Há
quem entenda que o Fado se postou servilmente perante o Estado Novo. Não
terá sido assim, pois as relações entre ambos nem sempre foram isentas de
conflitos.
O 28
de Maio teve dificuldades em dedilhar os acordes sociais do fado. Como é que a
ideologia moralista do regime enfrentaria uma manifestação cultural de raízes
essencialmente populares, e que simultaneamente se desenvolvia com plangências
e lamentos em antros de prostituição, marginalidade e vadiagem?
O Fado
sentia-se perseguido e depois da meia-noite, mesmo em ambiente de taberna,
tinha de ser tocado baixinho e de portas fechadas.
Com a
profissionalização, passou a ser necessário ter carteira para atuar em público,
deveriam calar-se as vozes roucas e avinhadas, reivindicando-se a figura do
fadista honesto, trabalhador, embora não se impedisse que os operários cantassem
o fado desde que ensaiassem na oficina, ao som de martelos e bigorna.
Os
puritanos do regime, não se pouparam em o denegrir, com epítetos como Fado
Relice Nacional, Miséria Moral e Musical, Canto de Criminais, Elegia de Taberna,
de Cárcere e de Alcouce, Lengalenga Monótona e Reles dos Tristes, Desgraçados,
Estúrdios e Brigões.
Para
sobreviver, o Fado teve, como muito boa gente, de se submeter ao Regime.
Nem
letras escapavam ao exame da Inspeção-geral dos Espetáculos, na procura de
encontrar material subversivo.
Recorde-se o que aconteceu com uma noite de fados marcada para 9 de dezembro de 1939, no Café Mondego. As letras haviam sido enviadas para a Inspeção dos Espetáculos, a fim de serem aprovadas. O fado Tejo, Canção da Saudade, da autoria de Aureliano Lima da Silva, mereceu aprovação. Já um outro do mesmo autor, A Guitarra, foi aprovado com cortes. Na primeira quadra, cantava-se, conforme a censura Querida guitarra//Alma bizarra//És imortal, mas omitia-se, a tua história//É a glória de Portugal. Porquê? A última quadra sofreu um corte, cantando-se guitarra querida//A tua vida//Está gravada dentro de nós, no lugar de por que és a voz//da pátria amada.
Porquê?
O Fado
Socialista, com letra de Ramada Curto, em 1927 não deixava ao censor margem
para hesitações, pois abordava Gente rica e bem vestida//P’ra quem a
vida é fagueira//Olhem qu’existe outra vida//N’Alfama e na Cascalheira! (…)
Mas um dia hão-de descer//Os lobos ao povoado…//Temos o caldo
entornado//Vai ser bonito de ver//Não verá quem não viver//O fogo d’essa
fogueira//Soa a hora derradeira//De quem é feliz agora…//Às mãos da gente que
chora.
Há
quem defenda que na perspetiva do Regime, o Fado desempenhou uma função de
apaziguamento de tensões ou mesmo de revolta, ao proporem-se rumos de vida
fatalista, inevitável e conformista, Deixa-os lá//Não te metas na questão//Se
o mar ralha com a rocha//Quem se lixa é o mexilhão.
Por
volta de 1962, o fado Abandonado, com letra de David Mourão-Ferreira e música
de Alain Oulman, interpretado por Amália Rodrigues, que ficou conhecido como o
Fado Peniche, foi proibido por ser considerado um hino aos que se encontravam presos,
concretamente no Tarrafal ou Peniche, o que era verdade. Aquele
fado
incluído no álbum conhecido como Busto– devido à estatueta que trazia na capa
para obviar à ausência de título – marcou o encontro profícuo entre Amália e Alain
Oulman.
Por teu livre pensamento//Foram-te longe encerrar.//Tão longe que o meu lamento//Não te consegue alcançar.//E apenas ouves o vento//E apenas ouves o mar.//Levaram-te a meio da noite://A treva tudo cobria.//Foi de noite, numa noite//De todas a mais sombria.//Foi de noite, foi de noite//E nunca mais se fez dia.//Ai! dessa noite o veneno//Persiste em me envenenar.//Oiço apenas o silêncio//Que ficou em teu lugar.//E ao menos ouves o vento//E ao menos ouves o mar.
Vítor
Pavão dos Santos, escreveu que Amália, de quem é biógrafo, terá dito que, não
sei se canto aquilo que o autor quer, mas o que entendo chega-me para
cantar. As coisas quando têm força são sentidas pelas pessoas todas. Só uns
versos muito complicados, a quererem dizer coisas que não chegam a dizer,
é que ninguém entende. Sempre achei o Abandono, do David Mourão-Ferreira, um
fado de amor. Nunca pensei em Peniche. E um fado de tal maneira
bem
feito, com palavras tão bonitas, com tanto peso, que não quer dizer que o não
tivesse cantado sabendo a sua intenção. E talvez até o tivesse cantado com um
ar tão revolucionário que não daria aquele resultado. Teria saído pior. O disco
chegou a estar proibido por causa do Abandono. Depois é que o soltaram. Mas
quando o cantei, aquilo era uma tristeza de amor, que é um sentimento muito
mais bonito e muito mais dorido que uma ideia revolucionária. Era o amor de uma
pessoa que foi com outra. Não me passavam pela cabeça prisões. É um fado que,
ainda hoje, toda a gente gosta dele. E cada pessoa o sentiu à sua maneira. Um
revolucionário pensou que era de Peniche, mas a maior parte de Portugal, que
não é privilegiada, que não estava alertada, que é como eu, pensou no amor.
Assim, chegou a toda a gente. A partir deste primeiro disco, o Alain foi sempre
muito importante para mim.
Esta
observação é intrigante, pois não parece crível que Amália, não tenha tido consciência
do alcance da letra de Mourão-Ferreira. Amália escolheu também de Pedro Homem
de Mello, Povo que Lavas no Rio, que ganhou uma dimensão política. Na década de
1970, no auge da sua fama internacional, a sua imagem em Portugal foi afetada
por falsos rumores de que mantinha ligações com o Regime.
A
ideia que perpassa, é que se Amália não teve militância aberta contra o Regime,
também não lhe fez oposição expressa e pública e até consentiu – ou teve de consentir–
num aproveitamento que este lhe fez. Apontava-se-lhe, por exemplo, o facto de a
27 de Junho de 1958, Dia de Portugal na Exposição Universal de Bruxelas, ter
sido condecorada no restaurante do pavilhão, com as insígnias de Cavaleiro da
Ordem de Sant´Iago, por Marcelo Caetano, Ministro da Presidência. A sua recuperação
junto do público, não impediu que lhe tivessem restado algumas mágoas, não
obstante as honrarias que ainda teve tempo de receber do Estado Democrático, que
culminaram nas cerimónias nacionais, aquando do falecimento e a trasladação
para o Panteão.
Na
semana em que se comemorou o centenário do nascimento de Amália Rodrigues,
chegou às livrarias um livro que apresenta o lado político da Rainha do Fado. Amália
– Ditadura e Revolução resulta de uma investigação de Miguel Carvalho e
revela que, apesar de nos palcos a artista ter alinhado no cenário montado pela
propaganda do Estado Novo e colaborado com a PIDE, nos bastidores ajudou
financeiramente famílias de presos políticos. A investigação revela que foi vigiada
pela PIDE por suspeita de apoiar ativistas comunistas e que um dos documentos encontrados,
é um registo dos serviços centrais da PIDE de 1957, com um pedido de bilhete de
identidade de Amália Rodrigues e um relatório de 1939, relativo à Organização
Comunista do Fado, onde se referia o seu nome.
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