O FIM DA INQUISIÇÃO EM
PORTUGAL
FLeming
de OLiveira
O fim
jurídico e efetivo da Inquisição, esse horrendum tribunale, esteve
marcado para a sessão da Assembleia Constituinte de 8 de fevereiro de 1821,
embora aquela fora sendo extinta gradualmente ao longo do século XVIII. A
medida foi bem aceite, e assumiu apenas conteúdo simbólico, político ou de satisfação
moral, no espírito do liberalismo nascente. Na verdade, estava inativa e sem
presos à ordem, nos inícios do século XIX, longe do tribunal repressor que aos
desviantes da fé católica controlava com mãos de ferro, sobrevivia à sombra do
passado de poder. A imagem de uma Inquisição agonizante era dominante, sem
atividade repressiva de vulto, o quotidiano das três Mesas sobreviventes quase
se confinava à colocação de luminárias por ocasião dos nascimentos, casamentos
e mortes de membros da Casa Real, ou de acontecimentos político-militares
relevantes. Portanto, reduzido a um tribunal figurativo que fora transformado
em uma instituição de atividades alheias à sua criação, aguardava com paciente
resignação o ato derradeiro.
A 24
de março de 1821, na oitava sessão da Assembleia Constituinte, o autor do
projeto de lei, o Deputado pela Estremadura Francisco Simões Margiochi, fez a história
dos crimes e horrores da Inquisição e disse: Senhor Presidente, como eu fui
autor do Projeto sobre a abolição da Inquisição, sou justo, e a mim próprio me
sentenceio: devo eu ser o primeiro que arda nos fogos deste Tribunal. É
realmente um tormento, e gravíssimo, o referir tantos horrores; e bem que os
sábios Deputados deste Augusto Congresso conheçam quais são os motivos por que deve
ser abolido este Tribunal, contudo é preciso que a Nação veja hoje os cárceres
da Inquisição, que veja seus processos, que sinta suas torturas, e que ardam
diante de si os seus cadafalsos. Darei pois uma notícia suficiente deste
terrível Tribunal, extraída das grandes páginas de sua medonha história, é esta
Relação que nos deve fazer estremecer, e não os preceitos do Divino Legislador da
Religião Cristã. Horrorizemo-nos, pois, mas seja pela última vez.
Seguiram-se
intervenções de repúdio a esse flagelo da humanidade, instituto bárbaro e
incompatível com os princípios adotados nas Bases da Constituição.
Antes
da aprovação, por unanimidade, do projeto de lei, sem oposição e com a
presença de um membro do Conselho Geral do Santo Ofício entre os deputados, o
Deputado Serpa Machado alertou para o perigo de surgirem novas Inquisições:
Lembro
mais a este Congresso que já que a Inquisição entrou em Portugalcom o pretexto
da Religião, e da fé; que jamais se consinta outro igual instituto, por mais
plausível que seja o pretexto que o encubra: isto é, que se não substitua a
Inquisição Religiosa por Inquisição Política.
A
título incidental, recorde-se a questão suscitada na Assembleia pelo Deputado baiano
Cypriano Barata, quando defendeu que a palavra português deveria ser substituída
por indivíduo na Constituição.
(...)para
o Brasil é melhor dividir os cidadãos em ativos, e passivos, segundo o
abade Seyés, e outros publicistas, porque isto é mais a bem dos negócios brasileiros.
Os mulatos, sr. presidente, cabras, e crioulos; os índios, mamelucos, e
mestiços, são gentes todas nossas, são portugueses, e cidadãos muito
honrados, e valorosos: eles em todo o tempo provarão quanto peso tem aquele
país, fazendo a defesa dele, e concorrendo para seu engrandecimento, já
na agricultura, já no comércio, e artes. Nós temos visto grandes heróis em todas
aquelas raças (…).
Barata
justificava que na França do século XVIII o termo cidadão era usado para
indicar cada habitante, de um Estado, Nação ou Cidade.
Após a
extinção da Inquisição, como registou A. Saraiva, o único vestígio de duzentos
e trinta e oito anos dessa obsessão são os infindáveis arquivos inquisitoriais
– mais de trinta e cinco mil constam dos registos. Com a extinção, passaram
para os bispos alguns poderes, o encaminhamento para Biblioteca Pública de
Lisboa dos seus documentos, transferência dos bens imóveis para a Fazenda Nacional.
Os funcionários mantiveram metade do vencimento.
O
Santo Ofício foi das instituições com maior impacto no quadro de muitos séculos
da sociedade portuguesa, cuja atuação marcou, de forma indelével, o espaço social
e cultural do Antigo Regime ao exercer uma censura moral, política e religiosa,
de que ainda permanecem marcas na memória coletiva. A memória projetada pela
Inquisição foi, porém, quase concomitantemente objeto de contra memória produzida
pelas vítimas e pela rede internacional de solidariedade que envolveunuma
primeira fase as comunidades hebraicas.
Nos
200 anos de extinção jurídica da Inquisição cumpre fazer este registo.
A Igreja Católica Romana reconheceu que prevaricou e muito, quando João Paulo II em 2004 pediu perdão pelos crimes cometidos, pelos erros cometidos a serviço da verdade por meio do uso de métodos que não têm relação com a palavra do Senhor. O Papa disse que o pedido de perdão valia tanto para os dramas relacionados com a Inquisição, quanto para as feridas deixadas na memória depois daquilo.
A
Igreja Católica reclamava-se detentora da verdade em quase todos os assuntos, inclusive
sobre a natureza. Concentrava em si uma autoridade a que todos se deviam
submeter, sob ameaças de terríveis punições, o que desencadeou a Reforma para
protestar e afrontar o seu poder acerca do que era certo e errado, argumentando
que os princípios do cristianismo deveriam ser dados pelas Cinco Sola e
não pela imposição de uma Igreja que se auto proclamava detentora da Verdade.
Na
Idade Moderna, muitos cientistas foram perseguidos, censurados e condenados por
defenderem ideias contrárias à doutrina cristã oficial. O caso mais conhecido foi
protagonizado por Galileu Galilei ao afirmar que a Terra girava ao redor do
Sol. Teve que censurar a sua afirmativa para não perder a vida. A mesma sorte não
teve Giordano Bruno condenado pela Inquisição Romana à morte na fogueira,
As
proposições teológicas que serviram como pilares da Reforma Protestante são as chamadas
Cinco Solas - frases latinas que surgiram para enfatizar a diferença entre a
teologia reformada protestante e a teologia católica romana. Sola, vem
do latim e significa somente ou apenas, na língua portuguesa. E as cinco solas
são: Sola Fide, Sola Scriptura, Solus Christus, Sola Gratia e Soli
Deo Gloria ao defender que as estrelas eram sóis distantes cercados por
planetas, a possibilidade de estes criarem vida e que o universo sendo infinito
não tem centro. Assim suscitava-se a magna questão, o Messias Redentor já lá tinha
ido ou não? Bruno foi julgado também por heresia, ao negar a doutrina católica
em pontos essenciais, como a Condenação Eterna, a Trindade, a Divindade de
Cristo, a Virgindade de Maria e a Transubstanciação.
Entendido
como construção social, política, económica e simbólica, o Santo Ofício
afigura-se como tema particularmente fascinante da História Pátria. Se hoje existem
vozes que não permitem dissonâncias e procuram silenciá-las de formas vis e
brutais, cabe repensar e trazer do passado os momentos em que a barbárie
triunfou, travestida de cultura. Destas reflexões há possibilidade de pensar o
futuro e, principalmente, retirar dos escombros as que tentam manter tempos
sombrios. Nos dias que fluem, ocorrem execuções frias, conflitos violentos,
pelo que é preciso rejeitar veementemente a cultura do silenciamento.
Justamente por isso as linhas anteriores foram pensadas e escritas. Se ela foi
repetida há menos de 100 anos – o genocídio dos judeus pelos nazis – é dever
não sepultar as perseguições sofridas com a satisfação a mudar os personagens.
Vítimas, em qualquer momento da história, sofrem, são desumanizadas, invadidas
e destruídas. É aí que se deve potencializar a ação humana como forma de romper
a violência. Pode escrever-se um futuro com muitas vozes. Mas pungente será se
um dia formos lembrados pelo quanto nos preocupamos em provocar o silêncio.
A
Inquisição em Portugal é um desses objetos salientes que para reivindicação do
bom nome português deve imprescritivelmente ser tratado com inteireza.
Não
somos nós, passados 200 anos sobre a extinção, os primeiros a irrogar aos
inquisidores as barbaridades contra as quais a natureza se revolta. Foram jáalguns
homens desses tempos, mesmo ligados à Religião, com a descrição das ações
criminosas.
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