domingo, 24 de dezembro de 2023

TÚNEL NA VESTEARIA-ALCOBAÇA

 

 

Túnel na Vestearia-Alcobaça

 

Fleming de Oliveira

 

 

 

 

  Um túnel foi descoberto na Vestiaria/Alcobaça.

  A descoberta aconteceu quando, no decorrer de obras no pavimento, os operários detetaram um abatimento do piso.

  Os operários estavam a fazer um alicerce e quando escavaram para colocar o lancil depararam-se com um buraco fundo, que abriram um pouco mais. O túnel tem continuidade, mas estará barrado por raízes de eucalipto. Vamos ver se é possível abrir para ver onde vai dar. Suspeito que quando foram abertas as condutas de água poderão ter fechado parte do túnel, informou o então Presidente da Junta de Freguesia da Vestiaria, António André.

  Segundo o mesmo, com cerca de um metro de largura e dois de altura, o túnel tem livres vários metros e para numa sala com mesas e bancos.

  António André, disse pensar que esta passagem era utilizada pelos frades de Alcobaça, já que consta a existência de uma rede de túneis que ligava o mosteiro ao castelo e a outros locais como o mosteiro feminino de Coz, para refúgio ou escapadas dos monges e para evacuação da população.

  O autarca da Vestiaria não tinha razão, pois invocava uma mera lenda. O túnel nada tem de misterioso ou especial, pois trata-se apenas de uma mina de água entre as muitas que existem na zona. As suas dimensões não são exageradas e ajustam-se às necessidades de utilização, sem esquecer as de limpeza. Desconhece-se a data de construção, embora não esteja excluído de todo ter sido construído no tempo dos monges.

  J. Pedro Tavares informou que Alcobaça localiza-se numa região geologicamente interessante, numa Orla Ceno-Mesozoica entre a Meseta Ibérica e o Oceano Atlântico e bordejando o Maciço Calcário Estremenho. Solos sedimentares do Jurássico salpicados por pontos eruptivos (ex.: Monte Bartolomeu / S. Brás) e tendo também camadas anteriores mais antigas, como acontece no Vale Tifónico nos férteis Campos do Valado.

  Estratos de Grés (rocha branda, vulgo piçarra na gíria local) de possanças (espessura) apreciáveis, constituem “esponjas gigantes” de armazenamento de água. Um túnel escavado no grés húmido proporcionará pequenos escorrimentos de água que formarão filetes líquidos no fundo que escorrem por gravidade. Quanto maior for o túnel, maior será a quantidade de água escorrida e tendo ele pequena inclinação trará a água para o exterior por gravidade. A isto se chama Mina de Água. Tirando partido da topografia de colinas e vales variados, bem como do cadastro de propriedades, inúmeras “Minas” terão sido criadas quer em era cisterciense (até 1833) quer posterior, permitindo a agricultura variada de tão rico e variado Couto! Minas constituídas por corredores, curtos ou compridos, com divisões e ramificações, retos ou curvilíneos, com poços quando convenientes (para ventilação e para retirada dos materiais de escavação). Corredores com largura e altura suficientes para um homem poder trabalhar (um metro e tal por dois metros e tal). Corredores com paredes toscas no grés e cobertura ovalizada, simples ou com reforço tipo abobadilha. Minas com vinte metros de túnel ou cem metros ou mais em rede dividida!

  E destas Minas de Água extraordinárias, havia centenas ou milhares na Região de Alcobaça, delas dependia a obtenção da água. Sistema de Minas complementado pelos caudais dos Rios Alcoa e Baça e suas levadas.

  Com a chegada do Progresso, veio também a facilidade de gerir tão precioso líquido. A Água passou a captar-se onde a há, armazena-se em quantidade, transvasa-se em extensão, eleva-se em pressão, consome-se sob factoração, sem preocupação de maior, sem limite aparente.

  E as minas, de caudal limitado e requerendo esforço de construção e de manutenção e limpeza, foram naturalmente abandonadas, devolvidas à Natureza. Ou atulhadas por segurança! Hoje, de tantas centenas, só conheço meia dúzia ainda em funcionamento ou simples existência!

Pelo que, houve muitos túneis escavados nos Grés da Alcobaça. Túneis que hoje, quando encontrados, alimentam o imaginário popular! Túnel de ligação entre Mosteiros, Túnel da Vestiaria até Alcobaça (existia sim, com poços de inspeção/ventilação para trazer água para o grande tanque na Costa Veiga), Túnel para refúgios e escapadelas (e também porque não?)

  Porem, com 99,9% de certeza, qualquer túnel, poço ou até sala de passagem, destinava-se a obter e proporcionar Água! Sem prejuízo de poderem existir salas com origem na ajuda à construção e que posteriormente poderiam ser usadas para curtos períodos de estadia ou descanso, fresco no Verão, agradável no Inverno.

 

  Falava-se, falava-se, numa comunicação subterrânea entre o Mosteiro de Alcobaça e o Convento de Coz.

  Manuel Vieira Natividade escreveu[1] que o convento de freiras mais próximo ficava a 8 quilómetros, e não é crível que se achasse ligado ao de Alcobaça por tão extenso caminho subterrâneo. E nem isso era preciso. O Mosteiro de Cós, da mesma Ordem de Cister, vivia sob a obediência e proteção do de Alcobaça, que lhe dispensava até a alimentação, para o que tinha diversas propriedades, incluindo a Quinta das Freires, nas imediações da sua cerca e, por esse motivo designada por esse nome.

 

  Estando a cozinha do lado de lá da porta, o monge que quisesse ir buscar a refeição, teria que ser capaz de a atravessar. Os 32 centímetros de largura asseguravam que os monges não só não poderiam ter uma barriga volumosa, como teriam que cumprir uma dieta cuidada, sob o risco de não conseguirem deslocar-se à cozinha.

  É verdade que do outro lado da porta existia uma cozinha. A cozinha primitiva localizava-se do outro lado dessa pequena porta, mas dela só restam vestígios. A atual cozinha é do século XVIII e não foi a primeira. A porta é mais larga do que consta nas publicações que espalham a Lenda da Porta Pega Gordos. Não tem apenas 32 centímetros, mas pelo menos 50. Era o que se chama passe plat (passagem para travessas com alimentos), através da qual os monges encaminhavam pratos e travessas para o refeitório. Porque servia apenas para a passagem de utensílios de cozinha e de refeições, não havia necessidade de ser construída com maiores dimensões.

  Depois da extinção das Ordens Religiosas e criou-se a maliciosa ideia de que os monges de Alcobaça só comiam e dormiam. Começou a surgir a figura do monge gordo, indolente e néscio associado no imaginário popular aos doces conventuais. Contudo, os cistercienses seguiam uma dieta rigorosa e comiam o que produziam, essencialmente peixe, legumes, fruta e pão[2].

  Ramalho Ortigão visitou o Mosteiro em 1886 e escreveu que a cozinha, é verdadeiramente monumental, é de uma altura catedralesca, em abóbada forrada de tijolos esmaltados e medindo perto de trinta metros de comprimento. A chaminé, colocada ao centro da casa, sobre colunas de ferro, é de tais dimensões, que permitia assar no espeto a um tempo, sobre o lar que ela cobre, seis ou oito bois. Em roda estão os fornos de mármore, servidos de água por grossas torneiras de bronze. A um topo vê-se a abertura em que deve ter girado a grande roda destinada a passar comidas para o refeitório.

  Para Zagallo e Vilhena Barbosa, ela não servia para assar mais que um.
Manuel Vieira Natividade, dá as dimensões exatas e calcula que três bois podiam ser assados à vontade.

Contígua ao refeitório fica a cozinha, que é o assombro de todos os visitantes, pela sua grandeza e pela sua disposição. Passa como lenda que na sua chaminé, se podia assar um boi inteiro, mas nós afiançamos que esse animal triplicado ainda deixaria vasto campo para se fazerem acepipes e badulaques para os reverendos Frades.

  É este autor quem terá razão. O Guia de Portugal, calcula que podiam ser assados no espeto, ao mesmo tempo, seis ou sete bois. É da mesma opinião o autor de As Estradas de Portugal.

 Varela Altamira[3], afirma que a chaminé possui tais proporções que se podiam assar oito bois ao mesmo tempo.

  Uma chaminé, dotada de tão curiosas e extraordinárias propriedades, capaz de crescer segundo a ótica e o estado de espírito dos que a descrevem, é monumento que há que rodear de todos os cuidados. O autor da nota sobre Alcobaça na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira fez o comentário: A enorme cozinha atual, é ladeada de altas chaminés parietais, com a vasta lareira central, de ampla mesa para tassalhar os blocos de vianda, tudo em duplicação da craveira comum, como se as vitualhas fossem preparadas para o insondável estômago de Gargântua.

  Nada era mais necessário para transformar Alcobaça numa Abadia de Thelema, equipada com uma Cozinha de Gargântua ou Titã, digna do que W. Beckford estigmatizou com o epíteto de Templo de Gastronomia, ou Glutonaria.

  Manuel Pinheiro Chagas, escreveu que tinham grande reputação de ignorância e de glutões os frades bernardos, sendo bernardo o frade espesso das picarescas lendas populares. Confirmou essa tradição José Agostinho de Macedo, na dedicatória do poema Os Burros, ao Geral dos bernardos. Mas a tradição é injusta na generalidade.

  Almeida Garrett[4], na cena entre bentos e bernardos, não foi lisonjeiro para estes últimos.

  A despeito do muito de bom que fez, o frade alcobacense tornou-se, com o tempo, sinónimo de estúpido e de glutão. Dicionários como o de Morais, definem Bernardo como um sujeito muito gordo e estúpido que só se preocupa com a glutonaria, ou o de Cândido de Figueiredo, como estúpido e gordo, refletindo o que entrara na gíria e nos conceitos populares.

  Pode reproduzir-se a conclusão de Varela Altamira:

  Até onde se pode ir? Não se sabe. O laboratório culinário conventual está sempre no mesmo lugar, com a sua alta chaminé recoberta de azulejos brancos. Não se fizeram lá quaisquer obras desde 1834 e as suas dimensões permaneceram as mesmas. Todavia, em menos de um século, a cozinha observada por diversas pessoas multiplicou oito vezes o seu volume. É também possível que um boi do século passado, valha um rebanho de hoje em dia, época de vacas magras que atravessamos.

 

 



[1] Manuel Vieira Natividade in, O Mosteiro de Alcobaça (ed.1886)

[2] D. Maur Cocheril in, Beckford et la Cuisine de Alcobaça. Tradução e notas de Fleming de Oliveira.

[3] Roteiro das Muitas e Variadas Coisas.

[4]  D. Branca, poema lírico-narrativo, do primeiro exílio de Garrett em 1826, aborda um episódio lendário relacionado com a época evocada no título (D. Branca ou a conquista do Algarve). A história do amor infeliz entre a infanta D. Branca e o rei mouro Aben-Afan.

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