesmo assim pouco ou nada lhes adiantava fazê-lo. O canto das sereias era avassalador e a paixão dos seduzidos teria arrebentado as correntes e mesmo o próprio mastro. Ulisses, porém, não pensava nisso, pois confiava plenamente na cera e correntes, pelo que na inocente alegria, com os meios de que dispunha, partiu ao encontro das sereias.
Mas as sereias possuem uma arma ainda mais terrível que o canto, o silêncio. Desconheço se isso aconteceu alguma vez com algum navegante, mas admito que haja quem se tenha salvo do seu canto, mas não do seu silêncio. O sentimento de tê-las vencido com as próprias forças, a avassaladora arrogância daí resultante, nada neste mundo é capaz de conter.
Estes poderosos e insinuantes seres, não cantaram quando Ulisses chegou, ou porque acreditavam que só o silêncio poderia com esse opositor, ou porque a visão da felicidade e segurança expressas no rosto daquele, os tenha feito esquecer o canto.
Ulisses, contudo, e por assim dizer, não ouviu o seu silêncio, acreditou que estivessem a cantar e que apenas ele se encontrasse a salvo de as ouvir. Com um olhar rápido, viu as curvas dos seus pescoços, o respirar fundo, os olhos cheios de lágrimas ou as bocas entreabertas. Mas como não era melómano, acreditou que tudo aquilo fizesse parte das árias que soavam inaudíveis a sua volta. Em breve, tudo perpassou pelo seu olhar, perdido na distância. As sereias desapareceram, e, quando supunha estar mais próximo delas, já nem mais sabia de sua existência. Mas elas, mais belas que nunca, mexiam-se, esticavam-se, deixavam os cabelos esvoaçar ao vento, soltando as garras na rocha. Abdicaram de o seduzir, mas queriam apanhar pelo máximo de tempo possível, o reflexo dos grandes olhos de Ulisses.
Se as sereias tivessem consciência, teriam sido aniquiladas então. Mas permaneceram e Ulisses, escapou-lhes.
Desta história, há a destacar um breve epílogo.
Segundo reza a lenda, Ulisses era astuto, tão astuto como uma raposa, e que nem a deusa do destino, conseguiu penetrar no seu íntimo.
Embora isto não seja muito compreensível para cada um de nós, talvez ele tenha, de facto, percebido que as sereias estavam mudas, e oferecido a elas e aos deuses aquela simulação, como um mero escudo.

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