quinta-feira, 15 de setembro de 2011

FLORBELA ESPANCA Uma abordagem à sua vida e obra


(V)
O grupo musical português Trovante (com Luís Represas) musicou o soneto Ser Poeta (acima referido) incluído no volume Charneca em Flor, poema que parecia reclamar ser musicado.
A canção intitulada Perdidamente, com música de João Gil, tornou-se numa das músicas mais populares da banda e faz parte do álbum Terra Firme, lançado em 1987.
O cantor e compositor brasileiro Fagner interpretou o poema Fanatismo, da coletânea Livro de Soror Saudade, com a composição do mesmo nome no álbum Traduzir-se, de 1981.
Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver.
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida.
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

“Tudo no mundo é frágil, tudo passa…”
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!…”
Sara Tavares, Teresa Silva Carvalho e Mariza também musicaram, com sucesso, poemas de Florbela.



(VI)
O que é poesia?
Naturalmente, não há, nem poderia haver uma definição, mas apenas ideias do que representa e dos objetivos, pelo menos para os seus autores ou destinatários. Suponho ser interessante recordar como o assunto foi abordado por alguns autores de nomeada, ainda que sem qualquer paralelismo com Florbela. O chileno marxista (Prémio Lenin da Paz) o poeta Pablo Neruda (nasc. a 1904), aliás pouco mais novo que Florbela, mas com uma vivência completamente diferente, no seu discurso de recebimento de Prémio Nobel da Literatura-1971 (Nasci para Nascer) esclareceu que Não aprendi nos livros qualquer receita para a composição de um poema; e não deixarei impresso, por meu turno, nem sequer um conselho, modo ou estilo para que os novos poetas recebam de mim alguma gota de suposta sabedoria. Se narrei neste discurso alguns sucessos do passado, se revivi um nunca esquecido relato nesta ocasião e neste lugar tão diferentes do sucedido, é porque durante a minha vida encontrei sempre em alguma parte a asseveração necessária, a fórmula que me aguardava, não para se endurecer nas minhas palavras, mas para me explicar a mim próprio.
Encontrei, naquela longa jornada, as doses necessárias para a formação do poema. Ali me foram dadas as contribuições da terra e da alma. E penso que a poesia é uma ação passageira ou solene em que entram em doses medidas a solidão e solidariedade, o sentimento e a ação, a intimidade da própria pessoa, a intimidade do homem e a revelação secreta da Natureza. E penso com não menor fé que tudo se apoia, o homem e a sua sombra, o homem e a sua atitude, o homem e a sua poesia, numa comunidade cada vez mais extensa, num exercício que integrará para sempre em nós a realidade e os sonhos, pois assim os une e confunde.
E digo igualmente que não sei, depois de tantos anos, se aquelas lições que recebi ao cruzar um rio vertiginoso, ao dançar em torno do crânio de uma vaca, ao banhar os pés na água purificadora das mais elevadas regiões, digo que não sei se aquilo saía de mim mesmo para se comunicar depois a muitos outros seres ou era a mensagem que os outros homens me enviavam como exigência ou embrazamento. Não sei se aquilo o vivi ou escrevi, não sei se foram verdade ou poesia, transição ou eternidade, os versos que experimentei naquele momento, as experiências que cantei mais tarde.
De tudo aquilo, amigos, surge um ensinamento que o poeta deve aprender dos outros homens. Não há solidão inexpugnável. Todos os caminhos conduzem ao mesmo ponto: à comunicação do que somos. E é necessário atravessar a solidão e aspereza, a incomunicação e o silêncio para chegar ao recinto mágico em que podemos dançar com hesitação ou cantar com melancolia, mas nessa dança ou nessa canção acham-se consumados os mais antigos ritos da consciência; da consciência de serem homens e de acreditarem num destino comum.
Por sua vez, Fernando Pessoa, crê na afirmação de que o significado das palavras está em quem as lê e não em quem as escreve, pelo que aborda a temática do fingimento. O poeta baseia--se em experiências vividas, mas transcreve apenas o que lhe vai na imaginação e não o real, não está a sentir o que não é real. O leitor é que ao ler, vai sentir o poema.
A propósito da sinceridade do poeta, deixou escrito que O poeta superior diz o que efetivamente sente. O poeta médio diz o que decide sentir. O poeta inferior diz o que julga que deve sentir. Nada disto tem que ver com a sinceridade. Em primeiro lugar, ninguém sabe o que verdadeiramente sente: é possível sentirmos alívio com a morte de alguém querido, e julgar que estamos sentindo pena, porque é isso que se deve sentir nessas ocasiões. A maioria da gente sente convencionalmente, embora com a maior sinceridade humana; o que não sente é com qualquer espécie ou grau de sinceridade intelectual, e essa é que importa no poeta. Tanto assim é que não creio que haja, em toda a já longa história da Poesia, mais que uns quatro ou cinco poetas, que dissessem o que verdadeiramente, e não só efetivamente, sentiam. Há alguns, muito grandes, que nunca o disseram, que foram sempre incapazes de o dizer. Quando muito há, em certos poetas, momentos em que dizem o que sentem. (…)
Quando um poeta inferior sente, sente sempre por caderno de encargos. Pode ser sincero na emoção: que importa, se o não é na poesia? Há poetas que atiram com o que sentem para o verso; nunca verificaram que o não sentiram. Chora Camões a perda da alma sua gentil; e afinal quem chora é Petrarca. Se Camões tivesse tido a emoção sinceramente sua, teria encontrado uma forma nova, palavras novas, tudo menos o soneto e o verso de dez sílabas. Mas não: usou o soneto em decassílabos como usaria luto na vida.
O meu mestre Caeiro foi o único poeta inteiramente sincero do mundo.
O poeta não quer intelectualizar as emoções, quer permanecer ao nível do sensível para poder desfrutar dos momentos, a constante intelectualização não o permite. Sente-se como enclausurado numa cela pois sabe que não consegue deixar de raciocinar. Sente-se mal porque, assim que sente, automaticamente intelectualiza essa emoção e, através disso, tudo fica distante, confuso e negro. Ele nunca teve prazer na realidade porque para ele tudo é perda, quando ele observa a realidade parece que tudo se evaporou
É frequente ouvirmos a pessoas, supostamente cultas, referir que não percebem nada de poesia. Ora para um poeta, não deve haver argumento mais frustrante. As pessoas podem afirmá-lo com sinceridade, ainda que nunca se tenham dado ao trabalho de, pelo menos, perceberem o que querem dizer com isso. Outras vezes, afirmam-no como se estivessem a furtar a uma apreciação menos subjetiva de um qualquer objeto poético. Há ainda quem o afirme, movido por uma espécie de falsa modéstia. A questão que pretendo suscitar aqui consiste em questionar o que é perceber ou não perceber de poesia. E porque motivo deverá a poesia ser assim tão excecional, que não nos permita ter uma opinião, por mais singela que seja. Se temos opiniões acerca de tudo e mais alguma coisa (política, economia, trabalho, amor, Deus, etc. etc.) por que não podemos ter opiniões sobre poesia? Não me parece que se trate de assunto mais complexo. Julgo que o problema reside na dificuldade, com razões mais ou menos psicossociológicas, em assumir perspetivas que, em todos os sentidos, só poderão ser consideradas relativas.
O discurso poético, porque muito aberto a interpretações dissemelhantes e divergentes, leva as pessoas ao que chamo a angústia da contradição. Como se a contradição fosse um pecado ou defeito. Aliás, foi um grande poeta quem afirmou que só há duas maneiras de se ter razão, calarmo-nos ou contradizermo-nos. Repare-se, falo de ter razão, de ser lógico e coerente. A contradição, cada vez me convenço mais, é meio caminho andado rumo à coerência. Parece que, no que respeita ao debate sobre poesia, a maioria das vezes as pessoas preferem calar-se. A minha teoria é que preferem calar-se porque têm receio de assumir perspetivas que sabem ser pouco firmes. É um erro, a meu ver, fazer disso um entrave à manifestação do que se sente.
Gosto de falar com certas pessoas dos poemas que leio, sem olvidar que a minha leitura é naturalmente muito subjetiva. Não me interessa descrever o que um poeta escreveu. Interessa-me entender porque me toca o que escreveu.
Isso, claro está, vive de uma série de condições que são diferentes de leitor para leitor, de dia para dia, consoante a sua experiência de vida e as suas vivências. Em última instância, consoante a respetiva maturidade, enquanto leitor.
Julgo por isto pouco aceitável que alguém, me diga, que não percebe de poesia. Se é humano, se sente, se sente o que lê, é porque percebe alguma coisa de poesia. E isso que se sente é, para mim, o mais importante. Não me interessa, a priori, se um poeta é pública ou criticamente reconhecido. A importância do poeta não deve, no limite, advir de ser poeta, mas antes de ser homem.
Quero com isto dizer que, ao ler um livro (de poesia) a minha atitude é sempre, desde logo, de me julgar enquanto leitor, tentar definir em que é que a obra me despertou os sentidos, se os despertou, ou em que é que me foi, se o foi, completamente indiferente. Sabê-lo não me diz nada acerca da qualidade do mesmo, nem é suposto que diga. Mas diz-me muito acerca do livro em si, pelo menos enquanto objeto capaz de merecer, mais não seja, a minha indiferença. No fundo, ler poesia e tentar entender o que se leu, é mais uma maneira de nos conhecermos a nós próprios.

Fleming de Oliveira

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