quinta-feira, 29 de setembro de 2011

-Em Portugal, ainda há juízes.


-Em Portugal, ainda há juízes.
-O Dr. Francisco José Chichorro Rodrigues
(hoje Conselheiro Jubilado),
-O último Juiz de Direito da comarca de Alcobaça,
antes de 25 de Abril de 1974.

(I)

Fleming de OLiveira
O mundo dos Tribunais não se resume, como é óbvio, aos Magistrados e Advogados.
Nunca considerei que o papel de um Magistrado fosse mais ou menos importante que o de Advogado. Ao abordar o tema da Justiça, não gostaria de ver aqui esquecido o último juiz de comarca em Alcobaça, antes do 25 de Abril, não propriamente por ter sido o último, o que não passaria de uma mera curiosidade de rodapé, mas por ter sido e é, uma personalidade riquíssima.
Infelizmente, nunca tive a oportunidade de trabalhar com ele, não obstante ter atingido o topo da carreira, mas ultimamente temo-nos encontrado algumas vezes, o que permitiu continuar a aprender muitas coisas sobre a vida e a nossa profissão.
Trata-se do Senhor Juiz Conselheiro (jubilado) Francisco José Chichorro Rodrigues, juiz em Alcobaça, entre Novembro de 1972 e Abril de 1974. O Dr. Chichorro Rodrigues, não era um novato imberbe, quando chegou a Alcobaça. Fizera, o necessário percurso do M.P. e na Judicatura, andara por várias comarcas do País. A sólida formação de família (o Pai, reputado e experiente engenheiro e a Mãe, senhora de uma robusta e ancestral formação católica, apostólica, romana e de inflexível moral), deu-lhe boa capacidade de compreensão ou intuição das complexas realidades da vida, com que ao longo da carreira se iria confrontar. Realidades muitas vezes púdicas na forma (nos papéis), brutais no conteúdo (nos actos levados à barra). A intuição, aliás bem cultivada, também lhe permitiu pressentir, com frequência, a realidade das meias verdades, o tentar vestir com um manto diáfano a vergonha do acto, a crua e nua realidade humana, muito para além do que resulta das circunstanciais alegações do Procurador da República e do Advogado da defesa, como que inseguros e receosos no difícil e desconhecido percurso explicativo dos comportamentos humanos. Refugiam-se em fáceis, amplos e cómodos lavabos: os Códigos, sem necessidade de ter de encontrar a solução humana e concorde com a verdade e com a lei, como nos salientou numa conversa em Lisboa.
Chichorro Rodrigues, embora reputando-se a si próprio como conciliador, sempre gostou de julgar, decidir, nunca se furtou a isso, muito menos por comodismo. Quem o ouve, percebe que não é fácil ser juiz, pois implica julgar sem medo e sem cedências. Aliás, embora controversa a ideia, entendemos que ser juiz hoje é mais difícil do que há umas três dezenas de anos ou mais. E quanto mais democrática for a sociedade, mais difícil se torna.
Julgar, direi mesmo, é um acto de coragem. Julgar num Tribunal Plenário, no tempo da outra senhora, era muito mais fácil, pois não era necessário coragem. Apenas homologar um acordo, que em princípio, representa a vontade das partes, antes ferozes ou irredutíveis litigantes, é não assumir responsabilidade sobre a solução encontrada. Não foi o Juiz quem assim decidiu, outrossim as partes, ainda que ele haja tido participação relevante na formação do acordo, muito mais que as procurando convencer sobre as vantagens de se entenderem, o que leva uma a pensar (e porque não o seu Advogado?): é melhor fazer o acordo, porque ninguém sabe como ele vai decidir, se a meu favor ou contra; assim, eu perco menos. E a outra: pelo menos ganho parte do que pedi.

Como era ser juiz antes e depois do 25 de Abril, numa comarca de província como Alcobaça?
Como Magistrado, afirma pelo menos com aparente convicção que nunca sofreu pressões de natureza política, nunca teve nenhum contacto com a Pide ou seu agente, no sentido de tentarem influenciar uma decisão. Não sendo militante ou amigo do Regime (nem seu opositor), nem por isso foi injustiçado nas classificações ou progressão na carreira. Nessa altura, a maioria dos magistrados não se imiscuía na coisa política, salvo os que queriam desempenhar funções fora da carreira, como os Tribunais Plenários (esses sim para além méritos profissionais, eram necessariamente Desembargadores pelo menos, tinham de ser de confiança política), o que aliás se encontrava fora dos seus interesses pessoais e profissionais. As relações que em Alcobaça manteve com Advogados, eram apenas, os Dr. Amílcar Magalhães, Manuel de Almeida e José Bento da Silva, funcionários José Maria Cascão, Domingos Grilo e António Vergas Alexandre, entre outros, que já cá não estão, PS.P. e G.N.R., foram boas e cordeais. O respeito era natural recíproco. Sabia que a P.S.P. e G.N.R., por vezes praticavam abusos nas esquadras, mas não só, mas nunca me chegaram ao conhecimento casos concretos, seja em Mogadouro, Póvoa de Varzim, Esposende ou Alcobaça, comarcas onde trabalhou. O único caso de que se recorda, ligado aliás de certo modo à G.N.R. ocorreu em Porto de Mós. Tinha chegado a Alcobaça há pouco tempo e ia pela primeira vez, Dezembro de 1972, fazer asa, num Colectivo que ali se realizava ali. O tribunal era composto pelo Juiz de Círculo, de Leiria,, que presidia. Os asa eram os Juízes de Alcobaça e Porto de Mós. Ao chegar ao Tribunal ficou impressionado com o ambiente efervescente que se vivia à volta. Ia fazer-se o julgamento de uns quantos populares acusados pela G.N.R. de terem reagido a uma carga no adro de uma igreja. O Corregedor, ao ver o que se estava a passar, ficou também perturbado, não quis fazer o julgamento, que foi adiado sine die talvez por compreender a reacção popular, o que política e publicamente não lhe seria fácil reconhecer, pelo que se arranjou um pretexto qualquer. Chichorro Rodrigues não sabe qual foi o destino deste processo, ao qual nunca mais foi chamado. Um ano e tal depois, chegou o 25 de Abri.
Durante o tempo em que trabalhou em Alcobaça, dado a facilidade de relacionamento, conheceu pessoas. bem como muitos usos e costumes. Note-se que Chichorro Rodrigues esteve desde sempre relacionado com esta região, o Oeste. Natural de Torres Vedras, a família tinha uma casa em S. Martinho do Porto, que utilizava assiduamente e seu sogro, nos anos quarenta, foi Comandante da Capitania o Porto da Nazaré. Estando juiz em Alcobaça, ouviu um dia um pescador dizer à mulher, para a irritar, Oh mulher, por mais que te esforces não consegues mijar contra a parede. Ora aqui está, bem sintetizada, segundo Chichorro Rodrigues a profunda e complexa razão porque as senhoras se despacham muito mais devagar nas casas de banho onde fazem sempre filas. O seu sogro contava que, um dia, tendo ido à Igreja do Sítio da Nazaré perguntou ao sacristão, senhor António, como iam as coisas. A resposta foi pronta: Senhor Comandante, isto aqui agora está um pavor, não faz ideia, não há movimento nenhum. A Senhora de Fátima foi o diabo que apareceu à Senhora da Nazaré.
A propósito das relações com Advogados, Chichorro Rodrigues recorda que se encontrando já em Oeiras, depois de ter transitado de Alcobaça, um Advogado que aqui conheceu, foi ao seu gabinete dizer-lhe que nunca mais esqueceu uma coisa que ele lhe havia dito em Alcobaça.
O quê?
O tal advogado terá então comentado que não percebia como os Magistrados ganhavam tão pouco, ao que o Juiz Chichorro Rodrigues lhe respondeu, deixando-o embatucado, que não se esquecesse que ali na secretaria, escrivães, escriturários, oficiais de diligências ganhavam ainda menos e tinham de viver. A solidariedade que sempre pretendeu manter com os que trabalharam consigo, concretamente funcionários, levou-a a que em Oeiras, tivesse de adoptar, por sua conta e risco, uma medida revolucionária dentro da Revolução. Para defender os funcionários do aumento rápido da litigância, sem que houvesse contrapartidas por parte do Poder, em termos de condições de trabalho que se mantinham inalteráveis, decidiu fechar por três meses a Distribuição de Processos que não fossem urgentes, de modo a pressionar o Conselho Superior da Magistratura a criar o terceiro Juízo, como veio a acontecer.
As pressões que sofreu numa comarca difícil, como Oeiras, depois do 25 de Abril, foram mais fruto do clima de convulsão que se vivia, mas que não obstante permitia encontrar as soluções que pareciam mais adequadas ao caso concreto, de bom senso e que as pessoas aceitavam como justiça. Houve um período que o País viveu sem Lei Fundamental, a Constituição de 1933 estava abolida e a de 1975 ainda não existia. Chichorro Rodrigues salienta que teve sempre a preocupação de distinguir Justiça de Direito pois, o Direito é para os intelectuais, embora parta de pressuposto que quem faz Justiça tem de saber de Direito. O Direito tende a ser justo. Mas, por vezes, as decisões podem ir contra a Justiça, para serem conforme o Direito, o que sempre o incomodou. Também nunca apreciou a mediatização de casos judiciais, que não a serve a justiça. O juiz que tem verdadeira noção da importância da sua função, não lhe interessa que mediatizem as suas decisões. Os juízes só não erram por acaso. e tenho a certeza que algumas vezes errei. Sou um homem, como qualquer outro.
Mas este é um dado com que há que lidar. A cada vez maior exposição pública das decisões judiciais potencia as críticas, sejam construtivas, demagógicas e/ou populistas, o que, por si só, não é negativo, desde que haja o cuidado de evitar generalizações absurdas. Nem as decisões dos tribunais são sempre perfeitas, nem as que o não são, e por isso são notícia, constituem a regra. A arrogância de qualquer dos lados, não dá bons frutos. A verdade absoluta não existe em Direito, nem o jornalista (ou a opinião pública) tem sempre razão. Neste contexto, exige-se ao juiz uma cultura capaz de enfrentar um desafio que nunca estará ganho, nem termina, aceitar a realidade e responder com uma cada vez maior exigência de fundamentação e compreensibilidade, adequação das decisões.

O Juiz Edgar Taborda Lopes, entende nesta linha de pensamento, se bem o interpretamos, tal como Chichorro Rodrigues, que a era que nos coube viver não tem paralelo no passado. Nunca houve tantos juízes, nunca houve tantos processos (nunca se trabalhou tanto nos tribunais), nunca houve tantos (e tão predadores) órgãos de comunicação social, nunca a qualidade da produção legislativa foi tão má, como nunca a sua quantidade foi tão inflacionada. A sociedade exige cada vez mais dos seus juízes, mas encara-os com cada vez mais desconfiança. Tudo o que tem que ver com o mundo judiciário expõe, hoje em dia, todos os intervenientes a um circo mediático, para o qual uns estão mais preparados do que outros.
Há uns tempos, o Desembargador Rui Rangel comentou, num artigo de jornal, uma decisão judicial, considerando que ser juiz não é só conhecer a lei e os códigos de cor. Se não, mais valia o Estado contratar máquinas para debitarem justiça pronta e desumana. O rigor técnico-formal das decisões judiciais não pode esquecer a componente humana que está presente no acto de fazer justiça.
Rangel admitiu que não lhe era fácil escrever aquele artigo, que mereceu a censura de alguns colegas, até porque reconhece que os juízes têm dificuldades em lidar com a crítica, porque reina, no meio judiciário, uma mentalidade de protecção excessivamente corporativa.
No seu artigo, Rui Rangel considerou, admitimos que Chichorro Rodrigues subscreveria como nós, uma postura semelhante que a decisão tomada pelo Tribunal era cega, brutalmente injusta e desproporcional, ao considerar que tinha vencido a ditadura do Direito e perdido os valores humanos da Justiça.
Chichorro Rodrigues gosta de recordar aquela vez, já em democracia, que só a muito custo obedeci à lei de processo, fazendo uma alocução final à ré, acusada de crime muito grave. Mais do que falar sobre o desvalor do acto assim condenado, o que se me afigurava uma nova pena para aquele destroçado ser (a ré), e injúria aos assistentes, dei-me a filosofar sobre o valor incomensurável da vida, a insubstituibilidade de uma vida humana, a ausência de justificação em quaisquer circunstâncias para o homem matar o homem. Também falei do amor. Terminei com uma mensagem à ré, significando-lhe o alívio que para ela representava o termo do calvário de mais de quatro anos de incertezas, e de que, cumprida a pena, estaria expiada a sua dívida perante os homens, e pago aquilo que eles a haviam julgado ser-lhes devedora.
Antes de ser juiz, e no prosseguimento normal de progressão na carreira, Chichorro Rodrigues foi Delegado do Procurador da República, na Comarca de Mogadouro, em 1958. Ainda hoje se lembra da triste figura que era o Manuel Azevedo. Frágil, com não mais de sete palmos de comprido, era de enxutas as poucas carnes. Esparsas cãs nasciam-lhe da testa alta, curtida pelos frígidos nove meses de Inverno, tisnada nos restantes meses de abrasador inferno, vividos pelos escalvados caminhos, e desabrigadas encostas e estradas. Os olhitos azuis retinham, ainda, mal escondida malícia.
Quando o viu pela primeira vez, e lhe tomou declarações como agente do M.P., estava acusado pelos pais de Susana, uma escorreita cachopa de 17 anos, de verdes olhos, de carnudos lábios, de ter a estuprado.
Aquilo que a Susana contava era algo corriqueiro. Vizinha do senhor Manuel Azevedo, terminados os poucos estudos, como não fosse precisa em casa, pois os pais tinham criados de servir, ia a casa do velhote, cantoneiro aposentado, ajudá-lo e à mulher.. A confiança entre ele e a cachopa foi crescendo à medida que as formas dela também se iam arredondando. Até que um dia aconteceu. Talvez porque Ti’Maria tardou a chegar a casa. O rebentou frutificou no ventre da cachopa e nasceu. Todos diziam que era a cara chapada do velho Azevedo. Este foi levado a julgamento, Processo de Querela.. Ao tempo, para se ser condenado por estupro, era preciso a prova, cumulativa, de três circunstâncias: que a rapariga fosse virgem, maior de dezasseis anos, menor de dezoito e tivesse sido seduzida.
Os três juízes, de tudo se convenceram, salvo quem fora o sedutor! O estupro parecia afastado, como também percebeu o Delegado do Procurador da República, Chichorro Rodrigues. Ficava apenas o atentado ao pudor e daí o Tribunal não podia fugir, os factos falavam por si. O Azevedo foi condenado a nove meses de prisão, substituídos por igual período de multa. Com a leitura da sentença, paternalmente, o corregedor admoestou-o, mandando-o em paz e liberdad, por ora. Decorreu o tempo para o velho Azevedo pagar a multa, o que não fez, não por não querer, mas por não poder. Iria cumprir aqueles meses na cadeia? Chichorro Rodrigues conta que me procurou a velhinha Ti’ Maria, companheira do Azevedo. Pedia clemência. Mais de cinquenta anos levavam de matrimónio e nada tinham guardado, salvo algumas, poucas, saudades. Pedira para o Brasil auxílio a um irmão do marido… o pouco dinheiro necessário estaria a chegar. O senhor doutor Delegado não podia esperar?
A lei era clara, categórica.
Não pagando teria de ir para a cadeia, os nove meses, como o novato magistrado do MP bem sabia. Chichorro Rodrigues conta que negligenciei a minha obrigação de promover a sua entrada na prisão, retendo o processo em meu poder. Mas tudo tem limites. Felizmente antes de estes chegarem, a luz salvadora surgiu. Lembrei-me de abrir uma subscrição entre os trabalhadores do foro para conseguir dinheiro e pagar a multa. Resultou! Assim, não foi parar à cadeia o velho Azevedo. Nunca lá estivera na sua longa existência.
Nem iria estar.

(CONTINUA)

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