segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O NOSSO NATAL FO


(I)

E também estou a pensar nesse tempo, em que nada havia que nos afligisse, não havia artifícios nem charadas suficientemente graves, porque estava sempre alguém presente, como os Zicos e a Carminda, a olhar permanentemente por nós.
Voltando ao tema do Natal.
A Noite de Consoada, na Casa FO, de Miramar, tinha vários momentos, todos igualmente importantes sem que possa valorizar mais uns que outros. As festas de Natal eram uma emoção, lembra com afecto a Náná. Durante uma larga temporada antes, a Mãe tocava ao piano (que aprendeu em menina nas Silva Monteiro, da Boavista, ao mesmo tempo que andava no colégio alemão) canções de Natal e nós cantávamos.
Cantávamos como? já não me lembro bem.
No dia de Natal, durante uns quinze minutos cantávamos o que já tínhamos ensaiado. A Mãe, punha-nos a colaborar no enfeite da Casa e o Pai ia connosco à Gândara para apanhar musgo, para fazermos o Presépio.
No tempo em que além do bacalhau com batatas e couves se comia perú à ceia de Natal, a Zica preparava um bife de vaca para o Tio Mário FO que, para nosso deslumbre, não esqueçamos que ele lidava com gado bravo, e até tinha uma tourinha para treinar na fábrica das camisas, na Rua da Picaria, ao lado da casa do Sá Carneiro, não comia animais de penas, segundo dizia por mera razão de sensibilidade !!!
Era o tempo em que o perú era caseiro, e para o amaciar, se embriagava antes de levar o pescoço à faca. Gostávamos de ver a Carminda pegar num funil, abrir-lhe o bico e deitar-lhe aguardente até que ficava aos trambolhões. Mas não nos deixava ver meter-lhe a faca no pescoço. Conta-se que uma vez, sendo bem criança, o Miguel se escondeu atrás de uma porta preparando-se para ver a Carminda cortar o pescoço ao animal, tendo sido descoberto pela Xica, tão só porque esta ao passar ouviu alguém piar cada vez faca fazia a sua fatal entrada no pescoço do bicho.
Depois do estômago bem tratado, absorvendo uma ou duas repetições de bacalhau cozido branquinho e que lascava bem, matéria onde toda a gente era muitíssimo exigente e crítico, a Carminda ia escolhendo o bacalhau ao longo dos meses anteriores, guardando às escondidas e pondo criteriosamente de parte as melhores postas para essa noite, entrávamos na fase da doçaria. A Náná, é peremptória e em matéria de comes e bebes, entre o branco ou tinto, diz que detesta os dois e prefiro, de longe, doces a salgados, inclusivamente prefiro um mau doce, a uma boa fruta.
Havia opiniões, todas muito consistentes, acerca de quem fazia as melhores rabanadas. Seriam as da Avó Lícia? As da Zica? As da Carminda? Mais tarde as da Biquica? Para as rabanadas, verdadeira instituição cultural tripeira, se bem me lembra o paladar, é fundamental o pão. Qual é o mais adequado, o comprido ou o papo-seco? E o molho, o mais grosso ou o mais fino? Bastante ou pouco açucarado? Mas com pau de canela, o que na falta seria na Casa, considerado um crime de lesa-majestade.
A este propósito, o aclamado e inesquecível Ramalho Ortigão, escreveu há mais de cem anos, in Crónicas Portuenses que quando de todo em todo as rabanadas desaparecerem da superfície do orbe, chorá-las-ei como a mais querida e a mais doce das minhas ilusões de criança.
Os mexidos, com muitos pinhões e frutas cristalizadas eram, uma especialidade da Zica, servidos sempre na mesma taça de cristal vermelho.
Depois de jantar iam-se abrir as prendas, colocadas ao lado do sapatinho de cada um.
A Carminda tocava à porta a dizer que tinha chegado o Menino Jesus, era o alvoroço máximo, diz a Náná que ainda refere que depois do jantar íamos jogar ao rapa com pinhões.
Será que o Menino Jesus, antigamente o Pai Natal que ainda aparecia pouco por aquelas bandas, não era tão falado como agora, me dará aquilo que pedi? Umas vezes sim, outras nem tanto, por exemplo, um saco de carvão, como se dizia para ameaçar os meninos teimosos e com más notas na escola, o que não era o nosso caso.
Passada essa excitação, era altura de rumar para a Missa do Galo, à meia-noite, na capela de Miramar. Esta capela, consagrada ao Sagrado Coração de Jesus, começou a construir-se em 1937, pelo que desde que me conheço, conheço este edifício de traça simples e graciosa, devida ao gaiense Teixeira Lopes. Possui apenas um altar, o Altar-Mor, onde sobressai a Imagem do seu padroeiro. Os Zicos, em dias de culto, costumavam ficar na capela à frente do lado esquerdo. No Missa do Galo, o coro cantava entre outras, de acordo com a melhor tradição, Noite Feliz, Noite Ideal, é Natal, é Natal e tínhamos a ideia que o coro, desprendidamente, se elevava acima da terra, até ao Céu. Depois ia-se beijar o pé do Menino Jesus enquanto que o sacristão, o senhor Vitorino dizia, faça uma bénia menino, faça uma bénia, e limpava com um pano de linho branco, por causa das saraivadas de perdigotos e cuspidelas de alguns malandrecos ou do(a)s devoto(a)s mais velho(a)s ou desdentado(a)s.
Ao mesmo tempo, aproveitávamos para mostrar aos outros meninos algumas roupas novas. A seguir era a cama, ala que se faz tarde, o dia foi comprido e extenuante.
Em muito garotos, ainda chegámos a festejar um a vez o Natal na casa da Boavista pelo que um dia, o Tio Mário, vestiu-se de Pai Natal para trazer os presentes, mas assustámo-nos de tal maneira que foi um berreiro, ele teve de ir tirar o fato e não foi fácil acalmarmo-nos.
Depois da Náná me haver recordado este facto, lembrei-me de ter ficado tão nervoso e a gaguejar, que a única coisa que me veio à cabeça foi oferecer ao Pai Natal, um pão com queijo.

(CONTINUA)

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