-Como é (era) bom o nosso Natal
-A nossa Casa de Miramar (FO), de portadas verdes
-O extraordinário caso do homem de Matosinhos que
deitava fumo pelos olhos
-O milagreiro Senhor de Matosinhos
-A Avó Lícia e o Zé Quitolas
-O Menino Jesus e a Missa do Galo
-Vamos cantar as Janeiras
(I)
Lembro-me que a T. (Teresinha), com três ou quatro anos, me ter dito, numa ocasião em Alcobaça, que o Natal era, entre tudo, o que mais gostava.
Entendi por bem, recordar neste Natal de 2004, o de antigamente, e com ele algumas regras da Casa FO de Miramar. Natal que não é apenas dos tristes, dos velhos, das famílias, da melancolia, nem especialmente das crianças, como inconsciente por vezes se diz, quando se quer reduzi-lo, às prendas para-dar-e-receber, que se compram compulsivamente à última hora, em estilo de maratona azafamada.
Guardo o Natal dos Zicos e da nossa Casa de Miramar, na memória mais funda e de uma maneira muito especialmente resguardada, a ampla liturgia do tempo em que ele se fazia em Família, que é afinal o bem mais precioso e difícil de ter e manter. Quando se falava de Natal, associávamo-lo sempre à Família FO em volta da mesa, ao nascimento do Menino Jesus deitado nas palhinhas. Sempre entendi, desde o tempo em que mesmo em bico dos pés, mal chegava ao ramo mais baixo do pinheiro de Natal, que se fazia na Casa, engalanado num canto da sala de jantar num vaso de barro vermelho, envolto em papel brilhante, com luzinhas a acender e a apagar, fios prateados, bolas coloridas que se partiam com facilidade, algodão a fingir neve, que esta é a altura mais bonita, gentil, doce e feérica do ano. Às vezes, para dar ambiente, acendia-se o fogão de sala, que utilizava briquettes, que no seu abraço ajudava a afastar o frio e cujas brasas discretas e douradas faziam cintilar nos nossos olhos um sonho de encantar. Se existe um elemento de casa, com o qual muitas vezes sonhe no inverno, é mesmo a lareira. Ainda hoje, se há coisas que aprecio, é a lareira da casa dos Montes, que me permite ficar hipnotizado, durante algum tempo a olhar para as cintilantes chamas de uns troncos em brasa. As cidades crescem para cima e nos apartamentos, como o meu de Alcobaça, é muito difícil instalar uma lareira.
E não estou agora a pensar no bacalhau cozido da Noruega, assessorado por couves e ovo cozido, com azeite a ferver, rabanadas com canela, bolo-rei da Cunha ou da Peninsular, dado que ainda não havia o Continente ou o Pingo-Doce, aletria, mexidos, ou outros pitéus, de uma pomposa ceia, como manda a cartilha, aonde só iam as pessoas de família mais próximas, Tia Mira ou Tio Mário FO, ou na ansiedade das prendas.
Estou a pensar também na magia que essa fonte de luz, de sonhos e calor representava para todos nós, o tosco presépio de figuras de barro pintadas que nos deslumbrava, guardado de um ano para o outro numa caixa de cartão, montado com musgo que íamos apanhar húmido e verde a uma bouça ou à Gândara, rodeado de azevinho verde e vermelho, ao que parece também este agora em vias de extinção.... Esse Natal era o nosso, pois felizmente éramos dos sortudos que tinham sempre Natal e calor, estava presente a firme esperança que ia renascendo todos os anos.
Gosto de falar no Natal FO aos meus filhos e netos, que é bom ter Natal em casa, para saberem que não estamos sós e compartilhamos. Quem sabe, pode ser que um dia eles e muitos outros, consigam ajudar Deus a mudar o Mundo...
Em Ramalho Ortigão, anotei que o objecto do culto, da admiração, do entusiasmo, do enlevo dos pequenos do meu tempo, era o velho presépio, tão ingénuo, tão profundamente infantil, tão cheio de coisas risonhas, pitorescas, festivas, inesperadas.
(II)
E também estou a pensar nesse tempo, em que nada havia que nos afligisse, não havia artifícios nem charadas suficientemente graves, porque estava sempre alguém presente, como os Zicos e a Carminda, a olhar permanentemente por nós.
Voltando ao tema do Natal.
A Noite de Consoada na Casa FO, de Miramar, tinha vários momentos, todos igualmente importantes sem que possa valorizar mais uns que outros. As festas de Natal eram uma emoção, lembra com afecto a Náná. Durante uma larga temporada antes, a Mãe tocava ao piano (que aprendeu em menina nas Silva Monteiro, da Boavista, ao mesmo tempo que andava no colégio alemão) canções de Natal e nós cantávamos.
Cantávamos, mas como? que já não me lembro bem.
No dia de Natal, durante uns quinze minutos cantávamos o que já tínhamos ensaiado. A Mãe, punha-nos a colaborar no enfeite da Casa e o Pai ia connosco à Gândara para apanhar musgo, para fazermos o Presépio.
No tempo em que além do bacalhau com batatas e couves se comia perú à ceia de Natal, a Zica preparava um bife de vaca para o Tio Mário FO que, para nosso deslumbre, não esqueçamos que ele lidava com gado bravo, e até tinha uma tourinha para treinar na fábrica das camisas, na Rua da Picaria, ao lado da casa do Sá Carneiro, não comia animais de penas, segundo dizia por mera razão de sensibilidade !!!
Era o tempo em que o perú era caseiro, e para o amaciar, se embriagava antes de levar o pescoço à faca. Gostávamos de ver a Carminda pegar num funil, abrir-lhe o bico e deitar-lhe aguardente até que ficava aos trambolhões. Mas não nos deixava ver meter-lhe a faca no pescoço. Conta-se que uma vez, sendo bem criança, o Miguel se escondeu atrás de uma porta preparando-se para ver a Carminda cortar o pescoço ao animal, tendo sido descoberto pela Xica, tão só porque esta ao passar ouviu alguém piar cada vez faca fazia a sua fatal entrada no pescoço do bicho.
Depois do estômago bem tratado, absorvendo uma ou duas repetições de bacalhau cozido branquinho e que lascava bem, matéria onde toda a gente era muitíssimo exigente e crítico, a Carminda ia escolhendo o bacalhau ao longo dos meses anteriores, guardando às escondidas e pondo criteriosamente de parte as melhores postas para essa noite, entrávamos na fase da doçaria. A Náná, é peremptória e em matéria de comes e bebes, entre o branco ou tinto, diz que detesta os dois e prefiro, de longe, doces a salgados, inclusivamente prefiro um mau doce, a uma boa fruta.
Havia opiniões, todas muito consistentes, acerca de quem fazia as melhores rabanadas. Seriam as da Avó Lícia? As da Zica? As da Carminda? Mais tarde as da Biquica? Para as rabanadas, verdadeira instituição cultural tripeira, se bem me lembra o paladar, é fundamental o pão. Qual é o mais adequado, o comprido ou o papo-seco? E o molho, o mais grosso ou o mais fino? Bastante ou pouco açucarado? Mas com pau de canela, o que na falta seria na Casa, considerado um crime de lesa-majestade.
A este propósito, o aclamado e inesquecível Ramalho Ortigão, escreveu há mais de cem anos, in Crónicas Portuenses que quando de todo em todo as rabanadas desaparecerem da superfície do orbe, chorá-las-ei como a mais querida e a mais doce das minhas ilusões de criança.
Os mexidos, com muitos pinhões e frutas cristalizadas eram, uma especialidade da Zica, servidos sempre na mesma taça de cristal vermelho.
Depois de jantar iam-se abrir as prendas, colocadas ao lado do sapatinho de cada um. A Carminda tocava à porta a dizer que tinha chegado o Menino Jesus, era o alvoroço máximo, diz a Náná que ainda refere que depois do jantar íamos jogar ao rapa com pinhões.
Será que o Menino Jesus, antigamente o Pai Natal que ainda aparecia pouco por aquelas bandas, não era tão falado como agora, me dará aquilo que pedi? Umas vezes sim, outras nem tanto, por exemplo, um saco de carvão, como se dizia para ameaçar os meninos teimosos e com más notas na escola, o que não era o nosso caso.
Passada essa excitação, era altura de rumar para a Missa do Galo, à meia-noite, na capela de Miramar. Esta capela, consagrada ao Sagrado Coração de Jesus, começou a construir-se em 1937, pelo que desde que me conheço, conheço este edifício de traça simples e graciosa, devida ao gaiense Teixeira Lopes. Possui apenas um altar, o Altar-Mor, onde sobressai a Imagem do seu padroeiro. Os Zicos, em dias de culto, costumavam ficar na capela à frente do lado esquerdo. No Missa do Galo, o coro cantava entre outras, de acordo com a melhor tradição, Noite Feliz, Noite Ideal, é Natal, é Natal e tínhamos a ideia que o coro, desprendidamente, se elevava acima da terra, até ao Céu. Depois ia-se beijar o pé do Menino Jesus enquanto que o sacristão, o senhor Vitorino dizia, faça uma bénia menino, faça uma bénia, e limpava com um pano de linho branco, por causa das saraivadas de perdigotos e cuspidelas de alguns malandrecos ou do(a)s devoto(a)s mais velho(a)s ou desdentado(a)s.
Ao mesmo tempo, aproveitávamos para mostrar aos outros meninos algumas roupas novas. A seguir era a cama, ala que se faz tarde, o dia foi comprido e extenuante.
Em muito garotos, ainda chegámos a festejar um a vez o Natal na casa da Boavista pelo que um dia, o Tio Mário, vestiu-se de Pai Natal para trazer os presentes, mas assustámo-nos de tal maneira que foi um berreiro, ele teve de ir tirar o fato e não foi fácil acalmarmo-nos.
Depois da Náná me haver recordado este facto, lembrei-me de ter ficado tão nervoso e a gaguejar, que a única coisa que me veio à cabeça foi oferecer ao Pai Natal, um pão com queijo.
(III)
Um Natal que não festejamos na Casa de Miramar, foi muito mais tarde, no ano de 1970, quando a minha R, nasceu.
Nessa noite de Consoada, 24 de Dezembro de 1970, ainda não tinha começado o ciclo de 3 Natais na Guiné, a Aninhas estava na Casa de Saúde, a Raquel tinha acabado de nascer, nós fomos jantar a Matosinhos, a Casa da Avó Lícia, onde vivia o Tio Mário e Família.
Aliás, a casa de Matosinhos, na Avenida Serpa Pinto, que também já não existe, era de certo modo como uma segunda casa. Ali, jogava à bola com o Zé Quitolas na viela, dormia muitas vezes, jogava bilhar numa pequena mesa de excelentes tabelas (ainda) arredondadas, mas com tabuleiro de mármore muito preciso, pano verde e bolas de marfim, fumávamos umas priscas às escondidas na retrete, e quando a Avó ou a Tia Maria Cândida não estavam, íamos brincar para a cozinha com a Maria, uma empregada com os seus 20 anos, redonda, alourada, de peitos fartos e descaídos, que se ria muito quando nós lhe tocávamos e dizia que ia fazer queixa à senhora (o que nunca fez).
Não sei se o Quitolas se lembra desta.
Éramos garotos e arranjámos uma séria de priscas para fumar, que o meu Pai e o Tio Mário tinham deixado no cinzeiro. Metemo-nos na retrete da varanda a fumar rápida e sofregamente umas priscas seguidas de outras, até que fomos apanhados pela Tia Maria Cândida que viu fumo sair por debaixo da porta. O Quitolas, muito agoniado, vomitou o almoço todo, ficou de cama com dor de barriga por dois dias. Mas porque é que fomos fumar de empreitada para a retrete? Isso é outra história. Uns dias antes, tínhamos visto na rua Brito Capelo, um homem que dizia saber deitar fumo pelos olhos. Nós claro ficamos boqueabertos.
Seria isso possível? Vamos lá ver. E o homem dizia aos garotos como nós:
Põe-me a mão na barriga e empurra com força, porque eu vou engolir o fumo. Tapo a boca, o nariz e as orelhas e a seguir o fumo sai-me pelos olhos!!!.
O homem, que tinha aprendido esta habilidade segundo dizia em Marrocos, fechava os olhos, sorvia o fumo, deitava (?) o cigarro com aparato para o chão, dizia já está!!!. Então com toda a gente, os garotos, distraída a ver se os olhos deitavam mesmo fumo, ele movimentava o cigarro, que afinal não fora para o chão, e encostava-o à mão da vítima que lhe empurrava a barriga. Creio que a queimadura não era grave, mas um colega meu que se queixou que afinal aquilo não era truque nenhum, ainda ouviu do mágico:
É verdade, sim senhor!!!, se os meus olhos não deitam chispa, são os teus que ficaram a arder.
Com isto uns riram-se, outros não. Seja como for, dias depois fomos fumar para a retrete da varanda da casa de Matosinhos, até sermos apanhados pela Tia Maria Cândida.
O Tio Mário era o meu segundo herói. Fazia a barba com pincel e navalha que afiava à maneira, o Zico usava máquina eléctrica, nadava crawll com estilo, nós só de bruços, falava de pequenas, comia que era um gosto ve-lo, por exemplo sentado à mesa com uma boa pratada de feijoada ou umas lulas grelhadas, uma garrafa de tinto (ao invés do Zico e a Avó Lícia que só bebiam, branco), a preparar o estômago antes de começar com os demais a almoçar, e ia buscar-me e levar-me de carro ao colégio. Era no tempo em que o Avô Oliveira tinha um DKW (da Alemanha de Leste) e um Volkswagen (Carocha).
Mas gostava, muito especialmente, de ouvir o Rui Fleming que era um pouco mais velho que nós e nos ensinava coisas básicas da vida. O Rui tinha 12 anos mas já praguejava, fumava cigarros com filtro, bebia vinho e dizia que ia às meninas, em Leça.
(IV)
De Matosinhos tenho as melhores memórias.
Antes do fim do ano, ao passar de carro em Serpa Pinto, senti uma vontade danada de ir dar com o Quitolas dois chutos na bola, naquela viela da casa que também já não existe.
Note-se que foi na Igreja do Senhor Bom Jesus, de Matosinhos, que começou a nossa saga, a História FO., com o casamento do rapaz/Avô Augusto J. de Oliveira com a menina/Avó Lícia Fleming, e que já vai na quarta geração.
Ó Senhor de Matosinhos,
A vossa Capela cheira,
Cheira a cravo, cheira a rosa,
E à flor de laranjeira.
O Senhor de Matosinhos era, creio que ainda é, uma romaria anual importante e buliçosa, que ocorre na segunda Oitava do Espírito Santo, bem maior que a do Senhor da Pedra, que vem quinze dias depois. Primeira destas todas é da Senhora da Hora. Domingo, Segunda e Terça com missa solene e sermão, são os dias maiores (ainda hoje?), para devoção, culto, divertimentos, comes (sardinhadas, peixe frito com salada, broa, azeitonas e farturas), negócio de loiças, loicinhas em barro ou quinquilharias, bem como a presença de multidões abarrotando as ruas de dia e noite, ao som do foguetório, zés-pereiras, bandas de música, ranchos com gaitas de foles, ferrinhos e violas chuleiras, e do fogo de artifício de bonecos, representado por figuras em movimento, que era um dos momentos mais aguardados. Antigamente também lá iam os oleiros, os bonecreiros e os paneleiros do norte, que feiravam enquanto se exibiam na rua os gigantones e os cabeçudos, para o nosso enorme gáudio de crianças.
A componente espiritual, ali como em muitos outros sítios do mesmo género do nosso País, tem-se diluído irremediavelmente, em detrimento das bancas de venda de roupa, calçado, ouro, artigos chineses e o que mais houver. Socorrendo-me do imprescindível Hélder Pacheco, vou recordar a título exemplificativo um ex-voto, também popularmente chamados de promessas, ao Senhor de Matosinhos:
Milagre que fez o Senhor de Matosinhos a José da Silva Silvestre, de Entre-os-Rios, na sua doença, apegando-se com ele foi servido o dar-lhe saúde cujo qual lhe prometeu de oferta o valor do seu barco o qual carrega 55 pipas e logo que ele foi louvado o dito lhe deu o emporte do seu barco. Na era de 1813.
A devoção e as promessas eram muitas e variadas, para os males de cada um ou os navios no mar alto, infelizmente muitas vezes sem resultados a contento, pois nem sempre a tormenta permite a salvação, como é na nossa Vida, e se lê na História Trágico-Marítima.
Mas o Senhor de Matosinhos, na sua imagem de Cristo crucificado, com a cabeça ligeiramente descaída, era mesmo milagreiro. A sua imagem, segundo apurei, saiu apenas por 5 vezes de Matosinhos até ao Porto, em solenes procissões de penitência para esconjurar outras tantas calamidades públicas. E com bons resultados se afiança. Em 1526, por intenção de terríveis temporais que assolaram o Porto e o norte de Portugal. Em 1585, novamente por via de uma tremenda tempestade. Mais tarde, no reinado de D. Pedro II, a imagem voltou ao Porto, para apaziguar uma epidemia que estava a dizimar a população indefesa. Segundo reza a história, destas e das demais vezes, a visita da venerada imagem apaziguou efectivamente os males e o Senhor de Matosinhos operou o necessário milagre. Estes e muitos outros acontecimentos levaram a que o seu culto se difundisse em particular no norte de Portugal e mesmo no Brasil. Sendo tradicionalmente Matosinhos uma terra de pescadores, estes nos momentos de perigo e tormenta não esqueciam a invocação ao seu Bom Jesus. A testemunhá-lo estão tantas promessas, ex-votos, em agradecimento de favores concedidos como lenitivo de uma vida muito árdua e crença no poder da Fé.
(V)
A Teresinha, nos seus quase dez anos (em 2004), diz que gosta muito do Natal porque estou com a minha Família toda e porque brinco com os meus primos.
Acredita a Teresinha ainda no Pai Natal? Sim, acredito no Pai Natal porque vi há uns anos na televisão uma reportagem com três meninos que foram à terra dele.
Hoje em dia o Natal é, tem de ser, diferente, mas desejaria que o seu sentido se não alterasse, pese embora a tradição não ser o que era. Já não é possível reunir à volta da mesma mesa, os Avós, os Tios, os Primos, que se ausentaram. Os que cá estão, têm novas conversas, novas preocupações, mas continuam disponíveis para registar as novas palavras, as novas emoções no grande livro das memórias e guardar um lugar de honra na galeria dos retratos da Família FO. Admito ser um lugar comum, mas é nos filhos e netos, que vou mantendo uma fonte de energia e vitalidade. Tal como outrora é por eles e através deles, que renovamos o nosso Natal.
Há dias reli um texto natalício, de António Gedeão, que não resisto a compartilhar convosco.
Hoje é dia de ser bom,
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
De falar e de ouvir com mavioso tom,
De abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros -coitadinhos- nos que padecem,
De lhes darmos coragem para poderem continuar,
A aceitar a sua miséria, de perdoar aos nossos inimigos,
Mesmo aos que não merecem, de meditar
Sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.
Seria um verdadeiro milagre capaz de atenuar uma tristeza irremediável ligada aos tempos de hoje, bem escondida no íntimo e por timidez por vezes não partilhada. A tristeza decorre do que deixamos para trás, pois optamos, homens e mulheres, por ser profissionais urbanos, ocupados, sem tempo para mais que produzir e criar para os outros a troco de uma remuneração ou realização.
Uma das baixas causadas por este modelo de vida, foi a sábia e carinhosa culinária familiar. Os longínquos dias da inocência, em que logo de manhãzinha odores, suores e formas inebriantes se libertavam da cozinha da Carminda, que por vezes começava a cozinhar de madrugada, ainda nós dormíamos o primeiro sono, perderam-se para sempre. Mas não desapareceram da memória. Hoje estamos dependentes das cadeias logísticas das grandes superfícies comerciais, da cozinha rápida, porque não há tempo para mais, do fast food, incapazes de colocar a afectividade de um bom bacalhau à gomes do senhor sá.
Quantas vezes dou por mim, nostálgico, à saída de um restaurante ou mesmo de uma mesa de Família e pensar que estava excelente, mas não chega aos calcanhares daquilo que a Carmindinha nos preparava.
(VI)
Quando éramos meninos e moços, íamos na época do Natal normalmente no dia de Ano Novo assegura a Náná, isto nos anos cinquenta, umas vezes com Zica, mais vezes com a Carminda ver o circo, o maior espectáculo do mundo como se dizia, ao Coliseu do Porto, o qual chegava a ter duas pistas ao mesmo tempo. Levávamos o lanche, feito de sandes de pão com grossas fatias de marmelada dura e escura bem como tudo o mais necessário para uma tarde completa e bem passada, num cenário repleto de luzes e lantejoulas, com acrobatas, trapezistas, elefantes, palhaços (o rico e pobre), bem como leões ferozes. Os meios de divertimento dos nossos dias, degradaram o tradicional espectáculo de circo. Suponho que os circos que ainda existem, como o Cardinali, trabalham com orçamentos reduzidos. Antigamente, adultos e crianças iam ao circo, mas hoje é mais um espectáculo para estas e os números apresentados estão bem distantes dos de outrora. A questão é fácil de equacionar. Se não há dinheiro, não há boas atracções, se não há boas atracções não há público que vá.
Não sei se ainda se lembram o que é Cantar as Janeiras.
Tem caído em desuso esta tradição, por isso é mais uma memória que aqui trago, indissolúvel da cultura do Natal Português, pelo menos do frio norte do País.
Faziam-se grupos de rapazes e homens, as raparigas e as mulheres normalmente não participavam ou participavam menos, com tambores, pandeiros, ferrinhos, latas e mesmo acordeão, que vinham ao começo da noite às casas, como a nossa, cantar as Boas-Festas. Começavam por cantar animadamente quadras, com músicas antigas e populares, antigas de várias gerações, apelando à generosidade dos donos da casa, de modo a captar a simpatia e as ofertas destes, em dinheiro de preferência.
Mas se os visados donos da casa não correspondiam ou não contribuíam como seria de esperar, o feitiço virava-se, e às vezes o grupo saía a resmungar ou a proferir alguns adjectivos, que não são para aqui chamados, dados os sensíveis ouvidos dos FO, mais novos.
Cinco minutos antes, os donos da casa eram os melhores do Mundo. Agora, ficavam nas ruas da amargura, o que creio nunca ter acontecido entre nós.
Ainda cheguei a pensar que era capaz de um dia haver um bem sucedido dueto musical, Biquica & Paulo, eventualmente a cantar as janeiras por Miramar ou Mataduços.
Estás de acordo, Biquica?
A Biquica parece que não o exclui liminarmente, não abordei ainda seriamente o assunto de fazer um duo com o Paulo, penso que te referes ao Beato, pois acho que o nível é demasiado alto para mim, que também quero ir para o Céu.
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(VII)
Falar de Natal, sem falar da Noite de Consoada, pelo menos no Norte, é esquecer uma peça fundamental de um rito cheio de vivências alegres, intimidades, recordações, algumas nostalgias, calores, sabores, sabores a fritos, doces e mel, embora a Aninhas vá dizer mais uma vez que eu só sei falar da comidinha e de coisas do estômago.
Alberto Pimentel, que foi um distinto e interessante tripeiro, escritor do Porto, sobre o Porto, de há muitos anos escreveu: Ah! Não se imagina nas províncias do sul do Reino o que seja o Natal das cidades e aldeias do norte! (...). No Porto que é por assim dizer a grande capital das províncias do norte, o Natal conserva ainda uma solenidade tradicional, que tem o seu quê de pagã, porque faz lembrar uma festa íntima celebrada, de portas a dentro, em honra dos deuses lareiros.
Desmontar a feira, como se costuma dizer, é frequentemente uma operação penosa. No dia 6 de Janeiro, Dia de Reis, o Zico FO comprava o último Bolo-Rei, que trazia sempre fava e brinde, um pequeno objecto de metal, embrulhados em papel. Mas a tradição hoje em dia, neste ano de 2004, já não é o que era, pois que o brinde quase desapareceu, por exigências da EU, segundo se diz por via de um eventual perigo de ingestão, sendo contudo permitido se tiver uma dimensão mínima de 4 centímetros de comprimento. A tradição impunha que quem encontrasse a fava, teria de pagar o bolo-rei no ano seguinte. O Zico contava, creio que com fundamento, que com a proclamação da República, em 1910, o jacobinismo imperante tentou mudar o nome para bolo-presidente ou bolo-Arriaga. Mas nenhum destes nomes pegou. Seja como for, ainda estávamos longe do 25 de Abril, mas nem por essa altura, se tentou ir tão longe…
Depois desmontava-se o Presépio, que se arrumava na caixa de cartão até ao ano que vem, apagavam-se as luzes da árvore de Natal, que ia rumo ao lixo, pois não era de plástico.
O Natal passou. O Inverno acabou. É Primavera e a Páscoa está a chegar.
Algumas vezes, as famílias fecham-se em mitos, que é uma forma de se enganar com meias verdades, retocar a vida com fantasias, imaginando-se melhor que os outros ou silenciando-se segredos que acarretam que se veja depois pelo canto do olho. Por mais que nos proponhamos transformar ou voltas que o mundo dê, a Família marcará sempre o nosso trajecto e quando parece que há uma nova história à frente, vê-se que o enredo não é de todo original.
Ao fim e ao cabo, a Núnú gostaria de ser lembrada, na Família, como uma tia não má e compreensiva, em suma, deixando uma boa imagem de tia, se possível.
A Biquica, embora não se reclamando da nossa cantora oficial como esclareceu peremptória e definitivamente, é mesmo uma menina muito musical e assim deveria ter reservado um lugar no Céu, junto do coro von Trapp. Aliás, li uma vez que os músicos vão todos para o Céu, pese embora que os únicos instrumentos lá autorizados são trombetas, harpas ou alaúdes.
Será verdade ou ficção?, perguntei à Biquica que nesta matéria tem acesso e conhecimentos privilegiados.
Penso que quem vai para o Céu são as pessoas que devem estar fartas de música e então preferem instrumentos que poucos saibam tocar, para não chatearem muito os outros que já padeceram na Terra a ouvir as tais baterias e afins…
Mas claro que também aqui, fui saber o que o Paulo S. pensa.
Como é isso, Paulo?
Com aquele rigor e clareza de raciocínio que o caracteriza, e a que nos habituou de há mais de 25 anos, o Paulo disse que primeiro há que distinguir os bons músicos, os maus e os assim assim. Os bons é de caras, vão direitinhos ao Céu, e é ve-los de imediato a dar formação musical, através da linguagem gestual imovelmente inerte, com a respectiva expressão corporal tipo estátua do antigo Egipto, com o olho fechado.
Mas qual é o destino dos maus?
Os maus, também são imediata e tranquilamente admitidos para frequentar as acções de formação dos assim assim, entretanto contratados, após a aquisição de pedagogia competente. Assim, se encontram todos juntos para alegria da gerência. Digo alegria, pois o céu herdou do Olimpo uma quantidade de instrumentos mortos (lira, harpa, alaúde e trombeta) mais um coro de línguas, também mortas (Latim, Grego) e, como são gente séria, não têm actividade, tempo livre ou qualquer hipótese mínima de os dinamizar. Quando era Olimpo, havia deuses para tudo e o forróbódó era constante. Quando a trovoada passou a descarga eléctrica, instalou-se no Céu um só Deus e, de imediato, choveram tantas lamentações que acabou-se tudo. Canseira atrás de estafadela para acudir a todos, provocou a nomeação de santos na mira da repartição. Como se mostrou deficitário, rapidamente cresceu o número de santos que, coitados, não tem tempo, nem saco para músicas celestiais. Vai daí contrataram uma orquestra completa e encarregaram Alves Redol de nos (a nós humanos vivos) explicar o que é:
-Área musical: toada da Primavera.
-Orquestra Sinfónica.
Maestro e professor de música.
O rouxinol.
-Coral: chapins, carriças, tentilhões, melros, piscos, corujas, cucos, popas, pintaroxos, toutinegras, pintassilgos, picapaus, pardais e abelharucos.
Nota do autor: (ou seja, dele o Paulo) É a única música celestial (do céu) que conheço. Nesta fragilidade emergente, percebe-se que, não há pianos no céu, porque, além de estar bem vivos, são pesados de mais para os anjinhos. Com as guitarras é um pouco diferente já que há várias: as espanholas e as brasileiras só com véu, só com véu! As eléctricas, não têm ficha e as portuguesas vão chorar para outro lado que, como vimos atrás, lamentações já lá há a dar com um pau.
Neste momento, não resisti e interrompi tão douta dissertação e perguntei ao Paulo S. aonde nos levava este raciocínio.
Querem saber que ele disse que aqui chegamos a melomania do autor. Um exagero total? Embora rarissimamente, em curtos lapsos de tempo e ajudado pela natural falta de talento, faço uns biscates musicais à Tia Inês, com todo o gosto e empenho. Nada mais. Diferente disto é o cavaquinho, (uma nova paixão do Paulo que o acompanha para toda a parte, mesmo para o Algarve, que a Família FO aprova gostosamente, e não causa ciúmes à Inês), um instrumento modesto, mas cheia de alegria e vida. Nas mãos de qualquer um, apela de imediato ao canto e ao movimento, até parece o ritmo do coração.
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