segunda-feira, 12 de setembro de 2011

UMA FEIRA À PORTUGUESA (à antiga)


- A Feira de S.Bernardo em Alcobaça
-O vendedor da Banha-da-Cobra
-O Teatro de Robertos/Fantoches
-O Circo
-O Poço da Morte
-Uma boa feira tem sempre pancadaria

A Feira de S. Bernardo, realiza-se há muitos anos em Alcobaça, umas vezes com mais animação ou interesse que outras.
O certo é que, não obstante a descaracterização que hoje em dia apresenta, aliás como muitas outras que por esse País se realizam, nem por isso deixa de estar enraizada nos hábitos da terra.
As festas e romarias são uma componente importante da cultura popular do povo português. Numerosas e variadas, acontecem um pouco por todo o país e fazem parte das tradições e memórias de um povo que pretende preservar e manter atual a cultura secular que lhe confere uma identidade própria. Apesar de decorrerem ao longo do ano, é nos meses de Julho e Agosto que acontece a maior parte das festas e romarias em Portugal, unindo quase sempre a componente religiosa a um programa popular.
A Feira de S. Bernardo teve sempre uma componente essencialmente lúdica. Falando com pessoas idosas ou consultando notícias de jornais, atrevemo-nos a dizer que a Feira de S. Bernardo, quando no Rossio, era o ponto de encontro dos alcobacenses da terra com os de fora, a ocasião para mercadejar algumas coisas, beber uns copos com os amigos e foliar durante algum tempo. E pôr a coversa em dia, porque a vida não é só canseiras.
O que era uma boa Feira, no dizer dos antigos, lá pelos anos trinta?
No tempo da República e dos primórdios do Estado Novo, da parte da tarde as tendas lado a lado pejavam, como convinha, no Largo do Rossio, em longas fileiras, e vendiam de tudo, fazendas, bugigangas, algodão doce, ouro, ouro sim, ouro de lei, ou prata contrastada, como o material do Maneca de Febres, porque o metal é que tem valor amanhã, no meio de enorme algazarra e estridência de conversas, de realejos ou outros instrumentos menos afinados, interpretados por cegos (que afinal talvez não o fossem…) que faziam números com saltimbancos e artistas de circo, enquanto se comiam tremoços ou pevides. Havia a tômbola das panelas que era muito procurada, pelas mulheres, na esperança de poder sair uma peça, que mesmo de refugo iria fazer muito geito na decoração da cozinha ou no serviço da casa. Também havia as tendas do vai um tirinho o q´rido, das caixas com furinhos que davam prémios e as dos matraquilhos.
O povo gostava de ir passear e ver. Famílias inteiras, com ar grave e pasmado, rapazes vestidos à maruja, paravam diante dos artistas a quem davam uns cobres, ajustavam o preço de um alguidar ou de uma peça de fazenda, tiravam medidas para o rapaz fazer um par de botas de carneira, iam ao mercado do gado, da fruta, da hortaliça ou do
peixe da Nazaré (oh qu’ rida, oh freguesa!). Tudo era bom de apreciar. As ciganas liam a buena dicha, as vendedeiras de limonada faziam negócio com as mulheres e crianças. Alcobaça, em Agosto, com pó e algumas moscas quanto baste à mistura, fazia sede que também se matava moderamente na tenda da ginjinha. As mulheres apreciavam muito as pesadas mantas listadas de Minde, a lã azul fiada para as saias, as loiças da Olaria, de Alcobaça, com motivos pintados à mão simples e ingénuos, mas já a começar a vulgarizar os decalques, os vidrados amarelos ou verdes das Caldas da Rainha. Os homens, de pesado cajado, frequentavam principalmente, a feira do gado, faziam alguns negócios com dinheiro vivo (como poderia ser de outra forma?), entre dois copos de tinto, acompanhados de pequenos queijos de cabra ou de ovelha, da serra, vendidos em poceiros cobertos por alvas toalhas e, claro, sempre com o marisco, os tremoços e pevides. Esta era sim, uma boa Feira de S. Bernardo, com a PSP e a GNR sempre por perto e atentas à malandragem (além dos ciganos, havia outros… como os carteiristas) e às brigas do mau vinho. Os carteiristas que frequentavam as festas e romarias do país, como a Feira de S. Bernardo, eram normalmente provenientes do norte e bem referenciados pela polícia, pois usavam habitualmente um característico pequeno chapéu. A Polícia detinha-os preventivamente pelo tempo das festas, mesmo que nada tivessem ainda feito. A história dos carteiristas foi uma vez contada a Altino pelo Chefe Martins, da P.S.P., que depois foi motorista da Olaria, aquando de uma viagem em serviço que fizeram ao Porto. Os anos passaram. Algumas coisas mudaram outras nem tanto.

Durante a Feira havia circo.
Em primeiro lugar apareciam os cartazes espalhados pela vila, ilustrados com animais ferozes, palhaços ou trapezistas, homens e mulheres gordos, tatuados e anões. Depois vinham as carruagens, puxadas por camionetas ou mesmo animais, que desfilavam com música, um tambor ou corneta pelas ruas. Era este ainda o tempo do grande espetáculo (o maior espetáculo do mundo), exibido em tendas redondas de lona onde entrava a chuva e seguramente o vento, a arena colorida, as luzes feéricas, os maillots lustrosos das mulheres, os corpos atléticos dos homens. Os palhaços, os animais. Os trapezistas, lá nas alturas.
Senhoras e Senhores, Meninas e Meninos, benvindos ao circo!!! Senhoras e Crianças, não pagam... Senhoras e Crianças, não pagam!!!
João Matias lembra-se que devia ter aí uns seis anos quando pela primeira vez o pai o levou ao circo, que assentava no Parque da Gafa. Mas para a criança que era, aquele foi um dos maiores acontecimentos da ainda muito curta vida. Gostou das trapezistas, riu-se com os palhaços mas, sobretudo, ficou fascinado com o atleta das argolas. Nunca mais o esqueceu. O fascínio do circo resiste a tudo e tem o condão de persistir na memória de crianças, jovens e adultos. O das argolas era um velho, de cabelos brancos e estatura pequena. Os músculos como que lhe saltavam da roupa, e nas argolas não deixou de fazer um Cristo, com uns braços trémulos. Esperado, esperado, era o momento dos palhaços. O de cara branca, o palhaço rico, e o outro, o pobre. O rico, servia para enganar o pobre, que superava pela esperteza os ardis que o cercavam. A assistência projetava-se no azougado pobretana. João Matias ria. A música evolava-se da concertina inglesa e de um xilofone de garrafas penduradas, líquidos coloridos em escala harmonizada na subtilidade dos martelinhos. Ninguém dava pelo desconforto das bancadas duras de madeira.

E o teatro de fantoches ou de robertos? O teatro de Robertos era um dos principais divertimentos (quase obrigatório) das feiras, romarias e até praias do século XX, como recordam Altino Ribeiro e Tó Lopes. Este estilo de teatro entrou, porém, em desuso em meados do século XX. Nos seus tempos de criança, na altura da feira, apareciam os Robertos, tão ansiados pela criançada. Trata-se de espetáculos de fácil compreensão, com uma manipulação rápida e cheia de ação, cuja característica importante é o uso pelo fantocheiro de uma palheta na boca que lhe permite ampliar e distorcer a voz, produzindo efeitos surpreendentes, algo ridículos e que abordam rábulas tradicionais, que reproduzem a animação de rua (à moda antiga), algum acontecimento e centram a atenção do público com o alarido e picardias dos bonecos. Tó Lopes, em criança, gostava muito de ver os robertos e lembra-se bem de um número especialmente apreciado, pois metia (muito fantasiosamente) o Marquês de Pombal e a expulsão dos Jesuítas. Os adultos e a criançada achavam-lhe muita graça, pagava-se cinco tostões. Mas o tema mais corrente era o de um homem mal comportado, um touro para assustar e uma mulher que zangada com o comportamento do marido lhe pregava umas valentes pauladas no final.
Nos dias que correm, é difícil verem-se os Robertos, mas, de certeza, que haveria muitas crianças que gostariam de assistir a um espetáculo, com os nossos saudosos e deliciosos Robertos.

João Matias, já rapazote com pêlos a aparecer na cara, também não se esquece mais do vendedor da banha da cobra que aparecia todos os anos na Feira de S. Bernardo. O vendedor da banha da cobra não é uma personagem de ficção, pois existe, sempre existiu, evoluiu, é muito hábil e astuto.
Todos sabemos, João Matias sem dúvida, que a banha da cobra não serve para nada, mas a convicção que o vendedor transmite, através duma oratória estudada e estruturada, é capaz de convencer pessoas sobre as capacidades infinitas do milagroso medicamento. Impigens, mau olhado, torcicolos, urticária, febre dos fenos, dentes, nervos, escleroses, artroses, entorses, diarreias, sarampo, escarlatina, espinhela caída, dores das cruzes, doenças do miolo, verrugas, cravos, etc., são alguns dos males que a banha da cobra afasta a quem a quiser comprar.
Matias parece que ainda tem no ouvido essa oratória, não custa nem 20, nem 15, nem dez. Custa apenas cinco, e quem levar dois tubos leva um totalmente de graça. Um para aquele senhor, outro para aquela menina, e enquanto eu vou lá à frente receber o dinheiro, a minha mulher vai lá atrás distribuir o pacote.
Se é certo que a banha da cobra não cura nada, também não consta que daí tenha saído algum mal para a saúde pública ou para o mundo. Não custa dez nem quinze, custa apenas vinte e cinco tostões, e quem levar dois tubos leva um de graça.
Era assim tentador!
É assim que ainda conserva no ouvido o pregão com que na feira, o vendedor da banha da cobra anunciava as virtudes miraculosas daquela mistela, de composição indecifrável. E não havia mal ou maleita onde o seu resultado não fosse prodigioso. E para que não houvesse dúvidas, os argumentos eram um primor de explicação:
-Se bocência tem uma dor de dentes, fique a saber que não é o dente que lhe dói. O dente é corno, o corno é osso e o osso não dói, o que dói é o nervo.
Cremos que a grande maioria das pessoas, não apenas de Alcobaça, não acreditava naquilo, mas inexplicavelmente comprava, pelo que a vida de vendedor de ilusões ia andando embora com dificuldade. O homem era vigarista, golpista ou apenas um desenrascado a fazer pela vida? Há uma palavra tipicamente portuguesa, que caracteriza bem o nosso povo, o Desenrascanço, muito próprio do Xico Esperto, de que aliás já falámos. Saudade e desenrascanço são palavras/expressões que provavelmente conseguem definir um povo na perfeição. Vivemos saudosos do passado, desenrascando o futuro. Esta palavra (desenrascanço) é difícil de traduzir para uma outra língua, talvez por ter um significado menos romântico que o de saudade. Não recordamos alguém a referi-la como bastião da língua e maneira de ser português. O desenrascanço português é conhecido desde tempos antigos. Diz-se que durante as viagens marítimas era frequente navios de outros países levarem um português na tripulação, com o propósito de este tomar conta do navio em tempos de crise. No meio de uma tempestade, o Português ficaria com total controlo do navio, e daria uso ao seu dom do desenrascanço para livrar o navio da tormenta.

Ouvimos contar a seguinte história que se terá passado na Feira de S. Bernardo em meados dos anos cinquenta. O GNR reformado Joaquim Meneses tinha uma vaga ideia de a ouvir a colegas mais velhos, quando muitos anos depois foi colocado no Posto de Alcobaça. Ainda música entoava no ar quando no sábado, por volta da meia noite, várias pessoas se envolveram em confrontos físicos. A principal vítima da sessão de pancadaria foi o Luís da Horta, da Moita do Poço, que garantiu ter sido agredido pelo Secretário da Junta de Freguesia de Turquel, com um pau de eucalipto com 2 metros de comprimento e mais de dois centímetros de diâmetro…
-Deu-me com o pau nas costas umas cinco vezes, contou Luís. Um gesto que foi seguido por mais dois conterrâneos do Secretário da Junta.
-Os paus destes eram mais pequenos, mas mais grossos, afirmou o agredido, tão grossos que acabaram por lhe abrir a cabeça, que foi suturada com sete pontos no Hospital de Alcobaça, onde chegou bastante atordoado.
O jovem apresentou queixa por agressão contra o Secretário da Junta e os dois amigos, na Guarda Nacional Republicana. De acordo com as informações colhidas junto Chefe do Posto da G.N.R., uma patrulha foi chamada por volta da uma da madrugada de sábado, com a informação é de que estariam a decorrer desacatos no recinto da Feira. Chegada ao local, a patrulha (3 homens) deparou com o facto já consumado, pois o Luís da Horta já teria levado as pauladas, estava no chão, com a cara ensanguentada e a gemer.
-Só sei que ainda havia gente a bater-me, a dar-me pontapés nas costas e na barriga, garantiu depois.
O caricato da situação é que o assunto que terá dado iniciou a zaragata, nada tinha a ver com o Secretário da Junta, com esta ou mesmo com o Luís da Horta. Mas sim, com um irmão deste e um rapaz do Carvalhal, que terá sido apanhado, algum tempo antes, a roubar um cabrito.
O Secretário da Junta mostrou-se muito espantado pelo facto do seu nome estar envolvido na questão.
-Não tenho nada a ver com o assunto. Na altura dos acontecimentos até estava sentado a beber um copo e a petiscar com uns amigos. Referindo nunca se ter metido em zaragatas (não se esqueça que faço parte da Junta…), salientou que até andava de muletas por ter um problema numa perna, que o obrigou a fazer uma cirurgia em Leiria.
-Acha que com a perna assim eu estava em condições de bater em alguém?, perguntou ao Comandante do Posto da G.N.R, adiantando que se o Luís apresentou queixa contra si irá também fazer outra por difamação.

Falar de uma festa popular portuguesa e esquecer o Poço da Morte seria uma falta grave.
O primitivo Poço da Morte, era em madeira, e nele pontificavam os motoqueiros pai, mãe e um filho, já que no cartaz aparecia a imagem dos três, como recorda Matias. Circulavam numa estrutura cilíndrica, a girar sempre à volta até ficarem paralelos ao chão. Era um trio de fascinantes corajosos aventureiros que, com os palhaços, ilusionistas e acrobatas do circo, preenchia o imaginário de muita gente que ia à Feira. O público ficava a ver na parte superior, tendo apenas uns cabos de aço como limite, para que numa manobra imprevista (e possível) não levasse com eles.
Desafiavam a morte, no dizer do apresentador, cruzando-se com arrojo, audácia e emoção a alta velocidade de olhos vendados pela bandeira portuguesa, que depois era desfraldada triunfantemente, para gáudio da assistência e vibrantes aplausos. Especialmente emocionantes eram as voltas de moto, com o artista (filho) sentado de lado virado para o fundo do Poço, sem mãos no volante e de braços cruzados. Suscitavam emoções fortes em João Matias, que ia acompanhado pelo pai, espalhando entre os demais espectadores um clima de euforia e ansiedade, apimentado pelo ruído ensurdecedor das motos sem escape e o cheiro de gasolina mal queimada.

FLEMING DE OLIVEIRA

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