quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A CENSURA

-A Censura é antiga como o Mundo.
-O assassinato de Theo van Gogh.
-As caricaturas de Maomé.
-O Papa Bento XVI.
-O caso da Ópera de Berlim.
-Os nús femininos.
-Sir Salman Rushdie.
-O Grande Oriente Lusitano.
-A memória não pode ser alienada.
-Mário Soares e o exílio.
-O Cardeal-Rei e o Santo Ofício.
-Damião de Góis, Gil Vicente, Camões, Fernão Mendes Pinto, Pe. António
Vieira e outros, até perto de nós, sem esquecer Gonçalves Rapazote.
-Luandino Vieira e a extinção da Sociedade Portuguesa de Autores.


Fleming de Oliveira

(III)


E a Censura em Portugal?
É um assunto que se encontra sempre na ordem do dia e preocupa muita gente, por variadas razões.
Como era de ontem e hoje? É o que vamos abordar, embora de forma não exaustiva.
A memória não deve ser alienada. A censura em Portugal, ao longo do século vinte, foi muitas vezes aplicada com manha e rudeza, outras com habilidade e arrogância. Para a justificar, estiveram sempre disponíveis histórias, se necessário inverosímeis juízos e desajeitados conceitos. O vexame, o opróbio, a prisão, o exílio, se não a morte, atingiram muitos cidadãos e famílias, tendo havido casos que nem a verdade ou a justiça lhes foram alguma vez consentidas. Isto aliás, é tanto aplicável ao Regime, como a certos sectores da oposição, com algum destaque para o PC.
Os regimes autoritários, porvezes marcam mais ou tanto mais a história pelo que não deixam fazer, do que propriamente pelo que fazem. Portanto, é mais fácil relatar exemplos de repressão, que os bons, naturais e normais exemplos do exercício da Liberdade.
É necessário questionar a qualidade da democracia, porque não a deste Portugal do sec. XXI?, embora não haja opiniões muito coincidentes. Umas têm mais ou menos aceitação, concretamente quanto aos indicadores do desenvolvimento económico-social. Os tempos mudam, mas certos hábitos preversos não se esquecem. Diríamos que é comum, que em nome pessoal, por razões de vaidade ou mesmo incompetência, e não por razões de Estado, de Bem Comum, o Lápis Azul apareça de vez em quando. Tal como veremos à frente, a I República, pouco impediu, talvez nalguns casos mesmo fomentou, que a intolerância continuasse a dominar os cidadãos supersticiosos, iletrados, incultos ou apolíticos.

É interessante, na nossa opinião, começar por invocar um depoimento de Mário Soares, que não obstante todo o seu indiscutível mérito de Pai da Democracia, não estará isento de alguma crítica sobre censura que exerceu sobre a comunicação social, enquanto no poder.
A censura durante o período da ditadura, 1926-1974, representou, com altos e baixos, conforme as épocas, de maior ou menos dura repressão, o regime do puro arbítrio: polícia intelectual, e do pensamento, mais ou menos cega, sem qualquer subtileza e pouco critério. A censura exercia-se, antes do mais, digamos, preventivamente, porque os publicistas e os escritores, sentiam-na omnipresente sobre as suas próprias cabeças, inibindo-se de escrever sobre temas que sabiam que suscitavam, necessariamente, o lápis azul da censura. No entanto, não houve escritor que se prezasse, que não tivesse um ou vários livros apreendidos, proibidos ou mutilados pela censura. Sendo um escritor circunstancial, sem nunca ter abordado temas de ficção, senti o peso directo da censura sobre apenas dois livros: Escritos Políticos, editado clandestinamente pelo corajoso director do Jornal do Fundão António Paulouro, como edição do autor, em 1969, no tempo da chamada primavera caetanista. Apesar disso, foi apreendido pela censura e teve quatro edições, sucessivas, as duas últimas com a chancela da Editorial Inquérito do saudoso Eduardo Salgueiro. O outro, O Portugal amordaçado, só pôde ser publicado em português depois do 25 de Abril. Foi editado em 1972 em francês Le Portugal Baillonné-témoignage, pela Calman-Levy, graças ao enorme empenho do meu amigo Alain Oulman, então gerente da editora que pertencia a um seu tio. Foi depois traduzido em inglês, italiano, espanhol, alemão e, já depois de 1974, em grego e chinês. Outro que intitulei Escritos do Exílio foi publicado pela Livraria Bertrand, mas só em 1975, tendo em parte sido publicado, nos anos finais da ditadura, no Brasil, intitulado Caminho Difícil, do Salazarismo ao Caetanismo. Portanto, a censura que se exerceu contra mim foi pouca coisa, em matéria de livros. Mas na imprensa, onde tentava furar, aproveitando as curtíssimas frinchas da chamada liberdade suficiente, foi terrível. Tive inúmeros artigos cortados e nunca me foi possível ter acesso à Rádio nem à Televisão. Escrevi muito em jornais e revistas estrangeiras, com o meu nome e com pseudónimo. Dei inúmeras entrevistas e conferências de imprensa na América, no Brasil, em França e no Reino Unido. Mas a primeira vez que apareci na Televisão portuguesa, foi já depois do 25 de Abril. Nos últimos anos do exílio, em França, inventei um pseudónimo com que subscrevi vários artigos para o Jornal República: Claim d'Estaing, que obviamente se lia como a tradução de clandestino. A censura deixou-os passar. Nunca percebeu que Claim é um nome que não existe em França e como tinha d'Estaing talvez tenha pensado ser algum primo de Valery Giscard d'Estaing, então Presidente da República Francesa...

Não é possível precisar quanto tempo a cultura portuguesa viveu livre da repressão dos censores e seus mandantes. Façamos, como referimos, um pequeno, despretensioso inventário e história.

D. João III, corria o ano de 1539, sentou o seu irmão, o Cardeal D. Henrique e futuro Rei de Portugal, na cadeira de Inquisidor-Geral do Tribunal do Santo Ofício, conferindo-lhe poder sobre livros, autores, editores e tudo o que não caisse nas boas graças da Inquisição. Uma das suas primeiras decisões, foi impor ao Prior de São Domingos, de Lisboa e frades da Ordem, a busca nas bibliotecas públicas ou particulares de livros proibidos ou considerados nefastos.
Quem diz que a História não se repete?

Obras de Damião de Góis, os Autos (Gil Vicente), a 2ª edição de Os Lusíadas (Camões), A Peregrinação (Fernão Mendes Pinto), O Diálogo do Soldado Prático, (Diogo do Couto) e O Esmeraldo de Situ Orbis, (Duarte Pacheco Pereira), estão entre as muitas que conheceram a ação da Inquisição.

De Camões a Camilo Castelo Branco, do Pe. António Vieira a António José da Silva, de Francisco Manuel de Melo à Marquesa de Alorna, de Bocage a Cesariny, foi ininterrupto o rol de poetas, novelistas ou ensaístas que pagaram uma pesada factura pelo não conformismo com o poder temporal ou espírito-temporal.

Damião de Góis, cronista de reis e príncipes, esteve preso quatro anos. Quando já era septuagenário, acabou por sair em liberdade condicional, para morrer nesse mesmo ano, 1574.
Porquê razão?
Foi o autor da Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, na qual ao monarca foram feitas referências alegadamente menos favoráveis à sua pessoa e política, tendo em conta a perseguição e expulsão dos judeus. O primeiro volume foi apreendido e nele introduzidos, à revelia do autor, elogios ao Cardeal D. Henrique e à Inquisição.

De Camões sabemos pouco, é certo, mas sabemos o suficiente para se não poder fazer dele outro modelo que não seja de singularidade. Pois em que padrão poderia transformar-se um homem que não estudou leis, não teve modo de vida conhecido, não levou nenhuma dama à igreja, não contribuiu para o aumento da população, não pertenceu a qualquer confraria, e cuja vida é capaz de ter sido mesmo das mais desgraçadas que jamais a qualquer português letrado coube em sorte? Camões, se modelo é, convenhamos que é apenas modelo de poesia e de liberdade, e isso basta. (cfr. Eugénio de Andrade Quem celebra quem, in Camões, nº1, Agosto de 1980, Ed. Caminho a propósito das Comemorações do 4º centenário da morte do vate).
Camões esteve duas ou três vezes preso, a primeira das quais cerca de nove meses, entre 16 de Junho de 1552 e 13 de Março de 1553, por causa de uma rixa no Rossio, em que feriu o cidadão Gonçalo Borges, encarregado dos arreios do Rei.
Foi metido no Tronco da cidade de Lisboa, a prisão ignominiosa de masmorras e enxovias, que Aquilino Ribeiro admite ter recebido o nome dos cepos com argolas e correntes, a que eram amarrados os detidos, pelo pescoço e pelos pés. Na biografia em dois volumes que dedicou ao poeta, Luís de Camões, Fabuloso, Verdadeiro, Aquilino descreve o Tronco como um casarão nojento, piolhoso e latrinário ergástulo, tão medonho como os cárceres do Santo Ofício mas incomparavelmente mais reles na escala de indecência. Dura pena por uma rixa, que o poeta mais de uma vez travou na boémia pelas ruelas da Lisboa nocturna entre pátios, tavernas e cortesãs. António José Saraiva e Óscar Lopes dão-no como certo, nas páginas que lhe dedicam na História da Literatura Portuguesa: As cartas particulares de Camões mostram-no envolvido em brigas nocturnas entre bandos, com outros fidalgos arruaceiros e com mulheres fáceis do Bairro Alto. Gonçalo Borges acaba por perdoar-lhe as estocadas e o rei manda libertar o poeta, aplicando-lhe uma sanção de 4000 réis e compelindo-o a ir servir para a Índia. Parte em 1553, já com o olho direito vazado num combate em Ceuta. Soldado e funcionário no Oriente, Camões passou uma vida de penúria e aventuras e foi de novo preso por ordem do governador Francisco Barreto, não se sabe ao certo se por ter delapidado dinheiros que recebia na sua qualidade de provedor de defuntos, se por intrigas aos ouvidos do Rei ou se por causa das duas ou outras coisas. Certo, certo, lembra Aquilino Ribeiro, é que o que lhe faltava para não ser preso era, coisa corrente na época, o prestígio heráldico no nome, amigos poderosos e dedicados, e a mediocridade. Então como hoje triunfavam os medíocres. Só eles têm as qualidades requeridas de insistência e persistência, desvergonha, afabilidade, entendimento oportuno para se tornarem úteis e recomendáveis (...). Camões, a inferir de certos versos seus, bastante hipertróficos, devia avaliar-se pela medida grande e ver os outros nas justas proporções. Semelhante sentido das perspectivas nunca poderia concorrer para o seu engrandecimento individual. Mesmo quando lisonjeava, desconfiavam dele. Após dezassete anos de Oriente, Camões volta a Portugal, quotizado por amigos. Pobre e alquebrado, começa em 1571 a sua luta para publicar Os Lusíadas, que salvara de um naufrágio na costa do Camboja apesar de nele ter perdido a companheira chinesa. Em Lisboa, tem de submeter o texto aos censores do Santo Ofício, instalados no Mosteiro de S. Domingos, e discuti-lo verso a verso. Consegue imprimir o livro em 1572, meia dúzia de anos antes de morrer numa enxerga miserável, alimentado pelas esmolas que o escravo Jau conseguia arranjar. Sobre Os Lusíadas e tudo o resto que entretanto já escrevera, caiu o silêncio da comunidade intelectual do seu tempo, ocupada a elogiar autores que hoje ninguém recorda.

D. Francisco Manuel de Melo, poeta, dramaturgo, historiador, cronista militar, moralista da época barroca, foi dos escritores portugueses que mais tempo passou na prisão, entre nove e onze anos só de uma vez, sendo os motivos, ao que consta políticos, ainda hoje algo nebulosos e controversos.
Em 1639, vivendo em Madrid, comandou um regimento castelhano na guerra da Flandres. Em 1641, encontrando-se em Londres, aderiu à causa da Restauração e regressou a Portugal, onde depois de receber a Comenda da Ordem de Cristo, foi acusado e preso por conivência no assassinato de Francisco Cardoso. É na prisão, que irá escrever o principal da sua obra literária, em parte em castelhano, o que o leva a ser considerado também um clássico dessa literatura. Amnistiado por D. João IV, irá voltar a desempenhar funções diplomáticas ao serviço de Portugal.

Não cumpre apresentar aqui, em detalhe, a extraordinária biografia, bem como fazer a análise da complexa personalidade do Pe. António Vieira, nascido há 400 anos (1608), mas salientar alguns aspetos da vida e a política, para ilustrar como estas podem dar grandes e insuspeitadas reviravoltas. Na vida do Pe Vieira, destaca-se o orador de púlpito, o escritor, o polemista, o diplomata, o defensor de direitos humanos (índios do Brasil), o perseguido pela Inquisição (de que saiu vitorioso).

Tomás António de Gonzaga nasceu presumivelmente em Agosto de 1744, no Porto. Filho e neto de brasileiros, estudou Leis na Universidade de Coimbra. Envolvido na Inconfidência Mineira, foi preso a 21 de Maio de 1789 e levado para a Fortaleza da Ilha das Cobras. Tratou-se da primeira grande revolta pró-independência do Brasil. Preso, cumpriu pena de três anos e os seus bens foram confiscados. Em 1792, a pena foi comutada em desterro e enviado para Moçambique, a fim de cumprir 10 anos de degredo, ande faleceu em 1810.

António José da Silva, O Judeu, dramaturgo e escritor português, nascido no Brasil em 1707, viveu num período em que os judeus eram fortemente perseguidos em Portugal e possessões. Sua mãe, acusada de judia, foi deportada para Portugal e processada pela Inquisição. Seu pai, judeu, mas que conseguia manter secreta a fé, decidiu partir para Portugal com o filho, a fim de estar mais próximo da mulher. António José da Silva, estudou Leis na Universidade de Coimbra, tendo sido acusado de práticas judaizantes e (preso pela primeira vez pela Inquisição ainda não tinha dez anos !!!). Não obstante ser amigo do Pe. Alexandre de Gusmão, (o criador da Passarola), conselheiro de D. João V, foi torturado pela Inquisição, do que resultou ter ficado em parte inválido. Em 1737, foi preso pela Inquisição, juntamente com a mãe e esposa, que viriam a ser libertadas. Novamente torturado, descobriu-se que tinha sido circunsisado e uma escrava denunciou que ele observava o Shabbat. Foi estrangulado e queimado num Auto de Fé em Lisboa, a 18 Outubro de 1739, aos 34 anos, num auto-de-fé presidido pelo rei D. João V (O Magnânimo). No mesmo dia foram queimados mais dez judaizantes. A sua mulher foi obrigada a assistir à execução.
Que delito fiz eu para que sinta//O peso desta aspérrima cadeia//Nos horrores de um cárcere penoso//Em cuja triste, lôbrega morada//Habita a confusão e o susto mora?
Mas se acaso, tirana, estrela ímpia, //é culpa o não ter culpa, eu culpa tenho.//Mas se a culpa que tenho não é culpa,//Para que me usurpais com impiedade//O crédito, a esposa e a liberdade?

Pedro António Correia Garção, foi um dos fundadores e presidente da academia literária Arcádia Lusitana, onde tomou o pseudónimo de Corydon Erimantheo. Poeta e dramaturgo, considerado um dos mais importantes poetas neo-clássicos da literatura portuguesa, estreou-se em 1754 com um poema recitado na Academia dos Ocultos. Preso 1771, a mando do Marquês de Pombal, por razões nunca devidamente esclarecidas, supostamente políticas, levado para o Limoeiro, aí ficou até Março de 1773.
No dia em que, após muitas canseiras de sua mulher, chegou a ordem de soltura, morreu na enfermaria.

Filinto Elísio, pseudónimo de Francisco Manuel do Nascimento, poeta nostálgico e crítico da sociedade portuguesa, conseguiu ordenar-se sacerdote, adquirindo formação liberal e enciplopedista. Adversário da Arcádia Lusitana, chefiou o grupo Ribeira das Naus, foi denunciado à Inquisição pela própria mãe, como leitor de livros racionalistas franceses, que estavam proibidos. Refugiou-se em Paris, onde fez amigos como Lamartine, morrendo pobre e idoso, depois de publicar as suas Obras Completas, com o seu famoso pseudónimo. Este psdeudónimo recebeu-o de D. Leonor de Almeida, Marquesa de Alorna, a quem ensinou latim, enquanto esteve reclusa no Convento de Chelas e por cuja irmã Maria, se diz, apaixonou-se platonicamente.

José Anastácio da Cunha, teve uma educação esmerada, marcada pelas ligações com os Oratorianos do Convento de Nª. Senhora das Necessidades e pela figura da mãe, que o educou nos princípios cristãos. Com os padres oratorianos aprendeu gramática, retórica, lógica e possivelmente com o pai, os rudimentos de matemática e geometria. Por via do Marquês de Pombal, apesar dos seus 29 anos, foi nomeado Lente de Geometria, na Universidade de Coimbra, aonde teve uma actuação de destaque. Acabou a sua carreira universitária quando foi denunciado à Inquisição, sendo detido a 26 de Junho de 1778. Os autos do Santo Ofício, imputavam-lhe ter-se relacionado com militares protestantes ingleses, nas Praças de Valença e Almeida, por onde passou com o posto de Tenente-Coronel, de ter lido Voltaire, Rosseau, Hobbes e outros pensadores que defendiam o deísmo, indiferentismo e tolerantismo, de ter emprestado a uma discípula livros impregnados de filosofismo, de comer carne em dias vedados, de manter em casa uma manceba, de assistir com pouco interesse às práticas cristãs e de se dispensar de seguir, com ortodoxia, os preceitos canónicos. Foi condenado a pena de reclusão de três anos na Casa das Necessidades da Congregação do Oratório de Lisboa, seguida de mais quatro de degredo para Évora. Nesta altura caído o Marques de Pombal, reinava D. Maria I, mas José Anastácio da Cunha ainda assim ficou impedido de entrar em terras de Valença e Coimbra. Após cumprir a pena de três anos de reclusão, foi libertado e perdoados os anos de degredo em Évora. Da sua vida social sabe-se que frequentava os Saraus Literários da Família Freire de Andrade. O tempo de reclusão foi aproveitado para aperfeiçoar os Principios Mathemáticos, vindo a morrer com 43 anos.

Francisco Xavier de Oliveira, que adoptou por antonomásia o nome de Cavaleiro de Oliveira (Chevalier d’Oliveyra), escritor e diplomata do século XVIII, teve uma vida repleta de peripécias recambolescas. Passou pelas chancelarias de Utreque e Londres, onde conheceu o pior e o melhor por parte dos ministros plenipotenciários portugueses. Descreveu Lisboa como uma fermosa estrebaria e entrou pela polémica adentro sobre as causas do terramoto de 1755, que envolveu no debate e por muito tempo a Europa pensante (Voltaire, Kant...). Enquanto em Londres, aonde se casara, passou os últimos trinta e nove anos de vida e convertera ao anglicanismo, se faziam diversas edições do Discurso Patético, em Lisboa a Inquisição avolumava o processo contra o autor, que culminou na sua queima em estátua (efígie) num Auto de Fé, realizado no claustro do Convento de São Domingos, em 20 de Setembro de 1761. Cinco anos depois, Francisco Xavier de Oliveira publicava o seu último livro, o Tratado do Princípio, Progresso, Duração e Ruína do Reinado do Anti-Cristo, mas acabaria por falecer em 1783, um ano depois do marquês de Pombal e no mesmo em que morreu Ribeiro Sanches.

A 4ª. Marquesa de Alorna, de seu nome batismal Leonor de Almeida Lorena e Lencastre, e com o pseudónimo arcádico Alcipe, neta pelo lado da mãe dos Marqueses de Távora, executados à ordem de Pombal, foi enclausurada no Convento de Chelas, aonde passou dezanove anos. A sua boa educação literária, com leituras de Rosseau, Voltaire, Diderot e d’Alembert que lhe abriram o espírito às ideias do iluminismo francês, e científica, resultou seguramente da prolongada reclusão. Apesar das dificuldades económicas que uma viuvez precoce lhe acarretou, a sua residência tornou-se um foco de ebulição cultural, onde se debatiam novas ideias políticas, estéticas e correntes literárias.
Bocage e Herculano, em períodos diferentes, foram frequentadores do seu Salão.

Manuel Maria Barbosa du Bocage, com o pseudónimo de Elmano Sadino, várias vezes preso, alegada e popularmente por meras razões de licenciosidade, vida boémia entre botequins, mas não só (tertúlias literárias), foi denunciado à Inquisição como perigoso herético e maçon. Interrogado e preso nos cárceres do Santo Ofício, foi enviado para o Limoeiro, imposta a reclusão no Mosteiro de S. Bento e finalmente a residência fixa na Congregação do Oratório, no Convento-Prisão das Necessidades, aonde tinha de ouvir, aos domingos, os sermões dos oratorianos! Durante mais de dois anos esteve preso, por razões ideológicas: Vítima do rigor e da tristeza//Em negra instância, em cárcere profundo//O mundo habito sem saber do mundo/Como que não pertenço à natureza/// Enquanto pela vasta redondeza//Vai solto o crime infesto, o vício imundo//Eu (não preverso) em pranto a face inundo//Do grilhão suportando a vil dureza. Sabe-se hoje que Bocage, para ficar sujeito à Inquisição e ao poder de Pina Manique, (o mais radical dos desembargadores no desempenho durante cerca de 25 anos de Intendente Geral da Polícia), foram determinantes escritos em que revelava, sem pudor ou cautela, os sentimentos liberais (ecos da Revolução Francesa), como a Epístola a Marília, tidos por sacrílegos e blasfemos. Mas não eram mais que libelos contra a intolerância, o fanatismo e a superstição, um Deus opressor e vingativo, um Deus só terrível aos olhos da ignorância. O caso de Bocage é interessante, pois há que destacar a sua conduta Rumo à Cidadania, a luta pela implantação de um Estado, assente na Liberdade e Justiça, no respeito por valores éticos e universais, capazes de construir uma sociedade plural e solidária. A postura que manteve ao longo da vida, o seu estilo marginal e o aspecto satírico da sua personalidade, escondiam o seu íntimo em conflito entre o ódio e o amor, o inferno e o céu, a libertação e a morte. Pina Manique, foi um obsecado pelo combate à Maçonaria, que se espalhava entre jovens, menos jovens, aristocratas (Duque de Lafões) e plebeus, civis e militares, funcionários do Estado, profissionais liberais e religiosos (Abade Correia da Serra).
Bocage, em finais do século XVIII entrou na Maçonaria e fez parte da Loja Fortaleza, aonde assumiu o nome de Lucrécio. Participou em actividades conspirativas em botequins do Rossio, frequentou as tertúlias literárias do Morgado de Assentis, à Praça da Alegria, e do Conde Pombeiro, ao Paço da Rainha.

Almeida Garrett, preso, exilado e demitido dos empregos, soldado, ministro, escritor, correspondente comercial ou foragido, ora rico, ora pobre, foi o exemplo de um escritor sujeito aos tropecções da vida. Chegou a ter de vender parte da roupa do corpo para arranjar dinheiro, e a deixar a mulher e filhos em casa de parentes, por não ter com que os sustentar. Esteve encarcerado no Limoeiro, nos últimos três meses de 1827, acusado de apoiar, incitar, o movimento liberal.

Camilo Castelo Branco, esteve preso na Cadeia da Relação do Porto alegadamente sob a acusação de adultério com Ana Plácido, embora a origem das suas inimizades fosse variada e profunda, com polémicas políticas e literárias.

Gomes Leal, foi preso em 1881 acusado de injúrias à monarquia e ao rei D. Luís I, em panfletos, como A Traição e O Herege, nos quais punha em causa as instituições burguesas e a Igreja, gerando um enorme escândalo literário e político. Ao ler obras de Karl Marx, C. Darwin, E. Renan, ou Proudhon, entusiasmou-se com o socialismo, aproximando-se ideologicamente de Antero de Quental e Oliveira Martins. Após a morte da mãe, que o deixou na miséria, converteu-se ao catolicismo, sendo recolhido em 1913 por uma pessoa piedosa, pois dormia de casa em casa, nos bancos da rua, aonde chegou a ser apedrejado pelos garotos. Teixeira de Pascoaes lançou um veemente apelo a seu favor, conseguindo que o Parlamento lhe concedesse uma tença, anual e vitalícia.

Com ou sem autos-de-fé, a vida social e cultural portuguesa poucas vezes deixou de permanecer controlada e bloqueada pela censura, na mente de zelosos personagens, bem como de outros afrontamentos à Liberdade de Expressão e de Pensamento.
Já Alexandre Herculano haveria de escrever que, onde quer que apareça a censura, onde quer que se aninhe esta irmã gémea da Inquisição, há uma quebra nos foros da independência do homem, há uma insolência do passado contra a dignidade social da geração presente. Seja para o que for, a censura é um impossível político.


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