segunda-feira, 3 de outubro de 2011

AS (NOVAS) LEIS REVOLUCIONÁRIAS. A JUSTIÇA EM NOME DO POVO (1974-1975)




(II)


-Entre marido e mulher…
-Plenário de Advogados diz, NÃO!.
-O Juiz/Poeta Madeira Bárbara, colocado em Alcobaça.
-Os tribunais de Alcobaça, Tomar e Boa-Hora.
-José Diogo, mata um latifundiário e tem o apoio da UDP no
Campo Pequeno.
-Sopapos e mimos entre um PPD e um CDS de Alcobaça.
-Tribunais Populares Tribunais Cívicos e um Auto de Fé.
-A Concordata, o aborto e o feminismo.
-A Liga Republicana das Mulheres Portuguesas.
-Palha da Silveira (Desembargador jubilado), um juiz
polémico.



(II)

Recordemos agora uma notificação expedida na sequência de um despacho de arquivamento de um processo-crime na fase de inquérito no MP.

Alcobaça, 22 de Outubro de 1974

Exmº Sr.
Comandante da GNR de
Alcobaça

Rogo a V. Exª que seja notificado o arguido ( …), residente em (…), de que por despacho de 15.10.1974, do Digno Agente do MP, e nos termos do Artigo 277º, nº 1 do CPP, foi ordenado o arquivamento dos autos, dado o crime ser de natureza cível.
(…).

No dia 6 de Julho de 1979, pelas 22 horas, iniciou-se na Voz do Operário, em Lisboa, a primeira sessão do Tribunal Cívico sobre a Reforma Agrária.
A comissão promotora deste singular tribunal cívico, era integrada por nomes como Rui Luís Gomes, Paulo Quintela, Teixeira Ribeiro, Bernardo Santareno, Ary dos Santos, Carlos Paredes, Carlos do Carmo, Fernando Lopes Graça, João de Freitas Branco, Luís Albuquerque, Rui Polónio de Sampaio, Helena Cidade Moura, Alexandre Cabral, Urbano Tavares Rodrigues, Óscar Lopes, Avelãs Nunes, Mário Murteira, Luís Francisco Rebelo, César Oliveira, Miriam Halpern Pereira, José Gomes Ferreira, António Hespanha, Gomes Canotilho, Boaventura Sousa Santos, Jorge Leite e Xencora Camotim. O processo alegadamente obedeceria aos rituais próprios de um julgamento, sendo todavia o tribunal presidido pelo juiz desembargador Aníbal de Castro e contava, na qualidade de juízes, nomes como o historiador Armando de Castro, o escritor Manuel da Fonseca ou os professores universitários Maria Lúcia Lepecki, Orlando de Carvalho e Vital Moreira. Perante uma assistência variada, que integrava trabalhadores rurais alentejanos e convidados estrangeiros, o advogado comunista Fernando Luso Soares desempenhou, com facilidade, o papel de acusador público, sendo ouvidos, como testemunhas, José Saramago, Lino de Carvalho ou Carlos Carvalhas, entre outros. Feitas as alegações da acusação, o acórdão decidiu condenar o latifúndio, reconhecer a legitimidade da reforma agrária e, enfim, condenar a ofensiva contra a reforma agrária. Tudo se passaria ali como se de um julgamento normal se tratasse, não fora a circunstância de só existir uma parte. O princípio do contraditório não teve lugar. No Tribunal Cívico sobre a Reforma Agrária, apenas existiu uma acusação e um acusador, não se prevendo que os réus (?) apresentassem defesa ou sequer comparecessem. Do extenso Rol de Testemunhas, donde constavam muitos funcionários do PC, nenhuma fora chamada para contestar a legitimidade da reforma agrária, criticar alguns excessos, abusos ou referir aspetos menos conseguidos, constrangedores, do processo de ocupações levado a cabo.
À distância de 30 anos, é-nos difícil ajuizar o motivo pelo qual se realizou esta encenação político-judiciária, o que levou pessoas, a oferecerem o prestígio de seus nomes, a um simulacro de processo judicial que não passava de uma manifestação puramente política. Se o desfecho era conhecido à partida, chamar tribunal não passava de uma figura de estilo, duvidosa quanto à forma, inútil quanto aos resultados e, acima de tudo, questionável quanto à ética dos procedimentos. Por esse tempo, outras organizações levaram a cabo iniciativas semelhantes, como o Tribunal Cívico Humberto Delgado, promovido pela Associação dos Ex-Presos Políticos Antifascistas. É certo também que existiram precedentes estrangeiros, com destaque para o Tribunal Russell, em Estocolmo, sobre a participação dos EUA no Vietname. O verdadeiro réu na Voz do Operário, condenado in absentia, era com efeito, o processo histórico, para recorrer à fraseologia marxista que esteve presente nas sessões e depoimentos. Se a incapacidade de reverter o Rumo da História, como diria Sartre, é sintoma de independência, poder-se-á dizer que o Tribunal da Voz do Operário, pese ter ouvido apenas uma das partes, sem se preocupar em assegurar o contraditório, foi mesmo assim, uma instância independente. De uma independência que resulta tão-só da impotência dos julgadores em alterarem a Marcha da História.

Tanto os Dr. Manuel Almeida, como o Dr. Amílcar Magalhães eram advogados muito respeitados e conceituados em Alcobaça, quando se dá o 25 de Abril. Além destes, também exercia o Dr. José Bento da Silva, e residualmente o Dr. Amílcar Ramos Ferreira, que sofria de alguns problemas…. Tinham acabado de chegar à comarca e começado a exercer advocacia, Virgílio Ribeiro e Pessanha Gonçalves. Fleming de Oliveira, veio viver para Alcobaça, a 20 de Abril de 1974, acabada a sua comissão militar na Guiné e foi trabalhar com o Dr. Amílcar Magalhães.
O Dr. Manuel de Almeida, ainda exerceu durante alguns anos, recusando-se a seguir alguns novos conceitos e métodos da profissão. Era vulgar vê-lo, ao fim da tarde, à porta do escritório na Praça 25 de Abril, conversando afavelmente com quem passava. Não era frequentador de cafés ou restaurantes e nunca quis ter automóvel ou mesmo carta de condução. Contava aos colegas mais novos, alguns dos seus casos, sempre muito complicados e o daquele advogado de Leiria, licenciado no pós-25 de Abril, que comentava a propósito de um inventário, que o de cujus, isto é, o falecido e inventariado, havia deixado cinco de cujinhos. Ele queria dizer, na sua ignorância, que o morto deixou cinco filhos vivos, menores.
O Dr. Amílcar Magalhães, sogro de Fleming de Oliveira, gostava de salientar que jamais aceitou uma causa em que tivesse de mentir com inteiro conhecimento, pois o juiz e o colega da outra parte descobririam tudo pela sua cara e o cliente acabaria por perder a questão. Assim, na década de 1960 recusou tomar conta do caso de um indivíduo da Nazaré, ao descobrir que isso seria a ruína de uma viúva, com seis filhos. O caso referia-se a seiscentos contos. Numa carta ao cliente recusado, o Dr. Magalhães dizia que não fico com o seu caso, embora pudesse, sem dúvida alguma, ganhá-lo. Há coisas que são legalmente certas, mas moralmente erradas. Quando puder passe pelo meu escritório para lhe explicar melhor.
Assim, o Dr. Magalhães deu-lhe depois, um gratuito conselho, que desconhecemos se foi apreciado, um homem vivo, capaz e enérgico como o senhor, deveria tentar recuperar os seiscentos contos de outra maneira, sempre civilizada…
E o caso daquela mulher acusada de ter partido um braço a uma outra, que andava enrolada com o seu marido e se ria quando se cruzavam na rua. O Dr. Magalhães defendia a acusada e, embora fosse muito formal, fleumático e normalmente pouco dado a graçolas, em alegações orais finais não resistiu em salientar a importância da sincera confissão, pois ela diz sempre a verdade. Ela (a acusada) disse que ia dar uma valente sova aquela filha da mãe e deu mesmo!
Foi condenada, embora com a pena suspensa.

A notícia caiu como uma bomba nos meios forenses da região, mas nunca foi muito divulgada. Na Marinha Grande, fizera-se um Auto de Fé na praça pública, pois o Senhor Juiz, comunista assumido, frequentador da sede do PC, mandou queimar códigos fascistas. Julgamentos de acções de despejo, tinham a intervenção, nem sempre meramente consultiva, de comissões de moradores e de populares. Não que estes atos, fossem verdadeiramente originais, não que não tivessem sido perpetrados noutros tempos e paragens. Não que houvesse diferença especial entre os pressupostos da esquerda radical portuguesa, da direita nazi-fascista, excepto no facto daquela aplicar esses métodos com a hipocrisia da defesa das virtudes públicas e sociais.
Camilo José Cela, escreveu in Tomas Cerudellar Cavilador que um juiz deve ser sereno, velho e céptico, dado que a justiça não tem por missão consertar o mundo mas, sim, evitar que se deteriore mais, isso basta. Quando um juiz se sente depositário dos valores morais da sociedade, a justiça ressente-se e protesta.
Para além da queima dos códigos fascistas na Marinha Grande, noutros tempos e locais, estiveram incluídos na lista de material combustível, livros ou páginas de escritores como Ana Hatherly, José Régio, Urbano Tavares Rodrigues, Hermano Saraiva, Fernanda de Castro, Tomás Ribas, Vitorino Nemésio, Barrilaro Ruas, Esther de Lemos, Calvet de Magalhães e Maria de Lurdes Belchior. O que formalmente ainda distinguiu quaisquer um dos ditos autos-da-fé portugueses, dos levados a cabo pelos nazis, decorreu que estes, eram feitos, em geral, sem alarido público, mais ou menos às escondidas. Por sua vez, os nazis assumiam com orgulho e publicitavam os seus Autos-de-Fé.
Sottomayor Cardia, num discurso em Outubro de 1976, dois anos depois do despacho de Rui Grácio, Secretário de Estado da Educação, que determinava os Autos-de-Fé, acusou o ME de ter à maneira inquisitorial, ordenado a destruição de livros pelo fogo. Há no Ministério prova da realização de autos-de-fé por determinação oficial.
Na altura, os jornais na sua censura não ligaram a estas denúncias, porque alinhavam com o politicamente correto, que dominava os meios de comunicação social. Veja-se, por exemplo, Saramago, no Diário de Notícias, que acharia profilática a queima dessa literatura viciosa e, assim, exercia a censura camuflada, sob a capa das boas intenções.


(CONTINUA)


FLEMING DE OLIVEIRA

Sem comentários: