quinta-feira, 6 de outubro de 2011

-MÉDICO, DENTISTA OU ENDIREITA? -COMO O JAIME DEIXOU DE SER GAGO.

FLEMING DE OLIVEIRA

Entre 1935 e 1953, houve uma farmácia nos Montes-Alcobaça, a Farmácia Machado, de António Ferreira Machado.
As farmácias não eram um bom negócio, pois não havia Previdência e as pessoas do meio rural tinham pouca capacidade económica, pelo que a farmácia veio a encerrar por falta de rentabilidade. Como se tal não bastasse, a lei já impunha a existência de um Director Técnico, que neste caso não era António Machado, que foi abrir uma outra em Pataias, que também não vingou, pelos mesmos motivos.

Médico por perto não havia. Chamar um médico de Alcobaça, era caro e difícil, pois além do mais tinha a despesa do taxi. Muitas vezes os tratamentos eram mesmo só de tipo caseiro com algumas mezinhas pelo meio. Como era o caso do Cobrão ou Zona, mal cutâneo mais frequente em crianças e adolescentes, e que se atribuía popularmente ao facto de se ter usado roupa por onde tinha passado bicho pessonhento (aranhão, sapo, osga, etc.). O mal só passava se fosse devidamente atalhado. Era preciso arranjar uma espécie de linimento formado pelo morrão de palhas misturadas com azeite, para esfregações diárias e recitar uma ladainha:
Eu te atalho bicho ou bichão//Aranhiço ou aranhão//Sapo ou sapão//Bicho de qualquer feição//Eu te corto a cabeça e furo o coração.
Dentista também não havia.
João Nogueira recorda ainda, com manifesto incómodo, a forma como se tratavam os dentes, nos seus tempos de rapaz. Lembra-se das dores de dente que ele e os mais antigos sofreram, casos em que uma cárie causava sofrimentos horríveis. Então chegava-se a utilizar arsénico para matar o nervo. Uma minúscula quantidade do veneno era colocada no buraco, tapado com cera de abelha. Segundo se dizia o problema ficava resolvido, mas só poucos tinham coragem de o fazer.

Veja-se agora o caso do Jaime Loureiro, falecido não há muito. Aí por fins dos anos 20, havia camionetas que traziam para os Montes mercadorias como madeiras, outros materiais de construção ou até mesmo vinho, e que eram conduzidas por motoristas que, normalmente, pouco tinham de delicados, dir-se-ia mesmo, algo brutos. Nesses tempos ou mesmo em alguns bem posteriores, para as conduzir, dado a direção não ser assistida e de terem um volante grande, era preciso ter força, o que não dispensava a presença de um ajudante para cargas e descargas, e também para coadjuvar algumas manobras.
Quando chegava uma camionete, era motivo de alegria da miudagem, que corria alegremente atrás, competindo a ver quem a acompanhava melhor. O Jaime era um rapaz reservado e que contrariamente aos colegas, gostava pouco de correr atrás das camionetes, pois não entendia ser isso um grande divertimento. Os condutores das camionetes, não gostavam nada de ter os miúdos a correr atrás, o que poderia ser perigoso. O Jaime um dia, acabou por finalmente se deixar convencer que era divertido correr atrás da camionete. Aconteceu porém, que a certa altura a camionete teve de meter travões a fundo, para não atropelar um cão e o Jaime, pouco experiente e que ia tão próximo, deu uma cabeçada no taipal trazeiro, caiu e rachou a cabeça. A partir daí, e enquanto se lembrou, o Jaime não quis mais correr atrás de camionetes. Passaram-se uns tempos e, curado, o Jaime foi novamente aliciado para entrar na brincadeira. Mas por uma questão de segurança, e para evitar novo acidente, foi aconselhado a postar-se de lado, em vez de nas traseiras, pois se a camionete tivesse de travar, tens sempre maneira de escapar. Assim quando apareceu a camionete, em vez de se colocar atrás, colou-se à porta do lado esquerdo. Mas o condutor que não era mais delicado que os outros, ao ver os miúdos a correr atrás, por pura malandrice, travou forte, e abriu a porta do lado esquerdo para ver o efeito, apanhando o Jaime em cheio na cabeça, e quase o matando.
O Jaime Loureiro, graças ao acidente, perdeu os sentidos e durante umas 2 semanas, ficou em casa estendido na cama, com a família à espera que recuperasse ou saber se Nosso Senhor o queria levar.
Médico não havia nos Montes, no Juncal ou Pataias, só em Alcobaça, e a família não tinha possibilidades de mandar vir um. Chamar um taxi para o levar a fazer uma radiografia no hospital, era também uma coisa fora de questão, pelas mesmas razões. Endireita também não havia nas redondezas, só para os lados de Porto de Mós. A verdade é que, ao fim de uns 15 dias o Jaime começou a recuperar aos poucos, e depois rapidamente. E o Jaime que nunca tinha sido gago na vida, quando recuperou totalmente e por si estava gago e assim manteve até ao fim da vida, tal como nunca mais correu atrás ou ao lado de outra camionete.

Nos meios rurais havia o costume ou a necessidade (económica) de ir ao endireita. Quando alguém partia ou deslocava uma parte do corpo preferia recorrer, não necessariamente por razões de dinheiro, mais a estes indivíduos reputados pela habilidade, do que ao médico.
Desde muito jovem que comecei a receber pessoas que tinham problemas em pernas, braços ou mesmo nas costas. Aprendi com um tio que também já fazia, mas nunca fiz disto profissão, contava Abílio Silva, regressado a Turquel vindo de Angola, onde estivera a trabalhar durante cerca de 20 anos, até ao 25 de Abril. Diz que nunca quis receber dinheiro, mas que as pessoas sempre lhe agradeceram. Antes de ir para Angola traziam-me produtos agrícolas e algumas pessoas chegavam mesmo a dar-me dinheiro mas eu nunca pedi nada, porque me dediquei ao negócio e foi daí que tirei redimentos, aludia o endireita.
Leite com mel ou limão e chá de urtiga ou de laranjeira são bons para a constipação e febre, diz por sua vez D. Ludovina Santa, de 83 anos. Ainda relembra os tempos em que era preciso pegar no cavalo ou na mula para ir ao médico ou então para o ir buscar. Há remédios caseiros para todos os males, defende, explicando que antigamente as pessoas raramente tinham acesso a outro tipo de medicamentos e melhoravam rapidamente. Se tomarmos chá e se fizermos algumas coisas que os nossos pais e avós nos ensinaram não temos problemas de estômago e ficamos curados, porque os químicos fazem mais mal que bem, sustenta com inabalável convicção.
D. Ludovina também diz que não há nada melhor remédio que as plantas medicinais do seu quintal. Cultiva algumas para dar aos filhos que vivem em Lisboa. Sempre lhes disse que em primeiro lugar devem recorrer ao tradicional e só depois aos médicos. Não que seja contra estes. Por exemplo, quando tenho uma ferida prefiro utilizar alguns produtos que a minha mãe me ensinou, do que medicamentos de farmácia e melhoro mais depressa.

Entre as poucas actividades que nos Montes havia no seu tempo de rapaz, José Pereira Machado recorda um ferrador de grande bigodaça, a oficina de ferreiro e serralheiro de José da Silva Ferreira, o estabelecimento de fazendas, miudezas, vinhos e azeites de Silvério Romão e o seu concorrente José Inácio Loureiro, a destilaria de aguardente de José Bento, e especialmente a personalidade de Joaquim Pereira de Magalhães, muito conceituado e senhor de estudos, pois frequentou o Seminário de Leiria. Este era dono de uma pequena fábrica de produtos resinosos, com alguns trabalhadores ao serviço, que explorava pinhais, bem como de uma loja que além de vender fazendas, e miudezas, era mercearia. Joaquim Magalhães ainda chegou a ter uma fábrica de tijolo burro e um gabinete em casa, com competência que lhe advinha dos estudos, para fazer os registos de nascimento e casamentos pelo civil (em Montes havia um posto/delegação da Conservatória do Registo Civil de Alcobaça), que um dia veio a ter de transmitir ao Professor Moniz Barreto. A vida dá, por vezes, grandes voltas, e Joaquim Pereira de Magalhães, havido como pessoa de bens, teve azares no negócio da resina e pinhais que o levaram a abandoná-lo, indo trabalhar como archeiro na Universidade de Coimbra. Em casa, recebia estudantes, como foi o caso do alcobacense Dr. Henrique Trindade Ferreira, a cursar medicina, que se veio a tornar especial amigo do Dr. Amílcar Magalhães (não obstante as diferenças ideológicas). Joaquim Pereira de Magalhães e esposa D. Joaquina, conseguiram, com muito esforço e mérito dar cursos de Direito a dois filhos, Asdrúbal Pereira de Magalhães (com escritório de advogado em Leiria) e Amílcar Pereira de Magalhães (com escritório em Alcobaça).


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