segunda-feira, 3 de outubro de 2011
NO CENTENÁRIO DA IMPLANTAÇÃO DA REPÚBLICA CLAROS E ESCUROS
Fleming de Oliveira
(II)
Com o novo regime houve que encontrar outros símbolos, como o hino, a bandeira e a moeda.
A questão dos símbolos nacionais foi uma questão controversa e a que o governo provisório deu muita importância. Se se queria cortar com os símbolos da monarquia, criar fracturas culturais, nunca esteve todavia em causa deixar de manter viva a ideia de uma Nação com um passado glorioso e uma tradição a respeitar.
A intenção da República continuar o programa político e cultural da modernidade iluminista e liberal exigiu a visibilidade e o reconhecimento de um novo poder simbólico, político e cultural, que usou vários instrumentos simbólicos, entre os quais estavam a bandeira nacional (verde e vermelho, escudo das armas nacionais com 5 quinas e 7 castelos, esfera armilar manuelina), o hino nacional (A Portuguesa), a moeda nacional (escudo), o busto oficial (imagem de república-mulher), o calendário de feriados e de festas nacionais, a divisa oficial (saúde e fraternidade), a festa da árvore, o panteão nacional (em Abril de 1916, a Igreja de Santa Engrácia foi escolhida como monumento para o receber), a Ordem da Torre e Espada (a única que se manteve), a toponímia, a numismática ou a filatelia republicanas (colecções Ceres em 1912, 1917-1920, 1921-1922, 1923 e 1924-1926).
Parece ser manifesto, para entender a evolução dos diferentes processos de legitimação simbólica, política e cultural, ter em conta a posição de distanciamento do Presidente da República António José de Almeida, bem longe do tempo dos primeiros governos e de Afonso Costa (nos primórdios do regime republicano, preocupados com a legitimação institucional assente numa nova ordem republicana) reveladas em diversas circunstâncias, como, por exemplo, no discurso que proferiu na Sala do Congresso da República, no dia 7 de Abril de 1921, em honra dos Soldados Desconhecidos, trasladados para o Mosteiro da Batalha dois dias depois e que teriam a Chama da Pátria aí acesa permanentemente:
Mas se a escolha do átrio do Congresso, para exposição dos corpos dos heróis, foi acertada, a deliberação de os levar em definitivo para a Batalha traduz o melhor preito que à sua memória se podia prestar. O Mosteiro da Batalha é, conjuntamente, uma obra de poetas, de guerreiros e de crentes (…). O crente católico pode ajoelhar e rezar, porque como casa de Deus, não a há mais pura e acarinhadora. Quem tiver outras crenças sentir-se-á comovido pelo aspecto imponente das naves, que proclamam grandeza, ou pela solidão enternecida dos claustros, que traduzem recolhimento, lenda, mistério, tudo envolvendo uma tradição que vem de longe (…). Toda a gente lá pode entrar, toda, a principiar pela própria República-Regime, pela própria República-Estado, que, sem adoptar nenhuma confissão religiosa, mas respeitando todas as religiões, não pode deixar de sentir especiais deferências por aquela que, além de ser a da grande maioria dos portugueses, tem por suprema divindade o mesmo Cristo que (…), não é só o Deus dos católicos, mas também, na História de Portugal, o companheiro de armas de Nun’Álvares (…).
Os primeiros Governos republicanos, dentro do ideário político e social de forte republicanização e nacionalização do Estado e da sociedade, com derivas radicais para o secularismo e o laicismo inseridos num alegado processo moderno de secularização e de laicidade, investiram quer na politização do monopólio da força física (guarda nacional republicana, jovens turcos, missões civis e missões militares de propaganda republicana, sociedades de instrução militar preparatória), quer na politização do capital simbólico (símbolos nacionais, memória e história nacional, tempo e calendário republicano, heróis e grandes homens, separação do Estado e das Igrejas, laicização do ensino, educação cívica).
O aprofundamento da secularização fez-se através do culto cívico da Pátria e da religiosidade profana do Estado, com a finalidade de retirar o controlo simbólico e social da mediação eclesiástica, e até do religioso sagrado, à Igreja Católica. Valorizou-se idealmente as expressões da liberdade e da consciência individual, para a construção do Estado de direito, republicano, mas o mito revolucionário, que se verteu em múltiplos pronunciamentos militares, acompanhará permanentemente todo o regime político, inviabilizando a normalidade institucional de uma República demo-liberal que, na Constituição de 1911, consagrava um princípio inovador, sistematicamente posto em causa: A liberdade de consciência e de crença é inviolável (artigo 3º, nº4).
Após vinte anos de interrupção, na cerimónia diplomática de imposição do barrete cardinalício ao Núncio Apostólico, na pessoa de Achilles Locatelli, no Palácio Nacional da Ajuda, a 3 de Janeiro de 1923, o Presidente António José de Almeida voltou a reafirmar a importância do catolicismo na sociedade portuguesa e na definição da identidade nacional, ressaltando o simbolismo da Cruz de Cristo, presente nalguns momentos identitários da construção de Portugal, em terra, no mar e no ar:
(…) a quase totalidade da Nação segue o credo católico e o Estado republicano, sem desdouro para os princípios neutrais, ou menoscabo das suas leis, já declarou um dia, por meu intermédio, e com aplauso unânime, na soleníssima cerimónia patriótica em honra dos Soldados Desconhecidos, que tem especiais deferências para com essa mesma religião, que é tradicionalmente a da grande maioria dos portugueses (…).
(…) os vossos votos para que este belo país conserve, conforme dizeis, a nobre característica cristã do seu carácter e do seu génio, terão fácil realização, porque, como sem esforço verificais, os intuitos cristãos da grande massa dos portugueses são evidentes e tão assinalados que a Cruz de Cristo aparece sempre com um prestígio a cada momento revigorado, através da sua história, ou nos épicos acontecimentos que determinaram a formação da nacionalidade, ou nos nossos famosos empreendimentos marítimos de há séculos, ou nos nossos magníficos feitos aéreos de há meses (…) .
O reatamento das relações diplomáticas entre Portugal e a Santa Sé ocorreu a 10 de Julho de 1918, após o Presidente da República Sidónio Pais ter recebido dias antes o enviado do Papa Bento XV, Monsenhor Ragonesi, e em Abril de 1919 o escolhido novo Núncio Apostólico Monsenhor Achilles Locatelli entregaria as suas credenciais ao Presidente da República Canto e Castro, numa sessão em que ambos discursaram. Na Mensagem do Cardeal Patriarca António Mendes Belo, dirigida ao Presidente da República Sidónio Pais, a seis dias deste ser assassinado, está patente o reconhecimento pelo início dessa mudança de atitude do Estado face à religião e à Igreja Católica:
As injustiças e violências, os atentados e perseguições, de que a Igreja Católica tem sido alvo em Portugal, desde que foi nele implantado o regime político em vigor (…); essa tão humilhante e dolorosa situação principiou de suavizar-se desde que V. Exª. Sr. Presidente, assumiu o governo do Estado, publicando desde logo, com geral aplauso, medidas importantes, e, entre elas, a que anulou os efeitos dos Decretos que impunham a alguns Bispos, Párocos e outros membros do Clero, o desterro para fora das suas Dioceses, Paróquias e até do País (…), e mais recentemente, o reatamento das relações de Portugal e a Santa Sé, que haviam sido bruscamente interrompidas (…).
A perspectiva evolucionista heterodoxa de Sampaio Bruno manifestou-se quando insistiu, após a revolução republicana, que o fio da tradição tinha de ligar-se à trama da renovação, para que não se produzam hiatos nem se rasguem lacunas, e, assim, uma pátria nova quer simplesmente dizer a pátria antiga depurada, melhorada, aperfeiçoada, civilizada, progressiva, firmada nos conceitos da razão pura e nas admoestações da tradição histórica. O debate em torno das cores da bandeira nacional será o lugar essencial para Sampaio Bruno reflectir sobre a relação entre tradição e revolução. Dez dias depois da revolução, afirmou que a bandeira vermelha e verde era a bandeira da Revolução (rompia com a tradição nacional), correspondente ao período revolucionário e à memória republicana, e a bandeira da Nação (renovava a tradição nacional) tinha que continuar a ter as cores azul e branco, substituindo a coroa (monárquica) por uma estrela de ouro (republicana):
(…) a bandeira azul-e-branca, com o seu escudo e disposição, é a única que o preto de África conhece como representativa da soberania de Portugal. (…) é o símbolo de Portugal para o indígena das nossas colónias. É a única que ele conhece. Fazê-la desaparecer implica comprometer a nossa soberania colonial (…).
A Portuguesa foi composta sob os efeitos da comoção nacional decorrente do Ultimato, sendo cantada pelos revolucionários de 31 de Janeiro de 1891. Aquando da implantação da República foi espontaneamente cantada pelo povo que acorreu às ruas de Lisboa.
Foi assim que a Assembleia Constituinte a proclamou como Hino Nacional.
Logo após a implantação da República nomeou-se uma Comissão para apresentar um projecto de bandeira que representasse a ligação entre o regime republicano e a História, que resumisse a vontade nacional. Vários projectos foram analisados, mas apresentada a bandeira no dia 1 de Dezembro de 1910, este dia foi declarado dia da Festa da Bandeira. A cor vermelha já estava presente no estandarte português desde D. João II e era uma cor viril por excelência, a cor da conquista e do risco e o verde era a cor da revolução e do futuro. O escudo das quinas, com a esfera armilar de D. Manuel II representava o padrão eterno do nosso génio aventureiro.
Em Junho de 1911, o real deu lugar ao escudo-ouro. Esta nova unidade monetária tinha o valor nominal de 1000 réis e encontrava-se dividido em 100 centavos, cada um equivalente a 10 réis. A partir de então, o escudo constituía a base do sistema monetário em todos os territórios portugueses, à excepção do estado da Índia.
A 12 de Outubro de 1910, uma semana após a revolução republicana, o Governo Provisório aprovou os cinco novos feriados oficiais: Fraternidade Universal (1 de Janeiro), Precursores e Mártires da República (31 de Janeiro), Heróis da República (5 de Outubro), Autonomia da Pátria Portuguesa (1 de Dezembro) e Família (25 de Dezembro), acrescentando-se em 1 de Maio de 1912 um sexto feriado, o do Descobrimento do Brasil (3 de Maio), conforme convicção corrente de ter sido o dia da chegada da armada de Pedro Álvares Cabral.
Este calendário perdurou até 29 de Julho de 1929, momento em que o Governo de Artur Ivens Ferraz, dissipando dúvidas sobre os feriados oficiais, considerou manter esses seis – o 1 de Dezembro passou a evocar a Restauração da Independência em vez da anterior Autonomia da Pátria Portuguesa – e juntou um sétimo feriado, a Festa de Portugal (10 de Junho) que, desde a lei nº 1783, de 25 de Maio de 1925, era já oficialmente considerado um dia de festa nacional em honra de Luís de Camões, até então evocado, anualmente, a partir de 1911, pela Câmara Municipal de Lisboa, numa concorrência laica com as festas de Santo António, a 13 de Junho. Este ajustamento nos feriados gerais da República fez com que o mais importante feriado nacional passasse do dia 1 de Dezembro para o dia 10 de Junho.
Ao longo do regime republicano, para além dos feriados municipais, foram decretados, em diversas ocasiões, dias feriados excepcionais, inscritos na mundividência laica e patriótica liberal republicana. Entre eles, recorde-se o 20 de Abril de 1913 (2º aniversário da lei da separação do Estado e das igrejas), o 18 de Outubro de 1917 (1º centenário da execução de Gomes Freire de Andrade e de seus companheiros), 9 de Abril de 1921 (dia da trasladação para o Mosteiro da Batalha dos restos mortais dos Soldados Desconhecidos) ou o 5 de Fevereiro de 1924 (homenagem a Luís de Camões).
Uma resolução do Papa Pio X, em 2 de Julho de 1911, estabeleceu oito dias santos: Circuncisão (1 de Janeiro), Epifania ou Reis (6 de Janeiro), Ascensão do Senhor (dia móvel), Apóstolos S. Pedro e S. Paulo (29 de Junho), Assunção de Nossa Senhora (15 de Agosto), Todos-os-Santos (1 de Novembro), Imaculada Conceição (8 de Dezembro) e Natal (25 de Dezembro); em meados da década de 20, junta-se o dia de S. José (19 de Março) e o dia do Corpo de Deus (dia móvel), perfazendo dez dias santos.
Coincidiam com os feriados oficiais da I República Portuguesa, apenas o 1 de Janeiro e o 25 de Dezembro, apesar de evocações diferentes quanto ao primeiro.
O dia da Imaculada Conceição, padroeira de Portugal, será também feriado oficial, com o Estado Novo, a partir de Junho de 1948, e em 4 de Janeiro de 1952, após acordo entre Portugal e a Santa Sé, num ambiente político distinto do anterior, estabeleceram-se os novos feriados civis e religiosos: 1 de Janeiro, Corpo de Deus (quinta-feira, móvel), 10 de Junho, 15 de Agosto, 5 de Outubro, 1 de Novembro, 1 de Dezembro, 8 de Dezembro e 25 de Dezembro. As resistências anteriores do Presidente do Conselho António de Oliveira Salazar para estabelecer os novos feriados levaram o Cardeal Patriarca Manuel Gonçalves Cerejeira a este comentário:
(…) a demora na solução do caso (dias santos) (…) está causando reparos (…). E por outro lado, urge resolvê-la, para se não acabar de todo com o que resta de costumes cristãos no povo. O trabalho aos domingos (já remediado pelo menos na lei) e aos dias santos – afasta o povo da Igreja (…).
O primeiro feriado oficial republicano a ser comemorado foi o 1 de Dezembro, deliberando o Governo Provisório, em 23 de Novembro de 1910, com a aprovação do projecto definitivo da bandeira nacional, que o dia 1 de Dezembro fosse também o dia da Festa da Bandeira Nacional, considerada na linguagem oficial do decreto a representação objectiva da pátria e o precioso símbolo que resume as suas aspirações, sentimentos nobres e energias. Além da Festa da Bandeira Nacional e da Festa da Árvore, esta comemorada pelas escolas primárias com projecção no espaço das municipalidades, dentro de uma perspectiva de naturalização do cosmos, do homem e da sociedade, os governos republicanos aprovaram mais duas Festas Nacionais da República.
Uma dessas festas nacionais foi a Festa do Patriotismo/Festa de Nun’Álvares Pereira, instituída em 13 de Agosto de 1920, para ser celebrada todos os anos em 14 de Agosto, dia da batalha de Aljubarrota, também conhecida como Festa da Pátria e dinamizada pela Cruzada Nacional D. Nun’Álvares Pereira em articulação com o Governo, a Igreja Católica e o Exército; a outra festa nacional foi a já referida Festa de Portugal/Festa de Luís de Camões, consagrada desde 25 de Maio de 1925, para ocorrer anualmente no dia 10 de Junho, dia da morte do Poeta, que como referimos já era comemorado anualmente como feriado municipal pela Câmara Municipal de Lisboa, desde 20 de Junho de 1911.
(CONTINUA)
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