quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A CENSURA ANTES DO 25 de ABRIL

Uma rolha na boca.
Mário Neves, faz crónicas dramáticas a partir de Badajoz.
As entrevistas a Salazar.
Os fatos de banho, vigiados pelos zelosos cabos-do mar.
O Catitinha.
O homem da língua da sogra e os barquilhos.
Como é bom namorar.
A Ala Liberal e a Lei da Imprensa.
Portugal combate os mendigos e miséria, por via administrativa e judicial.
O ortodoxo Lopes-Graça e o russo liberal Rostropovich.
Portugal derrota em futebol a Home Fleet por um rotundo 11-1.



FLEMING DE OLIVEIRA

(III)


O Estado Novo, a partir de certa altura, ainda antes da II Guerra, havia começado a investir no turismo balnear, um pouco em detrimento do tradicional turismo termal, como forma de captar mais receitas e divisas.
As praias, por excelência, eram a Costa do Estoril, Figueira da Foz, Espinho e Póvoa de Varzim. Até o Algarve, zona periférica, se tornar o grande factor de atracção, ainda iria mediar muito tempo. O desenvolvimento do turismo, acarretou alterações nos hábitos e na moral nacionais. A praia, o sol e o calor, estavam conotados como uma vida menos regrada, mais despretensiosa ou liberal. Apesar dos apelos e de alguma condescendência aos novos hábitos, o Salazarismo, continuava a impor uma moral puritana, por alguns já considerada obsoleta. O País sofreu um choque com a chegada da vaga de refugiados, cujos hábitos e cultura eram bem diferentes. Ainda nos recordamos de ouvir dizer com ar galhofeiro, misto de depreciativo, que a esplanada da Pastelaria Suiça nos Restauradores, nos tempos da II Guerra era conhecida como a nossa BONPERNASSA, pela relação com a exibição de pernas de mulheres, que até fumavam em público.
O Dec.Lei nº 31247, de 1941, afixado em editais pelas capitanias marítimas, havia imposto às senhoras, sob pena de multa, um fato de banho adequado, inteiro, sem descobrir os seios, com costas decotadas sem prejuízo do corte das cavas ser cingido nas axilas, os homens calção justo à perna e reforço da parte da frente cobrindo o ventre, o que dava muita canseira aos zelosos cabos-do-mar, envolvidos nas praias, qual jogo de gato e rato. Num país com um regime que obrigava as professoras primárias a pedir autorização ao governo para casar, as mulheres a ter autorização do marido para exercer comércio ou ir ao estrangeiro, não é de espantar que a indumentária das pessoas fosse regulamentada, não sendo permitidos certos modelos considerados ousados. Tudo, enfim, em nome da moral e dos bons costumes. Ou, como justificava o referido Decreto-Lei, relativo aos modelos de fato de banho, para salvaguarda daquele mínimo de condições de decência que as concepções morais e mesmo estéticas dos povos civilizados ainda, felizmente, não dispensam. Ainda magro e adolescente, lembramo-nos de termos de usar um fato de banho com calção quase até aos joelhos, com uma saia dianteira que ocultasse eventuais entusiasmos (viris) e uma camiseta de alças, à moda dos antigos olímpicos, que tapasse algum pêlo que ousadamente despontasse no peito.
O cabo de mar, uma autoridade vestido de branco da cabeça (boné) aos pés (sapatos), era o fiscal intransigente na defesa da moral. Hoje, se alguém se apresentasse numa praia portuguesa, nos preparos que a lei prescrevia então, seria alvo de suspeita e não por parte de um polícia, mas de um psiquiatra que duvidaria da sanidade mental. As regras que impunham decência no vestuário continuaram legalmente em vigor por vários anos. Mas, com o correr do tempo, na prática foram cada vez mais sendo postas em causa. Para isso, muito contribuiu o turismo que, na década de sessenta, começou a procurar o nosso país como local de veraneio, onde cada vez mais, apareciam ingleses, franceses, holandeses e alemães, com indumentárias ousadas para os nossos padrões e costumes.
Foi, recorde-se, a época da mini-saia (a britânica Mary Quant) e do biquini, das longas e despenteadas cabeleiras para os rapazes (beatlemania). E se muito boa gente, ainda se escandalizava com a pouca-vergonha das vestimentas dos estrangeiros, outros, especialmente a juventude, adoptavam alegremente as novas modas. O Manel Bexiga, que é nazareno, recorda um caso, ocorrido nos primeiros anos da década de sessenta, na praia. Se é verídico ou anedota não podemos atestar. Conta ele que por lá apareceram umas francesas, de biquini, num areal onde todas as senhoras e raparigas ainda só usavam fato-de-banho.
Então o cabo do mar foi falar com elas, tentando, com as poucas palavras em francês que aprendeu com a irmã concierge em Paris, ou talvez mais por gestos, explicar-lhes que ali, na Nazaré, só era permitido usar fato-de-banho de uma peça. Só uma peça, uma só, tentava o pobre homem explicar. Então as francesas disseram que sim, tinham compreendido muito bem, só não sabiam era qual das duas peças era para tirar, a de cima ou a de baixo.
Quando as férias eram um mês de praia, com casa e barraca alugadas, metade do Ribatejo e Estremadura mudava-se para a Nazaré apesar da água frias, com o picadeiro, a lota, o salva-vidas e o grande promontório do Sítio. Havia, nesta e em praias como a Figueira da Foz, no ambiente um certo charme de gente fina, como se fosse de luva branca. Uma nova burguesia que se queria afirmar como distinta, adoptava estereótipos em voga para se identificar.
A praia, era o palco por excelência da infância e adolescência, e despertava o imaginário para a vida, singrando nas ondas da água ou nas da areia. À beira das barracas listadas a azul ou a verde, quando a tarde esmorecia e a brisa se levantava, jogava-se o prego, o anelinho, o ring. Acertar com o anel de borracha na eleita pertencia ao ritual da iniciação. Quando as gaivotas voavam atras das traineiras que regressavam, com o sol a queimar de oiro a babugem das ondas, sentados na areia, passavam no grupo segredos, afagos de mão ou beijos castos sempre recusados em alarido ao dono da prenda que está para sair. Segundo o crepitar do brilho do amor, ele ou ela, tudo combinado na força da fuga do olhar, quando o anel passava nas mãos em concha fechada.
Fora desta, nas mesas das esplanadas ou cafés, o vocabulário pretendia-se mais cuidadoso, mas de circunstância. Os vereaneantes bem aperaltados, embora já um pouco leves no trajar, à inglesa, iam para a sala para uma batidela de cartas (king, bridge ou canasta). Enquanto isso, as mães de família com os penteados alteados e enformados, metidas em vestidos já graciosamente decotados, abanavam os leques para fazer frente aos caloraços, e matavam o tempo bebericando um chá ou um refresco à espera do consorte.
As raparigas exibiam vestidos camiseiros, de godé, nylons ululantes, meias de seda (de vidro), realçando a curvatura da perna depilada que se vinha calçar no sapatinho. Muitos rapazes trajavam de branco, calça, camisa e sapatos.
E não faltavam os bailes de estação, com o que se pretendia recuperar a belle époque, organizando para o efeito concursos, como a mais bela da praia, o mais original vestido de chita ou o baile das vindimas. Rapazes e meninas espigavam na hora do picadeiro (após o jantar), para cá e para lá, olhares melados no momento de cruzarem, ancorados nas regras da civilidade e etiqueta. As mães pensavam que tendo as filhas debaixo de olho podiam adormecer sossegadas. Dos pais sabia-se que mantinham as aparências e talvez rezassem pela virgindade das filhas. Tudo funcionava regularmente, como convinha. Mas com o tempo tudo mudou. Bolacha americana era doce e torradinha. Porquê americana? Soava, mas não sabia a liberdade.
Era redonda e de reticulado impresso. Na marcha sobre a areia quente, ouviu-se mais tarde olha a língua da sogra, sem adjectivos. Será que também eixou de ser doce e torradinha? Eram iguais no açúcar e na consistência mas esta parecia transportar algo entre brejeirice e anedotário. Virara espátula recurvada e longa, comida a dentadinhas demoradas. As bolachas não eram para matar a fome, esculpiam apenas a gulodice.
Sempre que aparecia, um mundo de gente pequena abeirava-se dele. Era o Catitinha, um homenzarrão velhote de longas barbas, que percorria as praias do país de norte a sul, do Minho ao Algarve, brincava com todos os miúdos e tinha um apito para chamá-los. Nunca o vimos pedir, mas também nunca o vimos com fome. Pode ser que tudo isso tenha acontecido mas, possivelmente não faltava quem lhe tapasse a fome e o frio, porque todos (mesmo mais velhos) já antes o tinham ouvido. Ninguém lhe pagava, ninguém lhe agradecia. O Catitinha para muitos era como uma instituição, um avô de todos. Dizia-se que tinha sofrido um grande desgosto, a morte de um filho, e ficou sem tino.
Por essa altura, o jornal satírico Os Ridículos, publicou uma caricatura de um cabo do mar em funções, devidamente uniformizado de branco, boné e sapatos, utilizando uma fita métrica para medir uma banhista de formas generosas e arredondadas, com o comentário que doravante os fatos de banho, das senhoras, não podem ter menos de de metro e meio de pano nas costas. Segundo preconizanva a M.P.F., que pretendia guiar as mulheres de Portugal e criara mesmo um modelo oficial, os fatos de banho femininos excessivamente curtos e decotados, de fazendas leves e cores muito claras eram proibidos pela moral cristã. Em 1955, O Alcoa, de 22 de Setembro, na primeira página e com todo o destaque, sob a epígrafe de Decência e Moralidade nas Praias-Escárnio da Autoridade e Inimigo da Pátria, alertava os leitores sob a pena de M.J., exprimindo um forte grito de desabafo de um banhista da Nazaré, para o despertar desta nova realidade de impudor que alastrava, parecendo que os homens entraravam em competição desenfreada com as mulheres. (…) Como é possível isto em Portugal? (e aqui ao nosso lado na Nazaré?, acresecentamos nós.) E a nossa surpresa não tem limites, quando somos informados que neste nosso País existe lei, muito clara e categórica, que desce até à determinação da qualidade, dimensões, e locais de uso dos fatos de banho, não deixando de mencionar as graves penas em que incorrem os transgressores (…). Afinal para quê? Para que quem chegue verifique, que grande parte, talvez a maior parte dos banhistas, se apresentam na praia e até fora dela, desacatando as ordens legais e a autoridade. Efectivamente, fez-se tudo quanto podia para o desprestígio da autoridade e para sancionar o libérrimo reinado da tanga (…).
Ainda bem que a vida muda, embora por momentos isso nos pareça acarretar desconforto.
Recentemente, na praia, vimos um homem das Bolas de Berlim. Estavamos com a nossa neta. Nem pensamos duas vezes. Chamamos por ele e pedimos uma bola, mas foi uma profunda desilusão. O homem não tinha bolas com creme e vendeu-nos uma muito seca, pela qual não obstante cobrou um euro.
A partir daqui nem pensar mais no antigo e esquecido pregão frut’ó chocolate, que nos levaria direito ao bar da praia e obrigaria a comprar um gelado, a um preço exorbitante.
Afinal, a praia também mudou muito. Longe vão as Bolas de Berlim fresquinhas ou caracóis, como apregoavam as mulheres fardadas de branco que, de manhã à noite, caminhavam na areia, com as caixas de lata cheias de bolos, à cabeça. Mas também havia, os vendedores de bolacha americana. Estes eram homens e a lata cilíndrica que transportavam às costas tinha uma espécie de roleta na tampa. Bolacha americana doce e torradinha! Porquê americana? Soava bem, mas não sabia a liberdade... Era redonda e de reticulado impresso. Na marcha sobre a areia quente, ouvia-se também um olha a língua da sogra, neste caso sem adjectivos, como convinha. As bolachas não eram para a fome, esculpiam apenas a gulodice.
Não há mais cabo do mar, Bolas de Berlim com creme, vendedores de barquilhos, nem o homem dos gelados, factos muito importantes, na praia da nossa adolescência.

Quando as meninas ainda eram chamadas donzelas, os beijos traziam doenças incuráveis, os olhares eram tidos por indecentes, o aperto de mão era impróprio, e tudo se resumia a serenatas com bandolins e violas. Os rapazes eram mais chorosos, escreviam versos, sonhavam um dia ver os lindos pezinhos tão delicados que respiram rosas, liam poetas e outros românticos ou os mais burros decoravam fórmulas de cartas amorosas. Muitos casamentos eram feitos por contrato, ou porque um dia o rapaz viu de esguelha a donzela através da mantilha acompanhada pela mãe à porta da igreja.
Depois, cheios de coragem iam à casa do futuro sogro pedir a mão da pequena, isto após noites de serenatas. As noites de serenata começavam tarde, na sacada, a menina detrás das venezianas. O rapaz cantava coisas simples que falavam de sua beleza, meus suspiros, meus ais; os pais policiavam as serenatas, e muitas vezes jogavam água quente das janelas mais altas, para espantar os moços cujas intenções não conhecemos. Os rapazes eram tratados de senhores, e os namoros, mesmo de longe, terminavam em casamento como se impunha.
Depois veio a idade do portão, quando às raparigas era permitido pelos pais, embora a contragosto meu e de minha mulher que achamos bem fazeras coisas à moda antiga como no nosso tempo, namorar no portão. As mães ficavam acordadas dentro de casa, ainda não era o tempo da televisão, e de vez em quando vinham conversar sobre o tempo.
Depois da idade do portão, veio a da sala. Primeiro, era o namoro de sofá, em frente da mãe, do pai e dos irmãos. Depois vinha a permissão para namorar na porta, desde que cuidadosamente iluminada por uma lâmpada de 100 velas.
Os namoros de sala ainda terminavam quase sempre em casamento. O rapaz ia a casa da rapariga, mas não tinha direito de sair a não ser acompanhado dos irmãos, pai, mãe e outros parentes. Se quisesse ir ao cinema ou bauile, era ele quem suportava a despesa, pagava para todos. Isto era uma forma de desanimar os namorados a sair de perto de casa.
Depois veio o automóvel que tomou conta de tudo. Começou no tempo do jazz, do rock-and-roll, quando as loucuras de Elvis Presley eram o modelo para os jovens que começavam querer a namorar longe de casa. Levavam as namoradinhas, que já mascavam chicletes, coisa antigamente proibida para moças.
Agora, o namoro ainda costuma terminar em casamento. Mas, além de uma série de dificuldades surgidas por causa do tempo e das complicações da vida moderna, alguns conservadores acham que muito do romantismo do casamento já acabou, e não remédio. Mas, apesar da evolução do modo de namorar, uma coisa ainda é necessária para que exista um bom namoro, um pouco de amor, como nos tempos de outrora.
A 4 de Novembro de 1950, Portugal não assinou a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a qual só entrará em vigor a 3 de Setembro de 1953. A propaganda personalizada sobre Salazar atingia por vezes momentos algo delirantes. Veja-se esta pequena notícia colhida de O Alcoa, de 3 de Julho de 1952, pela pena de Silva Barros, poucos livros em Portugal têm alcançado tanto êxito como o que nos deu a escritora francesa Christine Garnier, focando a figura inconfundível de Salazar. Despida de sentido político e orientada em moldes verdadeiramente felizes, a obra em questão é notável pelo grande interesse em todos os seus capítulos, onde a figura do Grande Chefe Português, é focada com simplicidade, sem floriados de estilo que poderiam afectar o projecto duma obra que se destina a todos. A linguagem é simples mas sentida (…). Férias com Salazar é pois um livro do maior interesse que recomendamos a todos os nossos leitores.

CONTINUA


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