quinta-feira, 8 de setembro de 2011
(III) NO TEMPO DE D.PEDRO, D. INÊS E OUTROS Histórias e Lendas que o tempo não apagou (COMEMORAÇÕES INESIANAS)
A relação de D. Pedro com os frades de Alcobaça era muito estreita, pois, tendo-lhes seu pai, tirado alguns territórios que considerava sonegados à coroa, eles foram-lhes restituídos por aquele.
O imponente e célebre funeral de D. Inês, foi descrito por Fernão Lopes (in Crónica de D. Pedro I) e por Frei Manuel dos Santos (Cronista Mor do Reino e continuador da Monarquia Lusitana), de forma algo semelhante, embora em ambos os casos, porventura, com uma componente lendária. O corpo, veio do Mosteiro de Santa Clara, em Coimbra (note-se que o corpo da Rainha Santa já fora porém transladado), e ao longo das dezassete léguas do trajeto passou por fileiras de milhares de pessoas, em silêncio, empunhando círios acesos. O cadáver foi acompanhado pelo clero e nobreza mais importantes do reino. E apeando-se os da comitiva à porta do Mosteiro foram por o corpo da Rainha na Igreja, sem fazer por então outra coisa. No outro dia oficiou os funerais em Pontifical o Bispo de Viseu; e no fim fez El-rei descobrir o cadáver acomodando-o como puderam em uma cadeira e trazendo o Abade uma coroa prevenida outra vez deram princípio a nova e celebradíssima cerimónia de beijaram a fina mão de D. Inês como sua Rainha todos os que eram presentes; por remate da ação depositaram o real cadáver na elegante e soberbíssima sepultura, que o esperava; e nela descansa até ao último dia da ressurreição universal (Frei Manuel dos Santos, in Alcobaça Ilustrada).
D. Pedro, havia mandado vestir e sentar o cadáver num trono e cingir a cabeça com uma coroa de ouro.
Esta tétrica cerimónia do beija-mão, tão vivida e revivida no imaginário popular, foi acolhida nas narrativas do final do século XVI, depois de Camões escrever em Os Lusíadas, a tragédia da Linda Inês, de colo de garça.
A transladação terá sido mesmo assim, ou aquelas descrições fizeram eco de uma lenda, já consolidada? Fernão Lopes nasceu em finais do século XIV e escreveu a Crónica de D. Pedro I (a mando de D. Afonso V) com grande distância cronológica, pelo que talvez tivesse tido acesso a uma lenda com laivos de verdade, que foi recuperar. Deve-se a Fernão Lopes muito da imagem, por vezes confusa, que de D. Pedro chegou até hoje. Note-se que a transladação de Inês de Castro para Alcobaça, terá ocorrido a 2 de Abril de 1361, por isso assinalamos 650 anos, seis anos após a morte, o que é, eventualmente, pouco compatível com a cerimónia do beija-mão e riscos de peste ainda não esquecida.
Sobre os túmulos de D. Pedro e Inês de Castro muito se tem dito e escrito, pois são reputados como das obras mais belas, da escultura funerária do Ocidente e, especialmente, de Portugal. A sua autoria permanece desconhecida, mas há quem admite ser atribuída a uma dupla de escultores portugueses (há também quem diga franceses).
Apesar da extensão da bibliografia nacional e estrangeira que o drama inspirou, os túmulos nunca tinham sido objeto de estudo, sério e detalhado, até 1910, com Manuel Vieira Natividade (in, Ignes de Castro e Pedro, o Cru, perante a Iconografia dos seus Túmulos).
Inicialmente os túmulos estavam colocados, lado a lado, no braço sul do transepto da Igreja, com os pés virados para nascente, sendo o de D. Inês à direita do de D. Pedro. Possivelmente em 1827, foram transferidos para a Sala dos Túmulos e aí colocados frente-a-frente, criando-se então a lenda que esta era a forma de os amantes se reencontrarem, de pronto, no Dia do Juízo Final. A atual localização, o de D. Inês no lado norte e o de D. Pedro no lado sul do transepto, remonta a 1956, após as obras no Mosteiro, por alturas da visita de Isabel II, de Inglaterra. No Panteão Real, em Alcobaça, onde se encontram sepultados D. Afonso II e D. Afonso III, sua mulher e filhos, há ainda três pequenos sarcófagos, não identificados, mas que se admite destinados a crianças. Nenhum historiador conceituado os atribui aos filhos de Inês de Castro (dois rapazes e uma rapariga), mas William Beckford, em 1794, a Princesa Rattazi, em 1879 e Ramalho Ortigão, em 1886, aceitaram mais esta lenda romântica.
Os amores de Inês na literatura aparecem, pela primeira vez, com as Trovas à Morte de Inês de Castro, da autoria de Garcia de Resende, no Cancioneiro Geral de 1516. Aí, Inês, a partir do Inferno, lamenta a tristeza da sua sorte, advertindo as mulheres para os perigos do amor. No entanto, é com Os Lusíadas, que se constitui o mais influente fundo lírico do episódio inesiano. Muitas das referências a espaços, como os campos do Mondego, e à figura dos carrascos, surgem pela primeira vez neste poema, assumindo parte integrante da história e lenda nacionais. A influência da obra de Camões, contribuiu em muito para firmar Inês de Castro como uma das suas personagens mais férteis da nossa literatura. Em 1587, foi publicada A Castro (António Ferreira) a primeira tragédia clássica portuguesa, que inspirada nos trágicos amores, deu ênfase ao conflito interior de D. Afonso IV, nas suas hesitações quanto à sorte da Mulher do filho e mãe de seus netos.
Ao longo dos séculos, a história de Pedro e Inês foi contada com inúmeros pormenores inventados ou fantasiosos. O espanhol Jeronimo Bermudez escreveu a Nise Lacrimosa. No século XVII, a monarquia dual (no trono português estava Filipe II de Espanha, neto do rei D. Manuel I de Portugal) proporcionou um maior contacto cultural entre os dois países. Escritores portugueses escreveram em castelhano também sobre o tema, como D. Francisco Manuel de Melo, com os Sonetos a la Muerte de D. Inês de Castro. No século XVIII, Inês de Castro (1723), do francês Houdar de la Motte, celebrizou e espalhou na Europa a história de Inês, acentuando os aspetos sentimentais e dramáticos.
Em Portugal, os amores de D. Inês popularizaram-se, não apenas na literatura erudita (com a pena dos árcades Manuel de Figueiredo e Reis Quita), mas também entre o povo, com o teatro e o cordel (a literatura de cordel, muitas vezes apreciada depreciativamente, apropriou-se do tema com personalidade, linguagem solene, grave, majestosa). Também Bocage lhe dedicou uma cantata, que termina assim: Toldam-se os ares/Murcham-se as flores: morrei amores/Que Inês morreu.
A Europa correspondeu ao apelo desta história pelo que se sucederam traduções, edições ou reedições de obras literárias..
Com o romantismo, bem alicerçado na época que o antecede, cresceu o interesse pelos factos históricos associados ao episódio. Alexandre Herculano e Oliveira Martins, entre outros, procuraram investigar, com algum rigor, as pessoas intervenientes e factos. Todavia, o fundo sentimental destes amores, correspondia ao gosto do popular, tanto pelo fatalismo, como pelo conflito que opunha o indivíduo à sociedade (corporizada no Estado e em D. Afonso IV), quer ainda pela localização em plena época medieva. O historicismo que caracteriza este período reflete-se, na literatura sobre o tema, e nomeadamente nos dramas históricos de Henrique Lopes de Mendonça (in, A Morta) e António Patrício (in, Pedro, O Cru), onde se nota uma crescente atenção à figura de D. Pedro.
Após o romantismo, o tema persistiu numa literatura nacionalista e saudosista, explorando aspetos da lenda, prolongando-se por todo o século XX. Mais recentemente, podem indicar-se os exemplos de poetas como Ruy Belo, Miguel Torga ou Natália Correia. A nível internacional, e já no século XX, alguns escritores recorreram a Inês de Castro, como o existencialista francês Henri de Montherlant, em La Reine Morte.
Enquanto personagem, Inês de Castro tem assumido roupagens diferentes conforme o autor e a época dos textos, mas a universalidade e intemporalidade do tema amor absoluto que sobrevive à morte, a tragédia da morte sem culpa face à mesquinhez dos interesses humanos ou do Estado, têm lhe garantido uma resistência ao tempo e possibilitado a sua atualização. Mais do que uma personagem, Inês é, na História ou na Lenda, um símbolo do amor impossível e infeliz aquele que faz o Homem sonhar, que causa uma compaixão e comoção. Tristão e Isolda, Romeu e Julieta. Teresa e Simão são casais que têm como destino um fim trágico que surge a partir do momento que decidem tentar alcançar o impossível. Todos esses casos caminharam para o abismo que por exemplo em Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, vem bem retratado na carta que Simão escreve a Teresa: Lembra-te de mim. Vive, para explicares ao mundo, com a tua lealdade a uma sombra, a razão por que me atraíste a um abismo.
No caso de Inês de Castro, esta desafia o poder do Estado. Por motivos de ordem política D. Afonso IV não aceita Inês como esposa legítima de D. Pedro e, por tal, ela terá de morrer, pois escolheu entregar-se a este amor. O abismo é, então, a partir dessa escolha, inevitável.
(CONTINUA)
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