terça-feira, 13 de setembro de 2011

COSTUMES DE OUTRORA


-O S. MARTINHO (vai à adega e prova o vinho)
-OS DIAS DE TODOS OS SANTOS E FIÉIS
DEFUNTOS
-O PÃO POR DEUS
-A MATANÇA DO PORCO
-A MORCELA DE ARROZ
-O CAPADOR (arreda para trás menino!)

Nos anos sessenta (Sec.XX), a Orquestra Típica e Coral de Alcobaça, interpretava com enorme aplauso um leque variado de música popular.
Tinha no seu repertório uma peça intitulada Romaria, com letra de João Nobre, que vamos recordar, que nos foi facultada por José António Crespo:
Quem queira dançar bem o vira// Não pense abraçar seu par// Que nas suas voltas, quem gira// É sempre de braços no ar!
E ninguém se queixa da sorte// Pois tudo ali é natural//Como a romaria do Norte// Não há de certo em Portugal.
Dei voltas sem conta// No vira, ao dançar,// E não fiquei tonta// De tanto rodar.
Pois não me incomoda// Girar, eu já vi,// A cabeça à roda,// Se a tenho é por ti.
Vai-se a noite, vem o dia// E tudo ali terminou// Acabou-se a romaria// Mas a saudade ficou.
Com ela também uma ‘sp’rança// De vermos ainda arraiais// Em que a gente nunca se cansa// E o vira não acaba mais.

Ti’ Zé das Tojeiras, também se lembra bem do S. Martinho, quando de verruma em punho ia abrir um orifício na madeira do pipo, de onde sairia, de certeza certa, um belo vinho. Bebido o copo, com sincera reverência, tapava o buraco com um olhar embevecido, pois ele bem sabia que ali estava o produto da sua lavra de um ano, com aroma e paladar inconfundíveis em qualquer parte do Mundo. Vinho não há melhor de que o das encostas da Castanheira ou dos Montes, terra de muito vinho e poucas fontes. E disso lá ele percebia.

Antes do S. Martinho há uma data e um momento especialmente relevantes no sentimento popular. Todos os anos, no dia 2 de Novembro multidões, como que procissões, visitavam o cemitério, talvez mais conscienciosamente que hoje, as campas dos seus mortos. Ao final do dia, já se encontravam muitas velas a arder. Aquela data não foi escolhida ao acaso. A Igreja Católica celebra no dia 1, Todos os Santos, e no dia 2, os Fiéis Defuntos. O culto dos mortos no dia que lhes é dedicado, traduz-se em ritos nem sempre iguais, embora com o comum da romagem ao cemitério, a colocação de flores e velas sobre as campas. Esta é uma prática corrente, tais celebrações, costumes e crenças existem em todos os países da Europa, onde se acredita, embora com variantes, que no dia consagrado aos mortos as suas almas, isoladas ou em grupo, visitam na terra os lugares que habitaram em vida. Moisés Espírito Santo, escreveu que desde os tempos mais arcaicos, anteriores ao cristianismo, que os mortos eram celebrados no princípio do inverno. O frio, a chuva, as sombras, tudo isto contribui para a relação entre o inverno e a morte, época dos frutos secos (figos, nozes, uvas passas, castanhas). O fruto seco é um fruto morto. É a morte da terra que tmbém tem como simbolismo a morte das pessoas. O culto dos mortos e os seus rituais também têm o efeito de acalmar. São uma recompensa por todas as injustiças que lhes possam ter sido feitas em vida. Apaziguar a memória, o espírito dos mortos é próprio de todas as sociedades.
Crentes e não-crentes recordam, sem sentimento mórbido ou de luto portanto, os que já partiram em gestos traduzidos por um simples ramo de crisântemos, uma oração ou mesmo pelo simples recolhimento, frente à sepultura. Basta um ramo de flores, não é preciso um braçado. Ramos e vasos de flores, das mais variadas qualidades, cores e tamanhos. Velas grandes, pequenas, brancas, vermelhas, amarelas, lamparinas, castiçais ou pequenas taças de cera. Tudo isto e, muito mais, é colocado ao dispor das pessoas, nas semanas que antecedem o um ou dois de Novembro. O momento é de comprar velas, encomendar flores, porque o que importa é deixar as campas das familiares (é a voz do sangue, sabe-se que estão ali pessoas muito queridas) devidamente ornamentadas para o grande dia. Gestos que marcam a saudade dos que já não pertencem ao número dos vivos, do resto da família desaparecido... e dos amigos. Em cada recanto depara-se com a fotografia de um conhecido que traz à memória recordações, algumas longínquas outras bem mais próximas...uma lágrima teimosa que não consigue reter.
A visita ao cemitério nesse momento não significa pois sacrifício para cada um que lá vai. Não é uma seca. Antes, revela a sensibilidade humana, muito portuguesa, perante o mistério da morte, a condição mortal do homem.
A comemoração dos defuntos está de há muito na sequência da solenidade de Todos os Santos. Nesta festa, põe-se em relevo o exemplo de um sem-número de cristãos, cujo nome desconhecemos, mas que procuraram, na existência terrena, a santidade. Gente de carne e osso que levou uma vida normal, no meio de angústias, desilusões, traições, alegrias, sofrimentos e privações. E, para quem a morte era, apenas, a passagem para uma outra vida sem fim. O dia dos defuntos, obriga ainda que de forma fugaz, a olhar para o que é cada um. Questiona-nos sobre a brevidade dos dias que que se vivem. E a considerar que se torna urgente dar um verdadeiro sentido à vida incerta. Não por medo, mas por uma fidelidade às convicções de consciência. O Dia dos Fiéis Defuntos, no campo ou na cidade, é uma momento importante no sentimento português.
Coincidente com Os Santos, é o Pão por Deus, que tinha tradicionalmente nesse dia o seu ponto alto, como recorda Ti’ Zé das Tojeiras..

Eram os tempos difíceis do pós II guerra e, em particular, da austeridade do Estado Novo. Cada dia do calendário litúrgico era respeitado com atenção. Os sinos da igreja tocavam as Avé Marias e havia procissões nos Ramos, na Quinta-Feira da Ascensão e, nas festas da terra (Stª Marta ou S. Vicente). Os sinos ouviam-se bem cedo porque o Padre chamava os fiéis à missa da manhã e, ao Domingo, a ida aos principais actos religiosos, era uma espécie de obrigação de que se gostava e não dispensava.
-Ó Ti’ Zé dá um bolinho?
Esta será, provavelmente, uma das tradições antigas e arreigadas, dos distritos de Coimbra e Leiria (Concelho de Alcobaça, obviamente), que se estende pelo litoral até perto de Lisboa e que mais se aguentou nos nossos dias. Dada a sua especial ligação às crianças e o seu simbolismo afectivo e etnográfico, continua a conquistar a adesão das populações rurais.
Broas, rebuçados, frutos secos ou mesmo uma moedinha, iam enchendo a saca, normalmente de pano, usada a tiracolo. Mas, mais do que essas oferendas, era importante o convívio da pequenada, a diversão e o acolhimento afável dos adultos. Muitos pais acompanhavam os mais novos, meninos e meninas, e também eles acabavam contagiados pelo divertimento. Era um dia diferente, todos estavam prontos para partilhar uma guloseima, um acolhimento, deixar um sorriso a cada pedinte. Dia alegre, solidário, pacífico, entregue ao ritmo irrequieto, saltitante e alegre dos bandos de criançada a ver quem conseguia encher mais rapidamente o saco.
Cremos diferentemente do que também escreveu Moisés Espírito Santo, natural da Batalha, professor universitário e sociólogo das religiões, que era mesmo a necessidade que motivou, em tempos remotos, esta andança. A fome chegou mesmo a ser uma realidade presente na sociedade portuguesa, sobretudo rural. Não era raro encontrar mendigos pela rua (a mendicidade nunca se extinguiu por decreto!!!), à procura do sustento, que não conseguiam obter de outra forma. Neste dia, abriam-se as portas e punha-se sobre a mesa o que havia para comer. Havia que aproveitar. Pedir Pão por Deus, aliava o útil ao agradável. Era, por isso, hábito neste dia os mais velhos saírem também de casa, para dois dedos de conversa com os vizinhos, uma merenda em comum, um teste à qualidade da água-pé nas adegas mais fornecidas e para o fim da tarde, saciados os vivos, recordarem-se os mortos. Mas como dissemos não é propriamente esta a elaborada tese de Espírito Santo, acerca da origem do Pão Por Deus, pois que teria a ver com o fim das colheitas. Outrora os trabalhadores nem sempre eram pagos, porque não eram assalariados. Então no início do inverno, os proprietários pagavam os favores aos que trabalhavam a terra. São vestígios muito arcaicos do pagamento em géneros, em que as pessoas batiam à porta dos proprietários que ofereciam um pouco do que a casa produzia. O Pão por Deus tem origem nesses antigos costumes do trabalho não pago. E também está ligado à solidariedade e à luta pela subsistência.
A título de curiosidade, refira-se que o signo que simboliza a época, é o Escorpião que vai de 24 de Outubro a 22 de Novembro. Os estudiosos da matéria entendem que o Escorpião nasceu com o conhecimento do segredo da vida e da morte e com a capacidade de vencer ambas. Também personifica a ressureição do túmulo.
Quanto ao pessoal que trabalhava na agricultura, dizia-se que o fazia de sol a sol, era pago em dinheiro. Antes da II Guerra ganhava-se cerca de 20$00 por dia com direito a vinho. Pelo menos, assim acontecia na casa de Joaquim Magalhães ou outros proprietários rurais da zona. Na prática porém, embora duro e violento, com chuva, sol ou vento, o trabalho na agricultura, raramente ultrapassava as oito horas por dia.
No dia a dia, as refeições, variavam na composição, segundo a situação socio-económica de cada um e a estação do ano. Começavam, habitualmente de manhã cedo pelo mata-bicho, às vezes só aguardente, que consistia numas sopas de café, um resto de sardinha ou de algum outro conduto que tinha sobrado da ceia anterior. Às 10h, havia lugar a um pequeno descanso, o sobrealmoço, onde se comia sardinha assada ou toucino com broa e bebia um copo de vinho ou água-pé. Pelas 13h, vinha o jantar, composto de sopa de feijão com carne de porco, batatas, broa e claro a pinga (vinho ou água pé), seguido de uma retemperadora sesta. Pois no campo dormia-se para reiniciar o serviço, porque era trabalho que moía o corpo sobretudo quando o calor apertava e o sol queimava, dando à pele um tom escurecido e velho, bem diferente do bronze das praias do litoral português. E alguns até cantavam, especialmente as mulheres. A comer e a cantar basta começar, lá diz o ditado, e basta também que um(a) puxe pela voz e comece a entoar uma moda, para logo outro(a)s se juntarem. Eram, frequentemente, modas tristes, mas aliviavam o trabalho. Hoje em dia é com mágua que D. Gertrudes Micaela constata que já ninguém canta. A gente anda triste, observa, salientando o egoísmo como a grande explicação para a depressão nacional. As pessoas têm tudo, melhores condições, mas há mais maldade, considera com simplicidade. Apesar da distância, Ti’ Xico Ferreiro, bem como o Ti’ Manel do Canto, ainda se recordam de, em criança, andarem com os pais no campo, assim como tantos outros meninos. As pessoas viviam em comunidade e enquanto não se vindimava, ninguém dava início à Adiafa. Eram outros tempos, não havia os interesses que há hoje, apontaram de certo modo em consonância.Também João Manuel da Silveira, vice-presidente da Associação, se lembra bem de andar no campo, há quase 40 anos atrás, a trabalhar de manhã à noite, num trabalho que se prolongavapara além do final do verão. As pessoas juntavam-se e todos participavam, lembrou com alguma mágoa. Paravam quando o sol ia mais alto, nas horas de maior calor, para repor as forças e merendar. Não podia faltar o pão caseiro, as batatas com bacalhau, e a cabaça de vinho que rodava de boca em boca. Havia tempo para descansar, para cantar e até para dançar. Bastava beber um copo para ficarmos alegres. Também o vinho era melhor, que as vinhas andavam mais cuidadas, assim como os campos. A conversa aviva-lhes a memória e vão contando histórias de vida. Estas e outras coisas bem simples estão a perder-se com o tempo, as pessoas têm pressa para tudo, inclusive para ler, comer, beber ou conversar. As pessoas não se cumprimentam na rua vomo antigamente, nem pedem desculpas quando se esbarram. Os homens já não usam chapéus e por sua vez não tiram o boné quando se sentam à mesa, cumprimentam uma senhora ou entram em casa. As mulheres não possuem mais uma postura de mulheres, pois ao lutar pelos seus direitos, acabaram por adoptar uma postura agressiva no andar, no vestir, no agir ou no ser. Perdeu-se enfim a delicadeza de existir, concordam. Perdeu-se o sentido de plantar flores tão só para se ter o aroma no ar junto a casa. É mais fácil apanhá-las do jardim do vizinho, ou comprar mesmo de plástico na loja do chinês (já que não morrem).
Cerca das 17h, era a merenda, e o momento de mais um pequeno descanso, aonde se comia broa com um conduto, acompanhada como sempre pela pinga. Às 20h, em casa e em família, a ceia, era constituída de sopa de feijão com hortaliça, broa (pão caseiro), umas azeitonas e algo mais que se arranjasse.

O porco, que havia em quase todas as casas, era criado em pocilgas domésticas, aonde se colocava mato para previnir o mau cheiro, o qual depois servia para estrume. Em casa de Joaquim Pereira de Magalhães sempre houve um porco. O animal era alimentado com lavadura (água a ferver sobre a loiça aonde se havia comido e à qual se juntava farinha de milho), beterrrava, abóbora, fruta ou couves, se houvesse. Se tivesse pelo menos um ano, matava-se no Inverno. Em Cós, Montes e Alpedriz, o porco em termos de gordura e paladar, tido como melhor, era o chamado Porco de Valado de Frades, que se distinguia dos demais por ter as orelhas caídas e manchas pretas e brancas. A matança do porco tinha um ritual, por vezes, festivo e que se pretendia cultivar ou estimular. O porco era, entre todos os animais o mais bem tratado pois, nada fazia (nem podia fazer) durante a vida, que aliás é curta. Nasce, cria-se e engorda-se, com o objectivo, que é a morte para satisfazer as necessidades ou o prazer gastronómico. Mas, por vezes, o porco era pouco robusto, magrito, tal como a economia da família. Em casa dos pais de Zé Narciso, nos Montes, houve a certa altura um porco que andava muito magro, com ar doente e a cambalear. A sua saúde não se afigurava promissora, desde logo devido ao sintomático e bastante pêlo em cima do lombo. Assim, foi decidido, em desespero de causa, chamar uma pessoa que percebia do assunto, para ver se se salvava o animal, de modo ainda a poder levá-lo para a salgadeira. Quando o homem chegou, fez o pronto diagnóstico, pelo que disse à rapariga que o recebeu, que lhe esfregassem, untassem, a gordura das galinhas no lombo, o que lhe iria fazer bem, e curar. Porém, a rapariga, ao ouvir isso, virou-se para o veterinário e respondeu, que
-O nosso problema é que as galinhas também não têm gordura.
-Pois é, passam fome não é? Olha pequena, o problema do porco, a doença que tem, é apenas fome.
A matança do porco há sessenta ou setenta anos no concelho de Alcobaça, constituía um momento alto, motivo de festa e reunião de familiares e amigos. A matança do porco, nos Montes, era realizada por quase todas as famílias e tinha lugar no inverno, entre Novembro e Fevereiro. Nela tomavam parte os familiares mais chegados, alguns que até vinham de fora, como do Porto do Carro ou Maceira. Normalmente, marcava-se apenas o sábado para a cerimónia. Matava-se de manhã cedo e desmanchava-se da parte de tarde.
No início dos trabalhos, tomava-se o indispensável mata-bicho, aguardente, acompanhado de filhoses e, durante a lavagem do animal, vinho tinto quente com açúcar, sangue cozido e de novo filhoses. Ao mesmo tempo que o matador espetava a lâmina da faca, uma mulher ou rapariga aproximava-se com um alguidar, com uma mão cheia de sal e uma colher de pau, que colocava debaixo da sangria. À medida que o porco sangrava em borbotão, ela ia mexendo o sangue no alguidar, para evitar que coagulasse, operação que continuaria até ele estar frio. Ao fim de algum tempo, o porco deixava de grunhir, estava mais que morto. Mas nem sempre a sangria tinha sucesso, devido à má direcção da facada, que não atingira o coração do animal. As mulheres lavavam as tripas. Com elas faziam os enchidos. Quando a matança durava dois dias, o que era menos vulgar, fazia-se no Sábado e a desmancha no Domingo de manhã. Do porco, tudo se aproveitava. As mantas de toucinho eram guardadas na salgadeira de madeira, os presuntos, a cabeça, as orelhas, os pés e as mãos, e os enchidos cuja preparação exigia cuidados e saberes especiais, passados ciosamente de mães para filhas. Os enchidos, primeiro, eram colocados na chaminé, pendurados em varas para o fumeiro. Depois, nalguns casos eram conservados em azeite, dentro de potes. As farinheiras, eram por sua vez colocadas em de arcas ou caixotes, envolvidas, alternadamente, em colmo de centeio. As morcelas ficavam penduradas ou em azeite. Na região de Alcobaça (pelo menos nas zonas mais chegadas a Leiria), são especialmente famosas as morcelas de arroz. A Alta Estremadura é a região por excelência das morcelas de arroz, existindo ao que dizem algumas senhoras cerca de 15 tipos diferentes.
No Concelho de Alcobaça são confeccionados diferentes tipos. Típica da região, a morcela de arroz é uma das iguarias mais características da Estremadura, que outrora se fazia na altura da matança. Querem a receita? O sangue fresco do porco é temperado com sal e pimenta, e diluído com vinagre e vinho. Junta-se carne entremeada de porco, cortada em pedaços miúdos, alho, cebola, salsa, cominhos e cravinhos e deixa-se marinar durante cerca de oito horas, mexendo de vez em quando. O arroz, cozido à parte e escorrido, é adicionado ao preparado. Enchem-se as tripas, depois de muito bem lavadas e esfregadas com limão. Podem ser servidas, após leve cozedura em água temperada com sal, louro e cebola tinto.

Mas também são recomendáveis para o paladar, as farinheiras, os paios com os lombos, os chouriços ou o negrinho. A preparação, fabrico e conservação mereciam cuidados especiais, para que tudo tivesse qualidade e pudesse ser consumido durante o ano, até à próxima matança. Isto não evitava que o toucinho, por vezes, se apresentasse amarelo (rançoso), mas não impedia o seu consumo, à falta de melhor, pois o que não mata, engorda. No dia da matança, em muitas casas comia-se sarrabulho e à noite costeletas com batatas. A banha de porco era conservada, com sal, em potes de barro. Hoje utilizam-se as arcas frigoríficas para guardar as mantas de toucinho. No antigamente, vinham até Alcobaça almocreves do Alentejo (alguns da zona de Reguengos) trocar presuntos por toucinho. Este, embora de menos valor, abonava mais pois, adubava as refeições permitindo alimentar, durante muito mais tempo, a filharada. Com o tempo, pelo menos nos Montes, as pessoas começaram a exigir mais toucinho e a dar em troca menos presunto. De entre os animais domésticos, o porco era um animal especial, que se utilizava apenas como alimento. Não se lhe exigia trabalho como vimos, mas tão somente que fosse bom de boca, que comesse muito para engordar ao longo do ano. Chegado o tempo próprio, atingido ou não esse fim, o bicho era sacrificado num ritual, para ser consumido ao longo do ano, fornecendo à família a gorda e saborosa carne fresca ou salgada, os presuntos, os enchidos, a morcela, a chouriça, as farinheiras, os paios, a banha com que se temperava a maior parte das comidas, que serviam de sustento à família até à matança do próximo animal, tanto na cozinha do dia a dia, como na cozinha festiva.
De acordo com a posse de terras, disponibilidades financeiras e espaço para engorda, cada família como acontecia com a de Joaquim Magalhães, comprava no princípio do ano alguns leitões, que, criava na pocilga, que alimentava de modo a ter tempo próprio para a matança e tratamento das carnes.

Antigamente, nos meios rurais era importante o papel do capador. Na zona do Casal Pardo, há ainda quem se lembre de Ti´Zé da Costa. Um dia, uma cliente procurou-o para lhe dizer que a porca que ele tinha capado dias antes, sangrava pelo orifício da capadura. Tendo o capador constatado essa realidade, não hesitou, não esteve com meias medidas. Perguntou à cliente quanto custava a porca e, sem qualquer hesitação, decidiu adquiri-la por 800$00, que depois conduziu a pé até casa, a esguichar sangue.
A história correu célere pela terra, a benefício dos créditos do nosso homem, mas o final da história ainda ficou mais curioso quando, meses depois num Domingo, Ti’ Zé colocou o animal em cima de uma carroça para o transportar ao adro da igreja, a fim de o mostrar a quem quisesse ver, finda a missa, isto é, que o animal estava bem de saúde e que nada de mal lhe tinha acontecido. Só aos 80 anos é que deixou, de visitar os seus clientes, tendo falecido de repente ao fim de respeitáveis 90 anos, plenos de humildade e uma boa dose de humor. Para além de vulgares constipações ou gripes, a família só lhe conheceu uma maleita quando, pelos seus 45 anos, teve um problema gastro-intestinal, o que o obrigou a ir trabalhar munido de um cantil de leite, no lugar do salpicão e do copio de branco ou tinto, o que o envergonhou e se recusava a recordar.
Ti’ Zé da Costa trabalhava bem e depressa. De lanceta em punho, ficava com os testículos do barrasco na mão. A garotada atraída pelo carpido, ia gozar-se com a cirurgia do capador, que por vezes tinha de recomendar:
-Arreda p’a trás.

FLEMING DE OLIVEIRA

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