quinta-feira, 15 de setembro de 2011

FLORBELA ESPANCA Uma abordagem à sua vida e obra


(III)
A poesia de Florbela caracteriza-se pela recorrência dos temas do sofrimento, da solidão, da tristeza, aliados a uma enorme ternura e a um desejo de felicidade/plenitude que só poderão ser alcançados no absoluto, isto é, infinito. A veemência passional da sua linguagem, marcadamente pessoal, centrada nas próprias frustrações e anseios, é de um sensualismo que muitas vezes raia o erotismo.
Simultaneamente, a paisagem da charneca alentejana está presente em muitas das suas imagens e poemas, transbordando a convulsão interior da poetisa para a natureza.
Horas mortas... curvadas aos pés do Monte
A planície é um brasido... e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol postonte
A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
-Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água!

A prosa e poética de Florbela Espanca não se ligaram, claramente, a qualquer movimento literário, seja uma corrente dominante no seu tempo ou anterior. A escritora soube construir uma linguagem muito própria, quase uma mitologia lírica, ao revelar, no espaço da poesia, sentimentos e desejos próprios, anseios e aspirações muito suas, conquistando via literatura um espaço de libertação de instintos sensuais, sem precedentes. Sobretudo, revelou, através da linguagem poética, o seu ser e a intimidade.
No entanto o que se disse atrás, notam-se em Florbela traços e influências de correntes que atravessaram o século XIX, apesar de acusar proximidades a estéticas ao novel século XX. Diga-se, que grande parte da singularidade da obra de Florbela reside no facto de a sua estética literária se entrecruzar com várias tendências do lirismo do século passado. Florbela tanto admirava Júlio Dantas, como Guerra Junqueiro, Antero de Figueiredo ou José Duro mas, sobretudo, António Nobre. Foi nesse universo artístico, que tentou conciliar a renovação com a tradição poética, que encontrou elementos para definir a sua linguagem.
Na opinião de António José Saraiva e Óscar Lopes, in História da Literatura Portuguesa, Florbela Espanca, é uma das mais notáveis personalidades literárias isoladas, uma sonetista com laivos parnasianos. Em termos puramente literários, recorde-se que esta corrente é uma charneira que serve de voz (ou é utilizada formalmente como voz) a um conjunto de autores que tem em comum não só a prática de um dado mundo estético/temático mas também um percurso intelectual e criador comum em muitos aspetos.
O que pode aqui parecer ser uma redundância vazia de sentido, serve-nos no entanto para afirmar e fazer ressaltar a parte da frase que diz: (…) é parnasiano o (…) conjunto de autores que tem em comum não só a prática de um dado mundo estético/temático, mas também um percurso intelectual e criador comum em muitos aspetos.
Este aspeto seria relevante, qualquer que fosse a corrente estética em causa, porquanto muito pouco se pode asseverar sobre as influências culturais e literárias na obra de Florbela Espanca.

Florbela Espanca, é, uma cultora da forma.
Urbano Tavares Rodrigues aponta-lhe algumas rimas forçadas mas, os seus versos, por exemplo, são todos decassilábicos o que não quer dizer muito mas serve como exemplo da existência de algum rigor formal na sua escrita e de informação sobre o fato de Florbela sofrer de uma Depressão Bipolar. O rigor da forma é, segundo os estudiosos, incompatível com esta patologia...
Nuno Júdice, referindo-se a este facto, ao formalismo florbeliano, diz que Florbela adota um modo de expressão, o soneto decassilábico, consagrado por um uso que vai de Camões até Antero de Quental, o que torna tanto mais excecional o seu caso, uma vez que ela consegue, de facto, revitalizar esse género poético. (…)
Florbela está, segundo outros críticos, mais perto do neo-romantismo e de certos poetas de finais do século XIX português, que da revolução dos modernistas, a que como conservadora foi alheia.

Pelo carácter confessional da sua poesia, poder-se-ia dizer que segue António Nobre. Este termo confessional é, de certo modo, impreciso pois, geralmente, entende-se ser um género de poesia que se desenvolveu nos Estados Unidos da América, nas décadas de 1950 e 1960, que enfatiza a expressão da intimidade da vida pessoal do poeta, tratando de temas como doença, sexualidade ou depressão.
O gosto pela poesia confessional que confere a sua poética uma retomada da do eu, leva a autora, na nossa opinião, a preferir a poesia à prosa por encontrar naquela as condições ideais para melhor extravasar o lirismo. Essa preferência, provavelmente advém de sua maneira de ver o mundo e da sua condição física, ceifada pela doença (depressão maníaco-depressiva, vulgo bipolar) que a obriga a permanecer imóvel.

Poetisa de excessos, cultivou exacerbadamente a paixão, numa voz marcadamente feminina.
Na carta que lhe escrevi dava-lhe, como me tinha pedido, a minha opinião sobre o casamento. É a seguinte: acho o casamento uma coisa revoltante!
E isto por uma única razão mas que para mim é tudo, para mim e para aquelas mulheres que não são apenas fêmeas, para todas as delicadas, para todas as que têm pudor, espírito e consciência.
Essa razão é a posse, essa suprema e grande lei da Natureza que, no entanto, revolta tudo quanto eu tenho de delicado e bom no íntimo da minha alma…
Ganha-se um amigo muitas vezes, é certo; um amigo que às vezes é o nosso supremo amparo, mas em compensação quantas revoltas, quantas mágoas, quantas desilusões!
Quantas!... A minha querida faz bem, faz muito bem em não se querer sujeitar ao mercado, à venda.
Eu casei e casei por amor.
É a única coisa que desculpa, no meu entender, o casamento, porque do contrário, quando nele apenas entram o interesse e a ambição, revolta-me e indigna-me.

A sua poesia, mesmo pecando por vezes por algum convencionalismo, continua a suscitar interesse de leitores e investigadores.
Florbela pode não ter sido a maior poetisa do seu tempo, mas foi uma das que mais agudamente e sem temor exprimiu as grandes contradições da sensibilidade feminina nas suas paixões, ao mesmo tempo, com uma certa ingenuidade impregnada de verdades simples ou complexas do que é a mulher, na convergência da cultura e do ser.
Conforme vários estudiosos, Florbela surge desligada de preocupações de conteúdo humanista ou social, inserida no seu mundo pequeno burguês, sem manifestar interesse pela política ou pelos problemas sociais.
É neste sentido pouco vanguardista, muito conservadora.
A par dum estilo de vida pouco comum para os cânones do seu tempo (dois divórcios e três casamentos em cerca de quinze anos), a relação mulher-paixão e a exaltação ao exprimir-se sobre si própria, a emocionalidade eventualmente excessiva, podem ter contribuído para os preconceitos.
Em suma, no seu egocentrismo, assume-se conservadora, apesar de querer paradoxalmente romper com algumas opressivas tradições tradicionais de tipo patriarcal.
Um poema nasce da alma, melhor dizendo da criatividade, por isso ninguém pode definir parâmetros fixos. Como mensagem, todo poema assume valor. Podemos perguntar o que faz um poema ser amado e outro desprezado. Escrever poesia é expressar o som de alma. Uns amarão e outros vão odiar. Esse é o preço da ousadia. Poesia é criatividade. Então, vamos escrever ao ritmo de nossa alma, sem ter medo de errar pois, como um crítico escreveu uma vez sobre o inigualável Eça: Eça erra quando escreve e erra quando ama. Mas quando erra, erra violenta e generosamente (...).
Posto isto, não existe uma regra, nem um critério universal. A poesia não sendo ciência, nem objetiva, atinge diretamente nossa subjetividade. Uns gostam da rima, outros não. Outros adoram sonetos, e mais outros os detestam.
Uma das características da poesia moderna, que não terá como grande referência Florbela, é a quebra de paradigmas. Ao poeta de hoje, exige-se inovação. A imagem adquire um lugar predominante na literatura contemporânea. A poesia, no meu entender, não pode fugir disto. Uma obra de ficção como o romance, precisa de descrições detalhadas e um ponto de vista original, a poesia por sua vez precisa de imagens que devem ser rápidas e de impacto.
Passados cerca de oitenta anos sobre a sua morte, são destacados/apontados comportamentos menos ortodoxos, relativamente à moral sexual do tempo (anos 30 séc. XX). Algumas expressões de emocionalidade um tanto excessiva para a época, embora não exclusivas da escritora, ajudam efetivamente a suspeita.
(CONTINUA)

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