Túnel na Vestearia-Alcobaça
Fleming de Oliveira
Um túnel foi descoberto na
Vestiaria/Alcobaça.
A descoberta aconteceu quando, no decorrer de obras no pavimento, os operários detetaram um abatimento do piso.
Os operários estavam a fazer um alicerce e quando escavaram para colocar o lancil depararam-se com um buraco fundo, que abriram um pouco mais. O túnel tem continuidade, mas estará barrado por raízes de eucalipto. Vamos ver se é possível abrir para ver onde vai dar. Suspeito que quando foram abertas as condutas de água poderão ter fechado parte do túnel, informou o então Presidente da Junta de Freguesia da Vestiaria, António André.
Segundo o mesmo, com cerca de um metro de largura e dois de altura, o túnel tem livres vários metros e para numa sala com mesas e bancos.
António André, disse pensar que
esta passagem era utilizada pelos frades de Alcobaça, já que consta a
existência de uma rede de túneis que ligava o mosteiro ao castelo e a outros
locais como o mosteiro feminino de Coz, para refúgio ou escapadas dos monges e
para evacuação da população.
O autarca da Vestiaria não tinha
razão, pois invocava uma mera lenda. O túnel nada tem de misterioso ou
especial, pois trata-se apenas de uma mina de água entre as muitas que existem
na zona. As suas dimensões não são exageradas e ajustam-se às necessidades de
utilização, sem esquecer as de limpeza. Desconhece-se a data de construção,
embora não esteja excluído de todo ter sido construído no tempo dos monges.
J. Pedro Tavares informou que Alcobaça localiza-se numa região geologicamente interessante, numa Orla Ceno-Mesozoica entre a Meseta Ibérica e o Oceano Atlântico e bordejando o Maciço Calcário Estremenho. Solos sedimentares do Jurássico salpicados por pontos eruptivos (ex.: Monte Bartolomeu / S. Brás) e tendo também camadas anteriores mais antigas, como acontece no Vale Tifónico nos férteis Campos do Valado.
Estratos de Grés (rocha branda, vulgo piçarra
na gíria local) de possanças (espessura) apreciáveis, constituem “esponjas
gigantes” de armazenamento de água. Um túnel escavado no grés húmido
proporcionará pequenos escorrimentos de água que formarão filetes líquidos no
fundo que escorrem por gravidade. Quanto maior for o túnel, maior será a
quantidade de água escorrida e tendo ele pequena inclinação trará a água para o
exterior por gravidade. A isto se chama Mina de Água. Tirando partido da
topografia de colinas e vales variados, bem como do cadastro de propriedades,
inúmeras “Minas” terão sido criadas quer em era cisterciense (até 1833) quer
posterior, permitindo a agricultura variada de tão rico e variado Couto! Minas
constituídas por corredores, curtos ou compridos, com divisões e ramificações,
retos ou curvilíneos, com poços quando convenientes (para ventilação e para
retirada dos materiais de escavação). Corredores com largura e altura
suficientes para um homem poder trabalhar (um metro e tal por dois metros e
tal). Corredores com paredes toscas no grés e cobertura ovalizada, simples ou
com reforço tipo abobadilha. Minas com vinte metros de túnel ou cem metros ou
mais em rede dividida!
E destas Minas de Água extraordinárias, havia
centenas ou milhares na Região de Alcobaça, delas dependia a obtenção da água.
Sistema de Minas complementado pelos caudais dos Rios Alcoa e Baça e suas
levadas.
Com a chegada do Progresso, veio também a
facilidade de gerir tão precioso líquido. A Água passou a captar-se onde a há,
armazena-se em quantidade, transvasa-se em extensão, eleva-se em pressão,
consome-se sob factoração, sem preocupação de maior, sem limite aparente.
E as minas, de caudal limitado e requerendo
esforço de construção e de manutenção e limpeza, foram naturalmente
abandonadas, devolvidas à Natureza. Ou atulhadas por segurança! Hoje, de tantas
centenas, só conheço meia dúzia ainda em funcionamento ou simples existência!
Pelo
que, houve muitos túneis escavados nos Grés da Alcobaça. Túneis que hoje,
quando encontrados, alimentam o imaginário popular! Túnel de ligação entre
Mosteiros, Túnel da Vestiaria até Alcobaça (existia sim, com poços de
inspeção/ventilação para trazer água para o grande tanque na Costa Veiga),
Túnel para refúgios e escapadelas (e também porque não?)
Porem, com 99,9% de certeza, qualquer túnel,
poço ou até sala de passagem, destinava-se a obter e proporcionar Água! Sem
prejuízo de poderem existir salas com origem na ajuda à construção e que
posteriormente poderiam ser usadas para curtos períodos de estadia ou descanso,
fresco no Verão, agradável no Inverno.
Falava-se, falava-se, numa comunicação subterrânea entre o Mosteiro de Alcobaça e o Convento de Coz.
Manuel Vieira Natividade escreveu[1] que o convento de freiras mais próximo ficava a 8 quilómetros, e não é crível que se achasse ligado ao de Alcobaça por tão extenso caminho subterrâneo. E nem isso era preciso. O Mosteiro de Cós, da mesma Ordem de Cister, vivia sob a obediência e proteção do de Alcobaça, que lhe dispensava até a alimentação, para o que tinha diversas propriedades, incluindo a Quinta das Freires, nas imediações da sua cerca e, por esse motivo designada por esse nome.
Estando a cozinha do lado de lá da porta, o
monge que quisesse ir buscar a refeição, teria que ser capaz de a atravessar.
Os 32 centímetros de largura asseguravam que os monges não só não poderiam ter
uma barriga volumosa, como teriam que cumprir uma dieta cuidada, sob o risco de
não conseguirem deslocar-se à cozinha.
É verdade que do outro lado da porta existia
uma cozinha. A cozinha primitiva localizava-se do outro lado dessa pequena
porta, mas dela só restam vestígios. A atual cozinha é do século XVIII e não
foi a primeira. A porta é mais larga do que consta nas publicações que espalham
a Lenda da Porta Pega Gordos. Não tem apenas 32 centímetros, mas pelo menos 50.
Era o que se chama passe plat (passagem para travessas com alimentos), através
da qual os monges encaminhavam pratos e travessas para o refeitório. Porque
servia apenas para a passagem de utensílios de cozinha e de refeições, não
havia necessidade de ser construída com maiores dimensões.
Depois da extinção das Ordens Religiosas e criou-se a maliciosa ideia de que os monges de Alcobaça só comiam e dormiam. Começou a surgir a figura do monge gordo, indolente e néscio associado no imaginário popular aos doces conventuais. Contudo, os cistercienses seguiam uma dieta rigorosa e comiam o que produziam, essencialmente peixe, legumes, fruta e pão[2].
Ramalho Ortigão visitou o Mosteiro em 1886 e escreveu que a cozinha, é verdadeiramente monumental, é de uma altura catedralesca, em abóbada forrada de tijolos esmaltados e medindo perto de trinta metros de comprimento. A chaminé, colocada ao centro da casa, sobre colunas de ferro, é de tais dimensões, que permitia assar no espeto a um tempo, sobre o lar que ela cobre, seis ou oito bois. Em roda estão os fornos de mármore, servidos de água por grossas torneiras de bronze. A um topo vê-se a abertura em que deve ter girado a grande roda destinada a passar comidas para o refeitório.
Para Zagallo e Vilhena Barbosa, ela
não servia para assar mais que um.
Manuel Vieira Natividade, dá as dimensões exatas e calcula que três bois podiam
ser assados à vontade.
Contígua
ao refeitório fica a cozinha, que é o assombro de todos os visitantes, pela sua
grandeza e pela sua disposição. Passa como lenda que na sua chaminé, se podia
assar um boi inteiro, mas nós afiançamos que esse animal triplicado ainda
deixaria vasto campo para se fazerem acepipes e badulaques para os reverendos
Frades.
É este autor quem terá razão. O Guia de Portugal, calcula que podiam ser assados no espeto, ao mesmo tempo, seis ou sete bois. É da mesma opinião o autor de As Estradas de Portugal.
Varela Altamira[3], afirma que a chaminé possui tais proporções que se podiam assar oito bois ao mesmo tempo.
Uma chaminé, dotada de tão curiosas e extraordinárias propriedades, capaz de crescer segundo a ótica e o estado de espírito dos que a descrevem, é monumento que há que rodear de todos os cuidados. O autor da nota sobre Alcobaça na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira fez o comentário: A enorme cozinha atual, é ladeada de altas chaminés parietais, com a vasta lareira central, de ampla mesa para tassalhar os blocos de vianda, tudo em duplicação da craveira comum, como se as vitualhas fossem preparadas para o insondável estômago de Gargântua.
Nada era mais necessário para transformar Alcobaça numa Abadia de Thelema, equipada com uma Cozinha de Gargântua ou Titã, digna do que W. Beckford estigmatizou com o epíteto de Templo de Gastronomia, ou Glutonaria.
Manuel Pinheiro Chagas, escreveu que tinham grande reputação de ignorância e de glutões os frades bernardos, sendo bernardo o frade espesso das picarescas lendas populares. Confirmou essa tradição José Agostinho de Macedo, na dedicatória do poema Os Burros, ao Geral dos bernardos. Mas a tradição é injusta na generalidade.
Almeida Garrett[4], na cena entre bentos e bernardos, não foi lisonjeiro para estes últimos.
A despeito do muito de bom que fez, o frade alcobacense tornou-se, com o tempo, sinónimo de estúpido e de glutão. Dicionários como o de Morais, definem Bernardo como um sujeito muito gordo e estúpido que só se preocupa com a glutonaria, ou o de Cândido de Figueiredo, como estúpido e gordo, refletindo o que entrara na gíria e nos conceitos populares.
Pode reproduzir-se a conclusão de Varela Altamira:
Até onde se pode ir? Não se sabe. O
laboratório culinário conventual está sempre no mesmo lugar, com a sua alta
chaminé recoberta de azulejos brancos. Não se fizeram lá quaisquer obras desde
1834 e as suas dimensões permaneceram as mesmas. Todavia, em menos de um
século, a cozinha observada por diversas pessoas multiplicou oito vezes o seu
volume. É também possível que um boi do século passado, valha um rebanho de
hoje em dia, época de vacas magras que atravessamos.
[1] Manuel Vieira Natividade in, O Mosteiro de Alcobaça (ed.1886)
[2] D. Maur Cocheril in, Beckford et la Cuisine de Alcobaça. Tradução e notas de Fleming de Oliveira.
[3] Roteiro das Muitas e Variadas Coisas.
[4] D. Branca, poema lírico-narrativo, do primeiro exílio de Garrett em 1826, aborda um episódio lendário relacionado com a época evocada no título (D. Branca ou a conquista do Algarve). A história do amor infeliz entre a infanta D. Branca e o rei mouro Aben-Afan.
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