domingo, 24 de dezembro de 2023

VITORINO FRÓIS, JOSÉ TANGANHO, CONCHITA CINTRON E UMA BURRICADA

 

 

 

VITORINO FRÓIS,

JOSÉ TANGANHO,

CONCHITA CINTRON

E

UMA BURRICADA

 

Fleming de Oliveira

 

 

   1901 e 1902, durante a II Guerra Anglo-bóer, inúmeros civis e militares sul-africanos refugiaram-se em Moçambique, principalmente na zona de Lourenço Marques.

 Receosos que os Bóeres se organizassem e voltassem para continuar a guerra, os britânicos pressionaram o governo português para a sua deportação para longe, para Portugal. O realismo impôs-se à necessidade de manter uma ligação política com Londres. Portugal não teve alternativa em termos diplomáticos.

  No Portugal de 1900, em localidades como Caldas da Rainha, Alcobaça, Peniche, Tomar e Abrantes assistiu-se a um esforço inigualável por parte de pessoas e organizações que se uniram para oferecer uma resposta eficaz ao acolhimento e acompanhamento de refugiados vencidos numa guerra longínqua, com a qual, aparentemente, não tinham relação.

 Talvez a principal razão se tenha devido não apenas à tradicional hospitalidade portuguesa, mas também aos persistentes sentimentos antibritânicos decorrentes do Ultimato.

 

  Uma comissão de senhoras de Caldas da Rainha ligadas ao bem-fazer, pensou promover uma tourada e uma quermesse em benefício das crianças bóeres aí alojadas, mas ao ter conhecimento de que elas não se encontram numa necessidade tão grave como suponham, resolveu desistir da tourada, efetuando apenas a quermesse, cujo produto fez reverter em benefício do Hospital de Santo Izidoro.

  Se os calvinistas[1] nada tinham a opor aos jogos do críquete, rugby ou à caça, já a participação nas touradas encontrava-se-lhes vedada, pois é chocante ver como os bois eram tão maltratados.

  Nos princípios do século XX, em Portugal não se questionava a existência de touradas sem bandarilhas. Os calvinistas, encaravam a tourada, não como uma questão de gosto ou tradição, mas civilizacional. Os portugueses contrapunham que tourada sem sangue é a antítese de tourada.

  Alguns exilados não acataram a proibição, pois Vitorino Fróis, organizou uma novilhada na sua propriedade, em honra dos oficiais bóeres. Depois ofereceu-lhes um jantar com orquestra e fogo-de-artifício.

  Exibicionista?

  Conforme José Ferreira Tempero recolheu de seu pai, Fróis, que costumava dizer eu não morro, nem que me matem, encontra-se sepultado em Alfeizerão. Preparou a última morada de forma meticulosa. Como tinha muitos pinhais, mandou cortar o melhor pinheiro para fazer um caixão à medida. As tábuas ficaram guardadas, ao lado de uma lápide em mármore com o nome, data de nascimento e, em aberto, a data do falecimento, que veio a ser utilizada no cemitério de Alfeizerão.

  A relação de Vitorino Fróis com D. Carlos vinha, entre o mais, do interesse de ambos pela festa brava. A ganadaria da Casa de Bragança estava situada no Alentejo, aonde Vitorino Fróis ia por vezes e a manada, que no ano de 1901, pastava em Ameixieira, era composta por 75 cabeças. As vacas eram oriundas de uma ganadaria espanhola e das ganadarias portuguesas de Máximo Falcão e Emílio Infante da Câmara. O primeiro semental, segundo José Tanganho, foi o toiro Caraça, com mais de 500kg e ferro Infante da Câmara, lidado por Vitorino Fróis, e corrido mais 10 vezes. Este animal veio a ser pegado de caras por D. Carlos, num festival onde foram convidados amigos como Simão da Veiga (pai), Conde de Arnoso, José Calazans (forcado), Duarte Pinto Coelho, Teodoro Gonçalves, Alfredo Marreca e Vitorino Fróis.

  Contava-se que Vitorino Fróis, por alturas da década de 1920 foi fazer uma corrida à Real Maestranza de Sevilha, estimulada pela rivalidade entre portugueses e espanhóis. Antes da corrida, o encarregado dos cavalos, veio comunicar-lhe que tinha visto um indivíduo a aguçar os chifres do toiro que lhe saíra na sorte para a lide. Perante isto, Fróis ordenou-lhe que fosse comprar duas navalhas de ponta e mola e que as amarrasse abertas nos cornos do boi. Quando o animal entrou na arena o público entrou em histeria. Vitorino Fróis saiu-se muito bem da lide sem que as pontas das navalhas tocassem no cavalo ainda que ao de leve, pelo que na tradição tauromáquica espanhola saiu da praça em ombros.

 

  Dizia-se, também, que pela mesma altura, convidado por aficionados espanhóis para um jantar, depois de uma lide bem-sucedida em Zafra, estando à mesa, um empregado abeirou-se dele e disse-lhe que não jantasse, porque corria o risco de ser envenenado. Fróis arranjou uma desculpa, e não assistiu ao jantar. No dia seguinte, convidou o dito empregado a ir para a sua quinta de Alfeizerão e, comunicou à família e empregados, que aquele iria por lá ficar enquanto quisesse, com direito a cama, mesa e roupa lavada.

  Será talvez outra lenda pois, ao que consta, nunca tal pessoa veio para Alfeizerão.

 

  Quando António Tempero Júnior, cessou as funções de feitor na Quinta Nova de S. José para se dedicar ao comércio e agricultura por conta própria, foi sucedido por José Bernardo Tanganho, que granjeou fama como cavaleiro tauromáquico, depois de vencer em outubro de 1925, o Circuito Hípico de Portugal, uma volta a Portugal a cavalo com iniciativa do “Diário de Notícias”, aonde participaram 39 concorrentes, dos quais apenas 3 eram civis.

  Numa entrevista ao” Século Ilustrado” em 1958, Tanganho contou que, estava eu um dia nas Caldas da Rainha, com o tenente-coronel José Mousinho que era genro de Vitorino Fróis, que foi o nosso primeiro mestre do toureio a cavalo. Creio que ainda era da família do Mousinho de Albuquerque. Bom. Estávamos nós a tomar café na barraca de um judeu qualquer, quando vimos passar a cavalo o capitão Silva Dias. Vejo-o todos os dias, disse eu. Que é que ele anda a fazer? Anda a treinar o cavalo para o raid, explicou-me o José Mousinho. Qual raid? A Volta a Portugal a cavalo. Cá para mim resolvi logo. Também vou entrar nisso. Tenho uma égua que não há quem possa com a vida dela. Era a égua de uma tipóia de aluguer com que eu me governava. Mas toda a gente me queria tirar aquilo da cabeça. Tu és doido? Os militares andam a treinar os cavalos há três meses e já só faltam quinze dias. E prosseguiu: Agarrei no animal e, sem parar, fui com ele das Caldas a Alcobaça, Nazaré, S. Martino, Foz do Arelho, Peniche. Mas acabei por desistir da égua, quando vi que ela tinha uma assentadura[2]. Nessa altura, quando viram que eu tencionava mesmo levar a minha por diante, apareceram-me várias pessoas a oferecer cavalos. Escolhi o do lavrador António Joaquim, do Cartaxo, um cavalo que andava também engatado a uma charrete, e levei-o das Caldas à Foz do Arelho. Quando lá cheguei, fiquei uns dez ou doze dias em exercícios, amarrava o cavalo a uma bateira e punha-o a fazer força para ganhar pulmão.

  O País vibrou com o raid que se disputou em dezoito etapas, ao longo de 24 dias e 1.458 km, sob sol e chuva, umas vezes a pé, outras a cavalo montado. Inicialmente desapercebido, aos poucos foi suscitando interesse pela rivalidade entre o Capitão Rogério Tavares e o civil (caldense) J. Tanganho. À partida eram 39 cavaleiros, sendo 3 os civis.  Os restantes eram militares, mal-amados pelo clima de revoluções e golpes que se viviam. Afirmava-se, que o civil estava a dar água pela barba ao militar. Tanganho, com 32 anos, e de origens modestas, representava, para o povo, a luta entre um civil de poucos recursos e os militares dotados de pergaminhos. Cada cavaleiro levava uma arma para se defender dos assaltantes ou abater o cavalo ferido.

  Rompi três pares de botas em dezoito dias. Andava dez metros a cavalo e vinte a pé, para o animal se aguentar. E percorria 100, 150 e até 250 quilómetros por dia, sem horário fixo.

  Na etapa Odemira-Monchique, a ser percorrida através da serra, o guia que devia acompanhar os concorrentes, não conhecia o caminho, pelo que estes  andaram 3 horas perdidos, até darem com o casebre de um pastor. O percurso de Moncorvo a Bragança foi feito debaixo de um autêntico dilúvio. Em Arcos de Valdevez, não havia cavalariças, nem ração. Em Chaves, a empresa das Águas das Pedras Salgadas ofereceu dormida aos militares na estância termal, enquanto Tanganho pernoitou no estábulo, com o cavalo.  O comerciante António Joaquim Rocha, proprietário do cavalo montado por Tanganho, deu uma festa à chegada deste ao Cartaxo e ofereceu todo o champanhe que havia na vila. Tanganho perdeu deste modo mais tempo do que o suposto. Ao chegar a Vila Franca de Xira, o meu cavalo começou a fraquejar e houve quem me desse uma garrafa de vinho do Porto para o animal beber e arribar. O cavalo bebeu e passados alguns metros estava com uma grande bebedeira. E para ali vim eu, com o cavalo a curti-la. Tive de o trazer à mão e foi assim que o capitão Rogério Tavares chegou a Lisboa em primeiro lugar, isto é, à minha frente.

  Na chegada a Lisboa, apesar da chuva, os caminhos que levavam ao Pote de Água tinham muito movimento, bem como o Campo Grande. Ao passar um grupo de cavaleiros que constituíam a guarda avançada, dizia-se que era o capitão Tavares que iria ganhar a corrida. Quando este passou, o povo ficou em silêncio, ninguém queria acreditar. Nessa altura José Tanganho vinha ainda a cerca de 7 quilómetros, a pé, com o cavalo pela mão, consolado por um grupo de apoiantes, que davam vivas ao que consideravam ser o vencedor moral. Quando finalmente chegou ao Campo Grande, dois bobem-intencionados bombeiros quiseram oferecer a Tanganho um cálice de porto, mas a multidão gritava ao ver fardas, não bebas que te querem envenenar.

  Tendo o cavalo do capitão Tavares morrido durante a noite, ao que se diz por exaustão, Tanganho sagrou-se vencedor do raid pois ficou à frente nas provas finais, trote e saltos de sebes, realizadas no Jockey Club. Foi o delírio. O público invadiu a pista, levou Tanganho em triunfo, organizando um cortejo até à Câmara Municipal, onde estava preparada uma receção para consagração dos vencedores e entrega de prémios. A classificação ficou assim ordenada:1º) - José Tanganho; 2º)- Ten. Brandão de Brito; 3º)- Cap. Silva Dias.

  Daí em diante, Tanganho passou a exibir-se no Coliseu dos Recreios (Lisboa) e Palácio de Cristal (Porto), com o cachet de vinte mil escudos, quantia elevada para a época.

  A 8 de Outubro, Castello Lopes estreou, no cinema Condes, O Bicho da Serra de Sintra, filme de Artur Costa de Macedo e João de Sousa Fonseca. Em complemento projetou-se Touradas Portuguesas, com os cavaleiros Simão da Veiga (Filho), D. Ruy Zarco da Câmara, António Luís Lopes e José Tanganho. No dia 16 de novembro, o Cinema Tivoli, estriou o documentário Circuito Hípico de Portugal.

  Por insistências de Vitorino Fróis, Tanganho tomou alternativa como cavaleiro tauromáquico, em 1926 no Campo Pequeno.

 

 

  Numa quarta-feira de outubro de 1907, pelas 8 horas e com o apoio da Câmara Municipal e a participação da charanga do Quartel de Artª. 2, uma burricada partiu da porta de armas à conquista dos 44 quilómetros a cumprir no tempo máximo de 10h, com escalas em S. Martinho junto à baía e Nazaré junto á praia – em ambos os casos para reabastecimento e descanso dos animais e montadores – tão grande era a jornada que não excluía o corta-mato. Vitorino Frois associou-se ao evento e, na sua quinta em Alfeizerão, disponibilizou refrescos aos concorrentes.

  Os alcobacenses iam fazendo apostas sobre a chegada dos burriqueiros, até que, perto das 13 horas, já se vislumbrava um. Tudo pasmou, porque era um assombro de velocidade burriqueira, mais lesta que o previsto. As 13 horas a baterem, e Joaquim Santos, da Maiorga, estava a entrar no controlo, rodeado pelo rapazio e populares festejando com vivas e palmas, às quais só o jerico de murcho e cabisbaixo, parecia indiferente.

  Ao longo de uma hora foram chegando os restantes concorrentes, de modo que, antes de 15 horas estavam todos, mas em geral muito cansados, tal como os animais famintos e sedentos. A esta parte da festa juntou-se a Real Fanfarra Alcobacense, tendo o comandante do quartel entregue os prémios aos 5 primeiros que chegaram (1 da Maiorga e vencedor – Joaquim Santos, 1 de Alcobaça – António Barbosa, 1 da Cela – Joaquim Correia, 2 de Évora – os irmãos Soares) e  2$000 réis ao dono do jerico vencedor que, com os demais, teve direito ração melhorada. Aconteceu que o burro do concorrente da Cela, o moleiro Joaquim Correia, não resistiu ao esforço e morreu ao fim da tarde.

 

  Tanganho, foi preparador de cavalos da cavaleira tauromáquica Conchita Cintrón, nascida no Chile em agosto de 1922. Umas vezes ela ia Alfeizerão, outras ia ele à Quinta do Índio. Por muitos considerada peruana, dado neste país ter vivido muitos anos e feito aprendizagem, atingiu notoriedade em Espanha, Portugal e frequentou Alfeizerão. Consuelo Conchita Cintrón Verrill, também conhecida pelo apodo de A Deusa de Ouro, revelava na arena graça, estilo e ousadia, uma combinação conhecida em Espanha por Arte Duende[3].

  Conchita Cintrón deixou marca entre nós, como criadora do cão de água português, raça em vias de extinção. Veio para a Europa para tourear em Espanha, o que implica matar touros na arena, o que lhe não era permitido pelo franquismo por receio de que uma cornada a pudesse desnudar em plena praça. Conchita pretendia que a última corrida da temporada de 1945 em Jaén, fosse a última da sua carreira em Espanha. Aí alternou com os afamados matadores Manolo Vasquez Antonio Ordoñez. Após lidar o touro a cavalo, solicitou ao Diretor de Corrida, a autorização para desmontar e matar o touro, o que lhe foi negado, tendo aquele ordenado a sua saída da arena e mandado um novilheiro matar o animal. Conchita, desmontou do cavalo, agarrou numa espada e numa muleta e avançando para o animal, lidou-o e simulando a estocada fez-lhe uma festa com a mão. Os espectadores entraram em delírio, lançando para a arena chapéus e flores. Conchita quando saiu da arena foi detida por violação da lei. Devido aos protestos dos espectadores e temendo um levantamento popular, o governador da província de Jaén, Ramon Sanchez mandou libertá-la[4].

  Vasco Bensaúde, rico comerciante e armador que tinha começado a salvar da extinção o cão de água português, teve conhecimento de uma bem-sucedida criadora de cães dessa raça, casada com o português, D. Francisco Castelo Branco, sobrinho do seu professor de equitação tauromáquica D. Ruy Zarco da Câmara[5]. Tão bem-sucedida foi com o cão que criava numa quinta situada na margem sul do Tejo perto de Setúbal, a Quinta do Índio, que Bensaúde convidou Conchita Cintrón e marido para almoçarem, onde fez aquela a oferta de que, por sua morte, o seu canil ficaria para ela, já que os seus herdeiros não se interessavam por esta atividade. Conchita nunca mais se encontrou com Bensaúde[6], pelo que a família a contactou para ir buscar o legado de 14 cães, e respetivos ficheiros. Registou o novo canil, com o nome Al-Gharb e começou a criar e a apresentar os cães em exposições e concursos. Achava que os esforços de Bensaúde e os seus na seleção, recuperação e preservação da raça, mereciam ser reconhecidos e considerando ser Portugal um país de gente sem recursos para manter tão maravilhosos cães, recusava-se a vendê-los para o mercado nacional, sendo apenas alguns oferecidos a pessoas de extrema confiança e jamais fêmeas.

  Com o 25 de Abril, alguns portugueses viram as propriedades ocupadas pelos trabalhadores agrícolas e sindicatos. Foi o caso da Quinta do Índio, então com 32 cães. Muitos dos animais foram soltos ou fugiram e quando no fim do Verão de 1974, D. Francisco de Castelo Branco conseguiu aceder à propriedade restavam 15 animais, a maioria gravemente doente. Levou-os ao Canil Municipal de Lisboa, mas segundo o enfermeiro de serviço, alguns poderiam ser salvos, tendo-se assim recusado a abater 3.

  Conchita Cintrón, portuguesa por casamento, saiu do país com a família para o México, tendo regressado nos finais da década de 1980. Em 3 de Agosto de 1995, o Governo português atribui-lhe a Medalha de Mérito Cultural. Em agosto de 2006, na Praça de Touros do Campo Pequeno, foi madrinha (simbólica) da alternativa da cavaleira Ana Baptista. Faleceu em Lisboa com 86 anos, a 17 de fevereiro de 2009. 

  A sua memória destaca-se como uma repreensão a cada um de nós que afirmavam que uma mulher deve perder algo da sua feminilidade, se ela pretender competir com os homens, escreveu Orson Welles sobre Conchita Cintrón, na introdução a “Memoirs of a Bullfighter”, que esta escreveu.

 

 

 

 

 



[1] Os bóeres, na generalidade, eram calvinistas.

[2] Compressão, produzida pela cava superior da ferradura na face plantar do casco do cavalo.

[3] António Barbosa Guerra (Maiorga), amigo do autor (2012).

[4] António Barbosa Guerra, ouviu falar deste episódio, aquando de uma corrida de touros em Jerez de la Frontera.

[5] Filho do 9º. Conde da Ribeira Grande, nasceu em 1888, faleceu em 1952 e esteve a viver no Perú por razões políticas. Aí conheceu Conchita Citrón e deu-lhe aulas de equitação.

[6]  Morreu em agosto de 1967.

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