domingo, 24 de dezembro de 2023

A FEIRA DE S. BERNARDO (Agosto em Alcobaça) UMA “BOA” FEIRA

 

 

 A FEIRA DE S. BERNARDO  

(Agosto em Alcobaça)  

UMA “BOA” FEIRA


Fleming de Oliveira

 

 

 

Os interesses dos alcobacenses não se reduziam aos assuntos da (grande ou pequena) política.

  As feiras, o mercado, as romarias, as touradas, os circos, os concertos no coreto e outros divertimentos, ocupavam um espaço importante nos parâmetros das suas disponibilidades e interesses.

  A Feira de S. Bernardo, realiza-se anualmente umas vezes com mais animação ou interesse que outras. O certo é que, não obstante a descaracterização que apresenta, nem por isso deixa de estar enraizada nos hábitos da Terra.

  As festas e romarias são uma componente importante da cultura popular portuguesa. Numerosas e variadas, acontecem um pouco por todo o país e fazem parte das tradições e memórias de um povo que pretende preservar e manter o que lhe confere identidade. 

  A Feira teve sempre uma componente muito lúdico-profana. Quando no Rocio, era o ponto de encontro dos alcobacenses com os de fora, a ocasião para mercadejar, beber uns copos, foliar, pôr a conversa em dia, porque a vida não é só canseiras. Entre o religioso e o profano, havia convívio e diversão, comprava-se toda a gama de artefactos, ou, simplesmente, cumpria- se a tradição de ver e rever amigos e conhecidos e, quem sabe, arranjar namoro no adro da igreja.

  No tempo da I República e dos primórdios do Estado Novo, da parte da tarde as tendas pejavam em longas fileiras no Rocio onde se vendia de tudo, fazendas, louças (onde sobressaiam as andorinhas em barro, as tigelas ou as assadeiras), algodão doce, ouro (ouro sim, ouro de lei), ou prata contrastada (o metal tem valor hoje, amanhã e sempre), no meio de algazarra, de realejos ou outros instrumentos menos afinados, interpretados por cegos (que afinal talvez não o fossem). Havia a tômbola muito procurada pelas mulheres, na esperança de poder sair uma peça que, mesmo de refugo, iria fazer jeito na decoração da cozinha ou no serviço da casa.

  O povo gostava de passear e ver. 

  Famílias inteiras, com ar grave e pasmado, paravam diante dos saltimbancos a quem davam uns cobres, ajustavam o preço de um alguidar ou de uma peça de fazenda, tiravam medidas para o rapaz fazer um par de botas, iam ao mercado do gado, da fruta, da hortaliça ou do peixe da Nazaré. Tudo era bom de apreciar. As ciganas liam a buena dicha e as vendedeiras de limonada faziam negócio, pois Alcobaça em agosto, com pó e moscas, tinha sede que também se matava na tenda da ginjinha, por vezes acompanhada de uma cheirosa (e muito calórica) fartura.

  As mulheres apreciavam as pesadas mantas listadas de Minde, a lã azul fiada para saias, a loiça da Olaria, os vidrados amarelos ou verdes das Caldas da Rainha.

  Os homens (de pesado cajado), frequentavam o gado, faziam negócios com dinheiro vivo (muito vivo), entre dois copos de branco ou tinto, acompanhados de queijo, broa, tremoços ou pevides.

 

  Esta era sim, uma boa Feira de S. Bernardo, com a PSP e a GNR atentas à malandragem e às brigas do mau vinho. Os carteiristas estavam normalmente bem referenciados. A Polícia detinha-os preventivamente pelo tempo das festas, mesmo que nada tivessem ainda feito de mal.

  Durante a Feira havia circo. Em primeiro lugar e no dia anterior apareciam cartazes ilustrados a anunciar animais ferozes (leões ou tigres), palhaços e trapezistas, homens e mulheres gordos, tatuados e anões. Depois no próprio dia desfilavam carruagens, puxadas por camionetas ou animais, com música, tambor ou corneta. Era ainda o tempo do grande espetáculo, o maior espetáculo do mundo, exibido em tendas redondas de lona onde entrava a chuva e o vento, com uma arena colorida, luzes feéricas, maillots lustrosos das mulheres semidespidas, corpos atléticos dos homens e  os trapezistas.

  Senhoras e Senhores, Meninas e Meninos, benvindos ao circo!!! Senhoras e Crianças, não pagam. Senhoras e Crianças, não pagam!!!

  O fascínio do circo tem o condão de persistir na memória de crianças, jovens e adultos. O homem das argolas era um velhote, de cabelos brancos e estatura meã. Os músculos como que lhe saltavam da roupa, mas não deixava de fazer um cristo, com uns braços trémulos. E o ilusionista e o malabarista? Esperado, esperado, era o momento dos palhaços, o  rico e o pobre. O rico, servia para enganar o pobre, que superava pela esperteza os ardis que o cercavam. A assistência projetava-se no azougado pobretanas e ria.

  A música evolava da concertina e de um xilofone de garrafas coloridas e penduradas com líquido.

  Ninguém se queixava do desconforto das bancadas de madeira.

 

  E o teatro de fantoches/robertos?

  O teatro de robertos era um dos principais divertimentos das feiras e das praias. Trata-se de um espetáculo de fácil compreensão, com uma manipulação rápida e cheia de acção, cuja característica é o uso pelo fantocheiro de uma palheta na boca que lhe permite ampliar e distorcer a voz, produzindo efeitos algo ridículos. Abordam rábulas tradicionais, que reproduzem a animação de rua, algum acontecimento e centram a atenção com o alarido e picardias dos bonecos.. Adultos e criançada achavam-lhe graça, pagavam cinco tostões para ver. O tema mais corrente era o de um homem mal comportado, um touro para assustar e uma mulher que, zangada com o comportamento do marido, lhe pregava umas valentes pauladas.

 

   O vendedor da banha da cobra não é uma personagem de ficção, existe, sempre existiu. Todos sabem que a banha da cobra não serve para nada, mas a convicção que o vendedor transmite através duma oratória estudada e estruturada, é capaz de convencer sobre as capacidades  do milagroso medicamento. Impigens, mau olhado, torcicolos, urticária, febre dos fenos, dentes, nervos, escleroses, artroses, entorses, diarreias, sarampo, escarlatina, espinhela caída, dores das cruzes, doenças do miolo, verrugas, cravos, etc., são alguns males que a banha da cobra afasta a quem a  comprar.

  Não custa nem 20, nem 15, nem dez. Custa apenas cinco, e quem levar dois tubos leva um totalmente de graça. Um para aquele senhor, outro para aquela menina, e enquanto eu vou lá à frente receber o dinheiro, a minha mulher vai lá atrás distribuir o pacote. Não custa dez nem quinze, custa apenas vinte e cinco tostões, e quem levar dois tubos leva um de graça.

  Se é certo que a banha da cobra não cura, também não consta que  tenha trazido mal ao mundo.

  Era tentador! Não havia mal ou maleita onde o seu resultado não fosse prodigioso. E para que não houvesse dúvidas, os argumentos eram um primor de explicação: Se bocência tem uma dor de dentes, fique a saber que não é o dente que lhe dói. O dente é corno, o corno é osso e o osso não dói, o que dói é o nervo.

  O homem era vigarista ou apenas um desenrascado a fazer pela vida?

  A palavra Desenrascanço que caracteriza o Português, é próxima de Xico Esperto. Saudade e desenrascanço são palavras/expressões que, de certo modo, definem um povo que vive saudoso do passado, desenrascando o futuro. Desenrascanço é difícil de traduzir para outra língua, talvez por ter um significado menos romântico que  Saudade. Diz a lenda que durante as viagens marítimas de quinhentos e seiscentos, navios de outros países por vezes levavam um português, com o propósito de tomar conta da embarcação em momentos de crise. No meio de uma tempestade, o português ficava com o controlo do navio, e daria uso ao seu dom de desenrascar para o livrar da tormenta.

 

  No Poço da Morte pontificavam os motoqueiros pai, mãe e filho, já que no cartaz aparecia a imagem dos três. Circulavam numa estrutura cilíndrica, a girar à volta até ficarem paralelos ao chão. Era um trio de fascinantes aventureiros que, com os palhaços, ilusionistas e acrobatas, preenchia o imaginário de quem ia à Feira. O público ficava na parte superior, tendo apenas uns cabos de aço como limite, para que numa manobra imprevista não levasse com eles. Desafiavam a morte, cruzando-se com arrojo, audácia e emoção a alta velocidade de olhos vendados pela bandeira portuguesa, que depois era desfraldada triunfantemente, para gáudio da assistência e vibrantes aplausos. Emocionantes, emocionantes, eram as voltas de moto, com o artista (o filho) sentado de lado virado para o fundo do poço, sem mãos no volante e de braços cruzados. Suscitavam emoções fortes espalhando entre os espectadores um clima de euforia e ansiedade, apimentado pelo ruído ensurdecedor das motos sem escape e o cheiro de gasolina mal queimada.

  Mais uma voltinha, mais uma viagem.

 

Sem comentários: