segunda-feira, 3 de outubro de 2011
(II) QUANDO O CAMARADA CUNHAL IA SENDO APANHADO À MÃO EM ALCOBAÇA (AGOSTO DE 1975)
-Cunhal sai escoltado(por “gorilas”) pelas traseiras do Pavilhãogimno desportivo de ALcobaça
-José Alberto Vasco esteve lá.
-Rosalina Martins enervou-se, pensou logo nos seus ricos
filhos e socorreu uns jornalistas canadianos.
-Luís Graça, ainda salazarista, colaborou com o PPD.
-Timóteo de Matos, PC, tem uma versão diferente.
-O MRPP justifica os incidentes.
-O CDS numa sessão no Alqueidão da Serra, com Manuel
Ferreira Castelhano e outros, mas com um discurso pouco
mobilizador.
José Alberto Vasco, que na verdura dos seus 20 anos esteve no Pavilhão, do comício guarda recordações interessantes, senão mesmo românticas. Era um jovem idealista, em reflexão auto-crítica do trotsquismo como diz, do qual conhecia alguns princípios e teoria.
Para José A. Vasco, leitor de alguns textos de divulgação, o trotskismo consistia fundamentalmente na defesa do marxismo, combatendo a burocracia no Estado Operário, fortalecido com a ascensão de Estaline ao poder, em 1924, a ideia de Revolução Permanente. Aqui residia a principal divergência em relação ao pensamento de Estaline, que defendia a tese do socialismo num só país. Para os puros, ingénuos e jovens do trotsquismo, a Revolução Permanente defendia a expansão para além das fronteiras da URSS como prioridade, ao invés do seu primordial fortalecimento interno. Para os comunistas portugueses (PC), o trotskismo era uma tentativa revisionista e heterodoxa de desvirtuar o marxismo-leninismo e corromper os valores realmente revolucionários, representados pelo regime de Estaline na União Soviética, aonde Cunhal fizera a sua formação política.
Essa semana, como recorda José A. Vasco, fora interessante, embora ensombrada no seu dizer engajé, por um conjunto de assaltos a sedes de partidos, sindicatos e organizações de esquerda, no centro e norte do país, bem como pelo golpe da UDT, em Timor.
Após a publicação do Documento dos Nove, o CPCON apresentou o seu programa para salvar a Revolução Portuguesa.
Em 13 de Agosto, uma lista liderada por Mário Contumélias e afecta ao MRPP/PS, venceu as eleições para o Sindicato dos Jornalistas, e dois dias depois foi emitido comunicado em que um grupo de jornalistas do Diário de Notícias, contestava a direcção editorial de Luís de Barros, director, e José Saramago, subdirector, acusando-os de estarem a conduzir o matutino para uma crescente onda de descrédito e de ter afastado dos seus quadros excelentes profissionais, que tinham tentado servir o jornal com uma informação verdadeiramente revolucionária, porque objectiva e desapaixonada. Na manhã dessa sexta-feira, 15 de Agosto, os jornalistas Manuela de Azevedo, Luís de Oliveira Nunes e José Sampaio haviam divulgado as posições do grupo de 30 jornalistas contestatários da linha editorial do Diário de Notícias, dando a conhecer o abaixo-assinado em que acusavam a dupla Luís de barros e Saramago de evidente sectarismo de opinião publicada e de um gravoso silêncio em apoio ao documento Correia Jesuíno, que pretende restabelecer a censura à informação em Portugal.
No mesmo dia, durante um comício do PS, em Lisboa, o antigo chefe de redacção do República, João Gomes, atacou o governo de Vasco Gonçalves, acusando-o de que ficar na história como um símbolo de incapacidade, de incompetência e um símbolo do fala-barato: um símbolo da nulidade.
À mesma hora, num comício do PC, no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa, Cunhal acusou o PS de, em vez de se unir às forças progressistas, se haver virado contra as forças revolucionárias, alargando as suas alianças à direita e convergindo com as forças mais reaccionárias.
Ainda nessa sexta-feira, e depois de num comício do PPD, em Bragança, o secretário-geral Emídio Guerreiro ter clamado contra a inutilidade da chamada campanha de Dinamização Cultural do MFA na região, efectuou num comício de Cascais outro ataque ao governo de Vasco Gonçalves, terminando com o apelo Basta, Companheiro Vasco !, que se tornaria a manchete jornalística do dia seguinte.
Em Timor, a situação política agravou-se, pois o comandante da PSP em Dili, Maggiolo Gouveia, abandonou o posto, aderindo à UDT.
Na noite de sábado, 16 de Agosto de 1975, o meu período de reflexão política pessoal continuava e apesar das minhas já então muito abaladas convicções trotsquistas, não deixei de me deslocar àquele local, para muito democraticamente ouvir o que o meu suposto inimigo estalinista lá iria declarar, ali me deslocando bastante convicto do anti-estalinismo, que mantenho. Foi acompanhado pelo amigo Tó Filipe e quando chegou, viu que aquela festa/comício pouco tinha a ver politicamente comigo.
Era uma festa porque, aquilo era isso mesmo, uma festa em que cantos, aclamações e bandeiras vitoriavam o partido mais fracturante da sociedade portuguesa e a sua figura maior, Álvaro Cunhal, que alguns minutos depois vi entrar na sala, com o ar simultaneamente esfíngico e irónico que a história reserva aos seus heróis.
O comício começou com um discurso de António Dionísio, apresentado como delegado sindical na Crisal. Foi precisamente, continua José Alberto Vasco, durante esse discurso que o comício foi interrompido por um monumental tiroteio vindo do exterior. Quase mecanicamente, foi montado no interior um bem treinado mecanismo de defesa, a cuja organização assisti tão impávido e sereno, como aterrorizado pela incerteza do que me esperaria lá fora, ou até se dali conseguiria sair. e a verdade é que esses temores se aprofundaram, quando confirmei que alguns militantes do PCP estavam armados, o que me levou a prever um agravamento da situação. A verdade é que o tiroteio foi aumentando e que eu então me desloquei para o sector do pavilhão onde ainda se situava Álvaro Cunhal, tendo mesmo estado a cerca de um metro daquele que eu já então considerava ser um dos principais responsáveis pelo enfraquecimento prático e teórico da esquerda portuguesa. Ali estive durante alguns minutos, ouvindo o aceso tiroteio que se desenrolava lá fora e as pedradas que amiúde batiam nos vidros do pavilhão gimnodesportivo.
Em dado momento, José Alberto Vasco viveu o seu maior susto da noite, se não da sua ainda curta vida, quando um estrondoso ruído anunciou a queda de uma das janelas situadas ao alto do pavilhão, poucos metros atrás do local onde se encontrava o líder comunista. Certo é que poucos minutos depois deixei de ver Álvaro Cunhal, que seguidamente constou ter conseguido abandonar o local dissimulado numa ambulância. E eu lá continuava, observando e vivendo aqueles marcantes acontecimentos e verificando que, apesar do cerco que lá fora se desenhava e anunciava, a defesa movida pelos militantes do PC fora entretanto reforçada com outros elementos armados, oriundos da Marinha Grande.
Algum tempo mais tarde, tudo parecia acabado, numa versão não totalmente coincidente com o supra exposto, pelo que começámos a sair muito calmamente do pavilhão e a dirigirmo-nos para casa, verificando que a nossa saída estava fortemente protegida por dezenas de militares oriundos do RI 7 de Leiria e do RI5 de Caldas da Rainha, que a PSP chamara em seu apoio. Viam-se também muitos vidros partidos e automóveis danificados, embora já não se registassem sinais de presença das pessoas que haviam ostensivamente cercado o pavilhão.
Apenas no domingo seguinte, José Vasco confirmou o que tinha acontecido no Jornal de Notícias, isto é, que centenas de pessoas haviam montado cerco ao comício do PC e erguido barricadas e fogueiras. Soube também por esse jornal que, durante a confrontação a tiro e à pedrada, se haviam registado vinte feridos, quatro dos quais haviam recebido tratamento hospitalar.
À tarde, a vida corria normalmente em Alcobaça, numa rotina de verão quente e soalheiro, sem que nada deixasse transparecer a ocorrência dos graves incidentes da noite anterior. Apenas em alguns pequenos grupos era tema de conversa, misturado com muita boataria e factos inverosímeis.
Os acontecimentos tiveram repercussão, no País e no estrangeiro. O Paris-Match fez uma reportagem sobre o acontecimento, onde Duarte Chita, director do Lar Residencial de Alcobaça, aparecia muito sorridente. Dizia-se, que Alcobaça perdeu a oportunidade histórica de apanhar Álvaro Cunhal à mão. Entre os mais de 20 manifestantes feridos na noite de 16 de Agosto, dos quais 7 ficaram internados nos hospitais de Lisboa, Coimbra e até de Alcobaça, contava-se o jornalista do Daily Telegraph, o inglês Michael Field, de 54 anos de idade, que já estava há vários dias em trabalho de reportagem em Portugal.
A interpretação destes acontecimentos, por parte do PC e satélites, bem como dos media afetos, foi bem diferente da generalidade dos alcobacenses. Segundo um comunicado, emitido logo na manhã do dia 17 de Agosto, pela secção de Informação do PCP, por declarações feitas por alguns provocadores agarrados pelo serviço de ordem do Comício, averiguou-se que alguns tinham vindo bem de longe e recebido dinheiro para o efeito.
Para registo, transcreve-se o texto do comunicado de apoio, emitido pela Comissão Central do MDP/CDE, logo às 6h da madrugada da noite de 16 para 17 de Agosto de 1975:
O comício realizado pelo PCP, em Alcobaça, com a presença de Álvaro Cunhal, seu Secretário-Geral e ministro sem pasta dos quatro primeiros governos provisórios, marca uma nova escalada de violência reaccionária. As liberdades encontram-se ameaçadas. Mas quem as ameaça são os mesmos que durante quase 50 anos, as retiraram do povo. Em Alcobaça, os comunistas tiveram de defender o direito de reunião. Ao defenderem-no para si, neste caso concreto, estavam-no defendendo para todos os democratas, estavam defendendo as liberdades conquistadas após o 25 de Abril. Tiveram de o fazer, respondendo de armas na mão à violência reaccionária, dando uma primeira imagem do que poderá vir a ser este País se continuarem as hesitações que paralisam as forças militares e militarizadas, se continuar por concretizar uma firme política repressiva sobre a reacção. Esta noite em Alcobaça, correu sangue; não apenas dos provocadores contra-revolucionários mas também de militantes progressistas. (…) O MDP/CDE saúda os comunistas que, com risco da própria vida, defenderam o seu comício, os seus dirigentes e a sua (nossa também) liberdade. O perigo do fascismo paira novamente sobre o nosso país. Não é um perigo imaginário, pois que as acções de violência dia a dia desencadeadas, não são inventadas. Aos partidos e organizações progressistas e ao MFA cabe um grande esforço para intensificar a sua unidade e a sua disposição de dar luta comum às forças reaccionárias e neo-fascistas que põem em perigo a nossa revolução. (…) Que todos os patriotas saibam tirar as devidas lições das provocações reaccionárias ao comício do PCP em Alcobaça.
É reconfortante ter amigos assim.
Ao começo da noite desse sábado de Agosto e de férias, Rosalina Martins, havia regressado com o marido Ricardo de um passeio automóvel, na companhia da amiga Teresa. Quando se preparava para a pé chegar a casa, situada perto do futuro Tribunal da Comarca, na esquina da rua Mariano Pina, viu muita gente, algumas pessoas que reconheceu, que se encontravam próximas do Pavilhão Gimnodesportivo. Para grande surpresa, ouviu vindo dessa zona, alguns tiros que lhe pareceram de caçadeira. Como lhe constava, assim como a muita gente de Alcobaça, que iria haver barulho no comício do PC, com a presença de Álvaro Cunhal, assustou-se e enervada, começou a dizer para o marido ai, que não vejo mais os meus rico-filhos! Este, apesar de ser pessoa normalmente calma, mas nesse momento enervado, disse-lhe peremptoriamente para se calar, senão ainda levas um par de chapadas. Rosalina calou-se, acalmou-se e depois supôs que os tiros vindos do lado do Pavilhão e do seu interior, se destinavam a assustar e dispersar as pessoas que o estavam a cercar com a finalidade de boicotar a sessão.
A partir das 22h, encontrando-se em casa, notou que se continuava ainda a juntar mais gente no exterior ao Pavilhão, de ares ameaçadores e vozes exaltadas.
Era mais uma agradável noite de Agosto português. Os acessos ao Pavilhão, a partir da Escola Primária, encontravam-se cortados com barricadas, compostas dos mais variados objetos. Na opinião de Rosalina Martins e marido, este corte de estrada, tinha relação com o facto de se pensar que Cunhal, indo ao comício, teria de passar necessariamente por ali para sair. A certa altura, ouviu-se um conjunto de rápidos disparos de arma de fogo que, parecia ser de metralhadora. Rosalina que confessa nada saber de armas, não pode identificar a sua natureza, mas viu muitas pessoas a atirarem-se para o chão. Encontrava-se a ver, através dos estores da casa, a roer as unhas e com as luzes apagadas. Acontece que, depois dos disparos, uma pessoa ficou estendido no chão, sem se levantar. Disse então para o marido que deveria haver ali um ferido grave, senão mesmo um morto.
Ao fim de alguns minutos, umas pessoas bateram à porta de entrada da casa. Tendo ido abri-la, constatou que se tratavam de três estrangeiros a falar inglês, e a pedir ajuda para um ferido que vinha em mau estado. O marido que tinha alguns conhecimentos de inglês, abriu-lhes a porta e deixou-os entrar. Apurou-se, que se tratava de repórteres canadianos, e que o ferido, era um colega que além do ar assustado, tinha a cara coberta de sangue e alguns estilhaços do que veio a saber ser os restos de uma máquina fotográfica, que se partira. Foi-lhes explicado que o jornalista-fotógrafo, com o susto, tinha-se atirado para o chão, e na queda partiu a máquina, ferindo-se na cara. Os canadianos entraram em casa, mas não deixaram acender a luz, com o argumento que não queriam chamar a atenção, pelo que o primeiro curativo foi efectuado por Rosalina Martins na casa-de-banho, à luz de duas velas.
Terminado o comício, Rosalina ouviu dizer na rua que Cunhal conseguiu sair a pé, acompanhado de um grupo de fortes seguranças, “cubanos” que o protegiam e encobriam dos populares, muito pouco amistosos. Cunhal não saiu de carro, muito menos de ambulância, e ter-se-à dirigido para um ponto qualquer da estrada que passando pela Bemposta, vai dar a Aljubarrota e depois Lisboa.
O seu motorista, conhecido em Alcobaça, como o Pobre Homem, de onde aliás era natural e tem família, mas com quem não tem relações, estava à sua espera num ponto previamente combinado da estrada para o levar em segurança.
Segundo se soube mais tarde, sem aparato nem especiais cuidados de segurança, Cunhal terá vindo outras vezes à região de Alcobaça, para estar com os parentes do Pobre Homem, ou se encontrar com o proprietário da Farmácia do Juncal e respetiva família.
(CONTINUA)
FLEMING DE OLIVEIRA
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