quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

ERA UM TEMPO EM QUE SE ANDAVA DESCALÇO, SE JOGAVA À MACACACA, DE DEUS, PÁTRIA E FAMÌLIA, DOS AMOLA-TESOURAS, DAS LAVADEIRAS, DOS CRIADOS DA LAVOURA, DOS MALEFÌCIOS DA TELEVISÃO

 

 

 

ERA UM TEMPO EM QUE SE ANDAVA DESCALÇO,

SE JOGAVA À MACACACA,

DE DEUS, PÁTRIA E FAMÌLIA,

DOS AMOLA-TESOURAS,

DAS LAVADEIRAS,

DOS CRIADOS DA LAVOURA,

DOS MALEFÌCIOS DA TELEVISÃO

 

FLeming de OLiveira

 

 

 

Era um tempo em que em fins de um qualquer ano quente e não chuvoso, as uvas estavam bonitas, e assim parecia que se podia começar a vindimar. O pai de Ti’ Inácio, então com uns cinco ou seis anos, tirou um bago do cacho que acabara de colher, e deu-lhe a provar. O rapaz trincou e logo cuspiu, era azedo. Assim, Ti’ Inácio começou a perceber que tudo tem o seu tempo, obedece a regras da natureza ou da sociedade. Por isso dizia que quem não respeita as regras é desordeiro, quem sempre as põe em causa e delas troça, é ateu a infetar os que estão por perto.

Era um tempo em que os meninos sabiam de onde vinham os pintos, como cortar canas, construir um moinho de água, distinguir os pássaros, os insetos ou répteis, bem como as árvores de fruto. E que o coaxar das rãs adivinhava água.

E ainda do frio ou calor que as crianças sentiam nos pés descalços, o que era, todavia, esquecido pelas intensas e emocionantes brincadeiras. Jogava-se à cartola ou à macaca com uma bola de trapos ou saltava-se ao eixo. O jogo do pião, com o aguçado bico de prego, era muito popular. Catarino ao mesmo tempo que a jogar o pião ou saltar ao eixo, aprendeu que, quem nos Montes ensinou o homem a podar, foi um jumento que roeu uma cepa que veio a rebentar com mais força e dar melhores cachos.

Era um tempo em que o Estado Novo concebeu uma imagem da família, associada à importância a Deus. E deste modo a interiorizou na escola, sem a discutir.

Na Lição de Salazar, Deus Pátria, Família, Catarino identificava-se com a família

modesta num espaço rural, privilegiada para a vivência e o culto das virtudes morais, visando desencorajar o êxodo rural associado ao desemprego, ao individualismo e à dissolução de costumes.

A nível político vivia-se de forma muito interiorizada, pois, dada a existência da polícia política, era pouco prudente expressar opiniões ou tomar iniciativas entendidas como desviantes. Portugal era um país pobre, com cerca de 50% ou mais da população vivendo da agricultura, um índice de analfabetismo de mais de 75% para as mulheres e 70% para os homens. A mortalidade infantil era grande. Sendo a famílias numerosas, era usual ouvir-se dizer conformadamente como Francisca Maria, da Ribeira – que trabalhou duas vezes nas vindimas para o Dr. Magalhães encontrando-se grávida – tive seis filhos, mas morreu-me uma com ano e meio.

Casas modestas com pequeno terreiro para alguma criação, sem água corrente, sem eletricidade, sem telefone, estradas sem alcatrão ou mesmo paralelepípedos, como recorda Francisca Maria, para quem na sua filosofia ingénua a velhice é estação sem paragem, mesmo que o calendário ateste a chegada perto dos 90 anos. A garantia é dada, pois não sinto o peso da idade, nem penso nisso.

Não havia Previdência Social, indústria ou serviços. A Assistência Social, nos termos da Constituição, competia ao Estado, promover e favorecer as instituições de solidariedade, previdência, cooperação e mutualidade, isto é, previa-se uma organização corporativa do Estado que o eximia de grandes responsabilidades em termos de prestação de cuidados de saúde através de serviços públicos, transferindo-as preferencialmente para a família ou para instituições criadas e suportadas pelos cidadãos. O Estado delegou em várias entidades e instituições, que não nos meios rurais de Alcobaça, a prestação de cuidados de saúde, reservando-se à prestação de cuidados aos pobres. A CRP estipulava que cabia ao Estado zelar pela melhoria de condições das classes sociais mais desfavorecidas, obstando a que elas desçam abaixo do mínimo de existência humanamente suficiente, afirmando ainda a obrigação – apenas programático-orientadora – de o Estado defender, a par da moral, a salubridade alimentar e a higiene pública. Era terreno para iniciativas privadas de assistência que o poder político via como essenciais no combate à miséria. Ao Estado não cabia a compaixão, apesar da afirmação reiterada do catolicismo dos seus dirigentes. A política do Regime, alegadamente humanista e cristã, era compaginável com o comentário do Diário Popular, em Nota da Redação, onde se narrava o caso de uma velhinha apanhada por um fiscal da Câmara de Lisboa, quando no lixo, procurava algo que comer. O redator daquele vespertino, defendia que o fiscal que multou a senhora faminta cumpriu o seu dever, como mais tarde o Juiz que a condenou pois, assim, se extinguirá a mendicidade e a miséria no Portugal de 1958.

Os pobres deparavam com barreiras no acesso a cuidados de saúde, escassez e distribuição desigual de recursos, restrições geográficas, fragilidades dos serviços públicos normalmente localizados na sede dos concelhos e assimetria acentuada pela necessidade de expor a situação de pobreza, através do nem sempre fácil de obter Atestado de Pobreza. A vida nos campos, sem eletricidade, esgotos, com água trazida em cântaros da fonte, muito se devia assemelhar à de centenas de anos. O ritmo era marcado pelo Sol, a terra cultivada pela força braçal e dos animais, a maioria dos produtos feitos pelos agricultores. As crianças ajudavam a família a partir dos 6 ou 7 anos no trabalho do campo, ou, no caso das famílias mais pobres, migrando para vilas e cidades. As raparigas iam servir na casa de pessoas abastadas, enquanto os rapazes ajudavam nas mercearias, dormindo sobre sacos de carvão, esperando uma oportunidade de emigrar para o Brasil, arranjar um emprego nas obras, na Guarda Republicana ou se estabelecerem por conta própria.

A existência de criados de lavoura manteve-se enquanto o gado representou um fator importante no trabalho da terra. A situação desapareceu quando a mecanização agrícola, tornou inviável o seu uso nos trabalhos agrícolas. Os criados de lavoura, bem como as criadas de casa, não propriamente criadas de servir, que alguns lavradores tinham ao serviço, eram quase sempre filhas de trabalhadores pobres que garantiam o sustento mesmo sem salário, a troco de cama e mesa. A alimentação não era abundante quanto às proteínas animais. Um porco, morto e salgado em dezembro, tinha que durar todo o ano, complementado por umas sardinhas ou bacalhau.

A virgindade e a seriedade femininas, mais do que apenas apreciadas, eram requisitos fundamentais para o casamento, podendo a mulher ficar solteira e para tia, caso tivesse sido enganada por aquele malandro que depois lhe virou as costas. Por isso, as famílias rodeavam as filhas casadoiras de cuidados, evitando, por exemplo, que namorassem sem ser na presença de um familiar ou pau-de-cabeleira.

Nas classes superiores, a dona de casa urbana geralmente não trabalhava, tinha uma, duas e até por vezes três criadas para a ajudar na confeção dos alimentos, limpeza de casa e das roupas, e criar os filhos.

Era um tempo em que o amola-tesouras – muitos deles de origem galega, sobreviventes e refugiados da guerra civil – ia de terra em terra, montado numa bicicleta ferrugenta, utilizando uma gaita que fazia um som muito característico que o identificava e chamava as pessoas. O amola-tesouras arranjava o que a pobre gente necessitava para dar ainda vida a objetos gastos pelo uso, facas e tesouras rombas, guarda-chuvas carecendo de varetas, tachos e panelas com buracos, alguidares e cântaros partidos. Para isso, usava uma roda esmeril que suficientemente rija, amolava o aço e fazia soltar pequenas faíscas do rebolo. A retribuição era por vezes em géneros alimentares, carne curada no fumo ou no sal, azeite, batatas ou vinho, mas do barato. Raramente pediam dormida. Preso ao guiador, estava um corno com água para molhar as facas e as tesouras, mas também para dar sorte. Por mistério ou pura coincidência, nesse dia ou no dia seguinte chovia.

Quando se ouvia aquele som, dizia-se que era sinal de chuva, talvez porque estes homens consertavam as varetas do chapéu-de-chuva. Atrás da bicicleta, uma caixa de madeira com ferramentas, e um chapéu-de-chuva quase sem pano lembravam que também sabiam consertar chapéus. Vai chover, anda p’raí o amola tsoras, trabalhador que a modernidade condenou à extinção e ao esquecimento, mas a recordação perdura, pelo menos aqui.

E as mulheres que lavavam roupa para fora? Chegadas ao rio, mergulhavam as peças de roupa na água para as ensaboarem com sabão azul, baterem e enxaguarem, preparando a barrela. Enquanto lavavam, punham a conversa em dia e cantavam, por vezes ao desafio. A roupa após corar estendida junto ao rio, secava ao arlivre se o tempo o permitia, ou nas casas das lavadeiras. Faziam-se trouxas enormes, colocando as peças sobre enormes lençóis brancos, atavam-nos em cima, colocavam-nas à cabeça e assim as transportavam até às freguesas sendo raro faltar uma peça no rol. Em Alcobaça havia lavadeiras em Chiqueda, mas em casa do Dr. Amílcar Magalhães, que tinha família nos Montes, a roupa ia semanalmente para as lavadeiras de Alpedriz, que trabalhavam no respetivo rio onde atualmente há uma apelidada praia fluvial, e tinham os respetivos lugares definidos para não haver confusões. As lavadeiras do norte do concelho eram em geral de Picamilho e iam a a casa das freguesas buscar a roupa, como recorda, não obstante os 90 anos.

Uma alteração das condições de vida será patente a partir de meados da década de 1950. Até lá, viam-se pessoas descalças mesmo na cidade – o governo publicou leis a impedir a situação, para não dar uma má imagem do país, tendo em conta o afluxo de turistas. Por essa altura começaram a aparecer os frigoríficos, os fogões a gás e a eletricidade – até aí eram frequentes os fogões a lenha, mesmo nas cidades. A eletricidade começou a entrar no dia-a-dia dos cidadãos assim como o gás engarrafado, o que permitiu os banhos quentes com comodidade – até aí aquecia-se um panelão de água no fogão e tomava-se banho numa bacia de zinco, uma vez por semana.

José Pereira Machado, natural dos Montes e residente em Coz onde nos últimos tempos teve a chave da Igreja, lembrava do tempo em que houve caldeireiros, profissão hoje extinta, mas rentável numa altura em que o plástico não tinha vindo substituir o cobre e o latão. E acrescentava que os que ainda por aí existem, trabalham em miniaturas, bacias e tachos de cobre de carácter mais ou menos artesanal e para turistas. Podiam vender junto ao Mosteiro de Coz e faziam mais algum dinheiro. Mas são muito Finos.

Em 1958 apareceu a televisão. Aproveitando as facilidades concedidas pel’O Século, que nos jardins da Palhavã, organizava a Feira Popular, a RTP realizou aí, as primeiras emissões experimentais, corria o mês de setembro de 1957 e a inauguração programou-se para a noite de 4. A televisão não se apresentava como assunto pacífico.

Em Alcobaça, receava-se que se a televisão põe o mundo perante graves e delicadíssimos problemas de ordem moral, certo como é que pelo desvio da sua finalidade útil, aquilo que é instrumento de maior bem pode tornar-se instrumento de mal maior.

N’O Alcoa, um pai de família, queixou-se que desde o dia em que a televisão entrou em casa, fecharam-se os livros. Depois de estar umas horas a ver televisão durante a noite, vou para a cama com a sensação de que perdi a noite totalmente.

Uma mãe de família, perguntava se não haveria maneira de apresentar cowboys com bons modos, sem que deixassem de ser cowboys.

Interessante é o depoimento de um professor cujo nome o articulista não registou, a TV intrometeu-se na vida das crianças, distraindo-as nos seus estudos e nas suas leituras. Estropia-lhes a vista e torna-as preguiçosas.

E o alcobacense, que entendia que seria um desastre que a televisão continuasse em progressos, pois já agora minha mulher me deixa, não poucas noites sem a cores ou um sistema desses que dizem que vão criar e, segundo o qual, pagando certa quantia, se pode escolher o programa que mais agrade.

O nível geral de instrução aumentou e os analfabetos passaram a constituir uma minoria. No campo, a situação também se alterou, fruto da Guerra em África ou da emigração, decididamente para França, e, mais secundariamente, para a Alemanha e o Luxemburgo. Ao contrário da antiga emigração para África ou para o Brasil, em que o emigrante, na maior parte dos casos, lá ficava, ou só voltava após muitos anos e com património, quem emigrava para França voltava em vacances à terra, se possível de automóvel próprio ou alugado, transmitindo no café ou na associação as realidades que aí havia vivenciado.

Para trás ficavam os campos cada vez menos cultos e quem precisava de mão de obra tinha que a pagar ou começar a mecanizar a terra. Sendo a emigração mais de homens que de mulheres, de mais de jovens que de idosos, as mulheres passaram a constituir, a par dos idosos, a maior parte da população na província. Os emigrantes acabaram por moldar a paisagem, pois muitas das casas que construíram eram inspiradas nos países para onde tinham estado.

As relações entre gerações perderam um pouco do que as caracterizava ancestralmente, um filho não se atrevia a contestar o pai, e a correção física aos filhos, e até, por vezes, à mulher, era cada vez menos tolerada, assumindo-se como violência doméstica. Para além de tudo, é importante nunca esquecer que se vivia numa sociedade em que não se podia exprimir livremente já que o regime conseguia, através da Igreja, do ensino, da polícia política, da censura ou da propaganda, manter uma paz familiar aparente.

 

Sem comentários: