sexta-feira, 30 de setembro de 2011
-O LICEU FEMININO (Guiomar de Lencastre) EM LUANDA DEPOIS DO 25 DE ABRIL. -Laura Benevides. -As (duras) tarefas sociais.
A família de Laura Benevides, estava há três gerações em Angola.
Não tinha interesses, salvo algum dinheiro, parentes ou amigos em Portugal. Sentia-se bem naquela terra. Era a sua, não tinha, nem queria outra.
No ano de 1973, Laura com dez anos entrou para o liceu D. Guiomar de Lencastre, vulgo liceu feminino, estabelecimento que se orgulhava da educação que proporcionara a jovens e futuras mulheres durante duas décadas, pois fora criado em 1954.
Em 1973, já se podiam usar as batas curtinhas, e as suas eram tão curtas, que minha mãe mandava fazer uns calções, para estar em condições quando fosse chamada ao quadro ou estivesse no recreio.
Mas Laura calcula que era a mãe que não gostava de a ver de bata pelos joelhos, pois as suas perninhas, pareciam-se como dois pauzinhos de vassoura.
Em 1974, começaram os confrontos em Luanda e o liceu, que devia ser um espaço de formação e estudo, transformou-se em acampamento de desalojados e feridos. Foi o tempo de alguns amigos começarem a partir bruscamente para Portugal, de fugas, perdas e lutos. Mas para outros, em contrapartida, de sonhos, alegrias, esperanças e celebrações de vida. Misturaram-se prazeres e dores, nascimentos e despedidas, despiram-se as vestes da ingenuidade trazida da infância e das ilusões exponencialmente romanceadas pelo sonho vivido quente e intensamente. Os que ficaram tiveram de ajudar no que fosse preciso. E era muito.
Laura, continuava a ir todos os dias ao liceu, sempre que possível levada pelo pai, apesar dos tiros e do risco que isso comportava. Mas não queria faltar.
Em Junho de 1975, o liceu abriu portas para servir de abrigo a quem vinha fugido da guerra. Nas salas de aulas, escutaram-se gemidos, outras línguas e viram-se panos de todas as cores. Na cerca, nos jardins interiores, na Sala de Lavores e até perto do tanque onde se podia espreitar os jacarés, ao pé da sala de Canto Coral, cuidava-se de pessoas.
E procurava-se cuidar por inteiro, apesar de faltar tudo.
Dividir tarefas era a operação principal e mais difícil. Era preciso dividir espaços, horas, até pensamentos e os pouquíssimos alimentos disponíveis. Dividir, sem apenas subtrair, fazendo os restos virar ganhos. Nos muitos nadas que enchiam os bolsos, era sempre possível descobrir-se alguma coisa mais e partir para novas operações.
Com 12 anos, Laura foi encaminhada para ajudar numa enfermaria. Um dia, puseram-lhe um frasco de álcool numa mão e um rolo de gaze com uma tesoura na outra. Enquanto, o enfermeiro limpava a ferida de uma mulher, com ar desesperado e olhos vítreos, ia-lhe dizendo para por álcool no algodão, enquanto vou ver se encontro a bala nas costas.
Laura sentiu, nesse momento, que não aguentava, podia desmaiar a todo o tempo, pelo que pediu que a colocassem noutro lugar e, assim, foi parar à cozinha, a descascar batatas. Mas como era uma menina-família, branca e sem prática, os encarregados não ficaram satisfeitos com o trabalho, pelo que foi recambiada, dessa vez, para a secção das crianças. Levava-as para a cantina e, depois de comerem, brincavam e cantavam, faziam jogos até adormecerem, entretendo-as para não pensarem nas mães ou pais feridos, estropiados, mortos ou desaparecidos.
Em tão pouco tempo, viu o que os seus pais sempre a haviam poupado. Mas mesmo assim não queria ou não podia vir embora. No caso afirmativo, para onde?
No largo em frente ao liceu, já não paravam os carros dos papás e as motos dos rapazes a ver o santo sacrifício da saída, mas ainda havia quitandeiras a vender mangas, abacaxi, abacates, micates e vendedores ambulantes. Os ardinas deixaram de passar. Quem iria comprar jornal?
No liceu, com os seus 12 anos a amadurecer rapidamente, Laura aprendeu que a vida pode mudar rapidamente de cenário.
Mais um ano decorrido, ao sábado passou a haver campanhas de limpeza, onde todos participavam. Não, não era obrigatório, mas Laura e outros rapazes e raparigas, brancos havia cada vez menos, gostavam da função e acreditavam que o país precisava que se arregaçasse as mangas.
O ambiente era definitivamente diferente.
Tão diferente dos tempos em que menina pequena ia com o pai ou a mãe de ou para as aulas. Parecia ter passado tanto tempo...
Morava perto do liceu. Por isso, tendo vindo para Portugal em 1980 para continuar os estudos, ainda assistiu à sua morte, lenta por degradação. Depois da dipanda, o Guiomar de Lencastre deu lugar ao Nzinga Mbandi. Hoje, nas suas instalações recuperadas em 2000, partilham-se outros saberes, falam-se de outros reis e rainhas. Laura Benevides, já voltou a Luanda duas vezes, mas vive em Lisboa, onde é professora de história, no ensino secundário onde ensina os reis e rainhas de Portugal.
Fleming de OLiveira
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