(II)
NO TEMPO DE SOARES, CUNHAL E OUTROS.
O PREC também passou por Alcobaça
José Rodrigues dos Santos escreveu que, o acontecimento é objectivo, porque ele realmente se produziu, mas o seu relato é subjectivo porque, ao se manifestar e ser transformado em facto, seja ele histórico, científico ou jornalístico, é reconstruído cognitivamente pela percepção e pelo discurso, ambos de natureza marcadamente subjectiva e incapazes de apreenderem ou exprimirem o objecto tal como ele é ontologicamente.
Os factos da História, nunca nos chegam puros, visto que não existem, nem podem existir sob uma forma pura, observou, numa palestra proferida na Universidade de Cambridge, o conhecido historiador britânico Edward Carr, sublinhando que os factos surgem sempre refractados através da mente do registador. O que significa que os factos nunca falam por si, o autor do texto é que os faz falar. Os factos só falam quando o historiador chama a atenção para eles, salientou Carr. É ele quem decide a que factos deve dar voz, por que ordem e em que contexto.
Dei relevância a factos, por alguns tidos por menores, desconectados da História, como é vulgarmente entendida pelos estudiosos, pois referem-se apenas ao seu carácter interno (local) e o interesse decorre de facto ser inusitado, pitoresco, em suma, de pouca importância para um manual escolar ou um estranho. Ao capturar o acontecimento no meio do turbilhão, estes faits divers pretendem deixar entrever o que neles se esconde. Em geral remetem, como veremos, para factos considerados leves, curiosos e sem comprometer seriamente ninguém. Este texto, contém notas pessoais, faits divers ou informações a latere da grande política que se desenvolvia a nível nacional. Daí o efeito no gosto popular, por casos sem importância num grande registo. Pontuais, circunscritos dentro de limites observáveis, os factos apresentam-se mas nem sempre se explicam. Como estrutura fechada, pura imanência, o fait divers, crónica do efémero, contém em si todo o saber. Os faits divers tanto divertem, quanto incomodam ou fazem pensar. Estão no rumor da época, povoando a memória e o imaginário colectivos, convocando, às vezes, decisões e providências mais oficiais. O registo do insignificante pode adquirir valor alegórico. O inusitado, o pitoresco, ronda por de trás do fait divers, sendo o oposto da epopeia. Entre outras características, o faits divers é pois emanente, não apresenta restrições de contexto ou duração, tal como não remete para qualquer coisa, que não seja ele mesmo. Trata-se de um elemento fechado em si, uma arma neutra, capaz de gerar espanto imediato, mas ser esquecida em pouco tempo, sem implicar alterações sociais e históricas, ou advir delas.
O filósofo americano George Santayana, escreveu que um povo que não recorda o seu passado está condenado a vivê-lo de novo. Esta ideia tem sido tratada de várias formas. Eduardo Lourenço escreveu que em cada momento da sua existência, um povo define-se contra a morte e só tem historia, não porque os tempos se sucedem naturalmente aos tempos, os acontecimentos aos acontecimentos, mas porque, através de tempos e acontecimentos, se assume como projecto se constitui como destino. Um destino quer dizer uma missão uma finalidade a alcançar, um obstáculo a vencer, um viver assumido como superação do que num povo é passividade, inércia, abandono à vontade alheia, decadência, e por fim, estagnação e morte.
Os historiadores, ainda que não profissionais, têm o dever de impedir que o passado seja apagado ou reescrito.
A memória dos povos não é um peso morto das recordações do passado nem, repete-se, uma crónica desapaixonada dos acontecimentos. Este longo preâmbulo é uma justificação da razão porque valorizo os pequenos incidentes e detalhes adiante descritos, sempre que possível com os nomes dos figurantes e a sua localização, material e temporal.
A História não é apenas, em suma, o relato dos factos. Há que ter em conta os olhos de observador, se são atentos ou não, o seu coração para perceber até que ponto as suas emoções deturpam ou não a realidade. A capacidade para ter a certeza de que compreende o que está a relatar e até o seu carácter, para ter a certeza de que a eventual adulteração do factor relatado, resulta tão só de meros factores acidentais e atribuíveis à condição de humano, e não de desonestidade intelectual, manifestação grosseira ou subtil, num sentido de adulterar a visão final com fins inconfessáveis.
Bem sei não ser fácil mudar a verdade instituída. A história maniqueísta é muito simples, pois há de um lado os bons e do outro os maus, que normalmente corresponde aos vencedores e aos vencidos. É manifesto que nunca se sabe tudo e a História do PREC é ainda apaixonada. Em alguns casos, os protagonistas não explicam o porquê das suas atitudes e noutros querem reaparecer e reescrever a História. Outros nem querem mesmo recordar…
Salazar está bem menos vivo do que se pensa. Para as pessoas que nasceram nos anos 1970 ou 1980, nem pertence ao passado imediato. A pouco e pouco, o ditador deixa de existir na memória de pessoas concretas e torna-se um nome abstracto, impresso entre duas datas nos livros de História. Isto vale tanto para os saudosistas do fascismo como para os discursos construídos em torno da memória do combate à ditadura.
O Estado Novo morreu, está bem enterrado sob sete palmos de terra, tal como Salazar. Deixá-los estar.
Encerrada há muito a experiência do PREC, antigos/actuais empresários e trabalhadores surgem hoje irmanados num sentimento de frustração e de tristeza. As clivagens sociais foram reconstruídas, reformuladas ou acentuadas, mas patrões e operários ou jornaleiros têm, ao menos, um traço de união, o desencanto com a situação político-económica. Os grupos, outrora em conflito, acabaram por perceber que o amargurado destino de Alcobaça, se não o do País, têm origem em causas que transcendiam o regime de produção industrial ou rural.
Para alguns, o PREC ainda representa um passado que não quer passar. Mas, para lá de ressentimentos passionais, que se têm esbatido, existem dados tão objectivos e singelos como a melhoria das condições de vida, dos salários, do trabalho e da assistência social.
Fleming de OLiveira
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