(Agosto em Alcobaça)
UMA “BOA” FEIRA
Fleming de Oliveira
Os
interesses dos alcobacenses não se reduziam aos assuntos da (grande ou pequena)
política.
As feiras, o mercado, as romarias, as
touradas, os circos, os concertos no coreto e outros divertimentos, ocupavam um
espaço importante nos parâmetros das suas disponibilidades e interesses.
A Feira de S. Bernardo,
realiza-se anualmente umas vezes com
mais animação ou interesse que outras.
O certo é que, não obstante a
descaracterização que apresenta, nem por isso deixa de estar enraizada nos hábitos
da Terra.
As festas e romarias são
uma componente importante da cultura popular portuguesa. Numerosas e variadas,
acontecem um pouco por todo o país e fazem parte das tradições e memórias de um
povo que pretende preservar e manter o que lhe confere identidade.
A Feira teve sempre uma componente muito lúdico-profana. Quando
no Rocio, era o ponto de encontro dos
alcobacenses com os de fora, a ocasião para mercadejar, beber uns copos, foliar, pôr a conversa em dia, porque a vida não é só
canseiras. Entre o religioso e o profano, havia
convívio e diversão, comprava-se toda a gama de artefactos, ou, simplesmente,
cumpria- se a tradição de ver e rever amigos e conhecidos e, quem sabe,
arranjar namoro no adro da igreja.
No
tempo da I República e dos primórdios do Estado Novo, da parte da tarde as
tendas pejavam em longas fileiras no Rocio onde se vendia de tudo, fazendas, louças (onde sobressaiam as andorinhas em barro, as tigelas ou as
assadeiras), algodão doce, ouro (ouro
sim, ouro de lei), ou prata contrastada (o metal tem valor hoje, amanhã e
sempre), no meio de algazarra, de
realejos ou outros instrumentos menos afinados, interpretados por cegos (que afinal talvez não o fossem). Havia a
tômbola muito procurada pelas mulheres, na esperança de poder sair uma peça
que, mesmo de refugo, iria fazer jeito na decoração da cozinha ou no serviço da
casa.
O povo gostava de passear e ver.
Famílias inteiras, com ar grave e pasmado,
paravam diante dos saltimbancos a quem davam uns cobres, ajustavam o preço de
um alguidar ou de uma peça de fazenda, tiravam medidas para o rapaz
fazer um par de botas, iam ao mercado do gado, da fruta, da hortaliça ou do
peixe da Nazaré. Tudo era bom de apreciar. As ciganas liam a buena dicha e as
vendedeiras de limonada faziam negócio, pois
Alcobaça em agosto, com pó e moscas, tinha sede que também se matava na
tenda da ginjinha, por vezes acompanhada de uma cheirosa (e muito calórica)
fartura.
As mulheres apreciavam as pesadas mantas listadas de Minde, a lã azul fiada para saias, a
loiça da Olaria, os vidrados
amarelos ou verdes das Caldas da
Rainha.
Os homens (de
pesado cajado), frequentavam o gado, faziam negócios com
dinheiro vivo (muito vivo), entre dois copos de branco ou tinto,
acompanhados de queijo, broa, tremoços ou pevides.
Esta era sim, uma
boa Feira de S. Bernardo, com a PSP e a GNR atentas à malandragem e às brigas
do mau vinho. Os carteiristas estavam normalmente bem referenciados. A
Polícia detinha-os preventivamente pelo tempo das festas, mesmo que nada
tivessem ainda feito de mal.
Durante a Feira havia circo. Em primeiro
lugar e no dia anterior apareciam cartazes ilustrados a anunciar animais
ferozes (leões ou tigres), palhaços e trapezistas, homens e mulheres gordos,
tatuados e anões. Depois no próprio dia desfilavam carruagens, puxadas por
camionetas ou animais, com música, tambor ou corneta. Era ainda o tempo do
grande espetáculo, o maior espetáculo do mundo, exibido em tendas redondas de
lona onde entrava a chuva e o vento, com uma arena colorida, luzes feéricas,
maillots lustrosos das mulheres semidespidas, corpos atléticos dos homens
e os trapezistas.
Senhoras e Senhores, Meninas e Meninos,
benvindos ao circo!!! Senhoras e Crianças, não pagam. Senhoras e Crianças, não
pagam!!!
O fascínio do circo tem o condão de persistir
na memória de crianças, jovens e adultos. O homem das argolas era um velhote,
de cabelos brancos e estatura meã. Os músculos como que lhe saltavam da roupa,
mas não deixava de fazer um cristo, com uns braços trémulos. E o ilusionista e
o malabarista? Esperado, esperado, era o momento dos palhaços, o rico e o pobre. O rico, servia para enganar o
pobre, que superava pela esperteza os ardis que o cercavam. A assistência
projetava-se no azougado pobretanas e ria.
A música evolava da concertina e de um xilofone
de garrafas coloridas e penduradas com líquido.
Ninguém se queixava do desconforto das
bancadas de madeira.
E o teatro de
fantoches/robertos?
O teatro de robertos era um dos principais
divertimentos das feiras e das praias. Trata-se de um espetáculo de fácil
compreensão, com uma manipulação rápida e cheia de acção, cuja característica é
o uso pelo fantocheiro de uma palheta na boca que lhe permite ampliar e
distorcer a voz, produzindo efeitos algo ridículos.
Abordam rábulas tradicionais, que reproduzem a animação de rua, algum
acontecimento e centram a atenção com o alarido e picardias dos bonecos..
Adultos e criançada achavam-lhe graça, pagavam cinco tostões para ver. O tema mais
corrente era o de um homem mal comportado, um touro para assustar e uma mulher
que, zangada com o comportamento do marido, lhe pregava umas valentes pauladas.
O vendedor da banha
da cobra não é uma personagem de ficção, existe, sempre existiu. Todos sabem que a banha da cobra não serve para nada,
mas a convicção que o vendedor transmite através duma oratória estudada e
estruturada, é capaz de convencer sobre as capacidades do milagroso medicamento. Impigens, mau
olhado, torcicolos, urticária, febre dos fenos, dentes, nervos, escleroses,
artroses, entorses, diarreias, sarampo, escarlatina, espinhela caída, dores das
cruzes, doenças do miolo, verrugas, cravos, etc., são alguns males que a banha
da cobra afasta a quem a comprar.
Não
custa nem 20, nem 15, nem dez. Custa apenas cinco, e quem levar dois tubos leva
um totalmente de graça. Um para aquele senhor, outro para aquela menina, e
enquanto eu vou lá à frente receber o dinheiro, a minha mulher vai lá atrás
distribuir o pacote. Não custa dez
nem quinze, custa apenas vinte e cinco tostões, e quem levar dois tubos leva um
de graça.
Se é certo que a banha da cobra não
cura, também não consta que tenha
trazido mal ao mundo.
Era tentador! Não havia mal ou maleita onde o
seu resultado não fosse prodigioso. E para que não houvesse dúvidas, os
argumentos eram um primor de explicação: Se
bocência tem uma dor de dentes, fique a saber que não
é o dente que lhe dói. O dente é corno, o corno é osso e o osso não dói, o que
dói é o nervo.
O homem era vigarista ou apenas um desenrascado a fazer pela vida?
A palavra Desenrascanço que
caracteriza o Português, é próxima de Xico Esperto. Saudade e desenrascanço
são palavras/expressões que, de certo modo, definem um povo que vive saudoso do
passado, desenrascando o futuro. Desenrascanço é difícil de traduzir para outra
língua, talvez por ter um significado menos romântico que Saudade. Diz a lenda que durante as viagens
marítimas de quinhentos e seiscentos, navios de outros países por vezes levavam
um português, com o propósito de tomar conta da embarcação em momentos de
crise. No meio de uma tempestade, o português ficava com o controlo do navio, e
daria uso ao seu dom de desenrascar para o livrar da tormenta.
No Poço
da Morte pontificavam os motoqueiros pai, mãe e filho, já
que no cartaz aparecia a imagem dos três. Circulavam numa
estrutura cilíndrica, a girar à volta até ficarem paralelos ao chão. Era
um trio de fascinantes aventureiros que, com os palhaços, ilusionistas e
acrobatas, preenchia o imaginário de quem ia à Feira. O público ficava na parte superior, tendo apenas uns cabos de aço como
limite, para que numa manobra imprevista não levasse com eles. Desafiavam a morte, cruzando-se com arrojo, audácia e emoção a alta
velocidade de olhos vendados pela bandeira portuguesa, que depois era
desfraldada triunfantemente, para gáudio da assistência e vibrantes aplausos.
Emocionantes, emocionantes, eram as voltas de moto, com o artista (o filho) sentado de lado virado para o
fundo do poço, sem mãos no volante e de braços cruzados. Suscitavam
emoções fortes espalhando entre os espectadores um clima de euforia e
ansiedade, apimentado pelo ruído ensurdecedor das motos sem escape e o cheiro
de gasolina mal queimada.
Sem comentários:
Enviar um comentário