(I)
-BULHÃO PATO
-AS SUPERSTIÇÕES
-OS PADRES TAMBÉM SÃO
SUPERSTICIOSOS E VÃO PARA O
INFERNO?
-HISTÓRIAS DE CAÇADORES DE
ALCOBAÇA, CASTANHEIRA E
ARREDORES
FLEMING DE OLIVERIA
Bulhão Pato em Fevereiro de 1893 escreveu, de Monte da Caparica, este texto delicioso que não resistimos em transcrever:
Alexandre Herculano, quando via na sua mesa um pão com o lar para cima, ia muito depressa e voltava-o. Nos primeiros tempos que estive em sua casa notei esta circunstância e olhei um dia para ele interrogativamente.
Ele, sorrindo, respondeu:
–Em criança disseram-me que um pão, posto assim, era sinal de morte na família. Não lhe resisto; a educação é uma grande natureza.
Eu era muito rapaz; o caso repetia-se, sempre que havia pão voltado, e tomei-lhe o hábito. Herculano meteu-me este enguiço.
Outro-e por fatais exemplos!-foi o meu co-irmão, o Dr. José de Avelar, que mo sugeriu.
Em 1860 estávamos no Vale de Santarém, Francisco Maria Bordalo, D. Diogo de Vasconcelos, José de Avelar e eu, em casa de Rebelo da Silva. Um filho da viúva Caldas, que fora meu companheiro no colégio do Quelhas, convidou-nos para jantarmos numa propriedade sua – Malpique. Soberba propriedade.
Num dia deslumbrante, partimos todos, a cavalo, lezíria dentro, para a quinta do nosso hóspede. Nos tapizes de relva os malmequeres e as margaridas; nos trigais tenros e lanciolados as âmbulas purpurinas das papoilas e toda a campina encrespando-se suavemente, como o mar chão e esmeraldino, arrepiado por uma leve aragem. O Tejo, que trasbordava com a invernia, enchendo as valas, alongava os braços prateados pelas ínsuas, sob os salgueiros recarvos e já frondeados. O ar vivo, as planuras do campo, animadas pelas manadas de poldros relinchantes, de novilhos brincões, e de toiros, de cabeça alta, alegres e mansos na sua plena liberdade; o globo rutilante do Sol, iluminando a imaculada esfera, produziam em todos nós o desafogo e bem-estar que, mais do que em parte alguma, se dá no fecundo regaço da natureza! Chegou a hora do jantar, que o nosso estômago acusava já de tardia. Quando íamos sentar-nos à mesa, José de Avelar-tinha ele então os seus vinte e cinco anos e era um raro exemplar de beleza masculina, tão viril como correcta-disse para Bordalo e para mim:
–Olhem que somos treze!...
Bordalo que, apesar de marinheiro, não tinha nenhum desses preconceitos, respondeu, rindo:
–Pois tu acreditas nisso, José?
–Não acredito; mas que queres...
E sentou-se visivelmente perturbado. O jantar correu alegre. O sogro de Rebelo da Silva, fidalgo no berço e no carácter, fazia parte dos convivas. Passava dos sessenta, porém, sadio e robusto; Bordalo não tinha ainda quarenta anos e não acusava lesão alguma. Antes de completo o ano, morria o sogro de Rebelo e, a pouco trecho, Francisco Maria Bordalo.
José de Avelar dizia-me:
–Olha que éramos treze em Malpique!
Deram-se-nos depois mais casos análogos; mas vamos ao derradeiro.
Alexandre Herculano fazia anos a vinte e oito de Março. Nesse dia, os seus amigos mais íntimos iam jantar com ele. Em 1877, na véspera dos anos do mestre, João Pedro da Costa Basto e eu chegámos a Vale de Lobos. No dia seguinte, apareceram Henrique Augusto de Sousa Reis, o marquês de Sabugosa e José de Avelar. Havia mais convivas. A srª D. Mariana Hermínia Meira, mulher de Alexandre Herculano, desde pela manhã que sentira os rebates de uma enxaqueca, a que era atreita, e que lhe não passava senão ao cabo de vinte e quatro horas largas. Próximo ao jantar o ataque aumentava. Uma hora antes de irmos para a mesa, Avelar disse a Herculano:
–Olhe que somos treze!
O mestre, que tinha o enguiço do pão voltado, como homem justo em tudo respeitava os dos outros.
–O pior, meu amigo, é que não vejo agora que volta se lhe dê.
A senhora de um lavrador vizinho do Vale, senhora simpática e íntima da casa acudiu logo:
–Tudo se arranja facilmente. Eu mando à quinta buscar a minha filhita.
Assim se fez. Descemos à casa de jantar. Ainda se não tinha servido a sopa, quando vimos, no rosto da dona da casa, que aumentava o seu mal-estar, e todos, com seu marido, instámos para que se retirasse. Era apenas uma indisposição, que não dava o minimo cuidado, e o jantar principiou alegre; mas o dr. José de Avelar, que se assentara ao pé de mim, disse-me, muito baixinho:
–Sempre ficámos treze!
Alexandre Herculano esteve esplêndido, como nos dias da mocidade. Mais uma vez todos o admirámos comovidos! Demorou-se a palestra até tarde. O marquês de Sabugosa, Sousa Reis e dr. Avelar partiam no comboio da madrugada. João Pedro da Costa Basto e eu ficámos por mais dois dias. No último dia, ao jantar, contei umas anedotas, que deram no goto ao mestre. Riu, do riso franco e prolongado, que lhe era peculiar. Chegou o trem que devia conduzir-nos ao comboio da tarde. Herculano, na melhor disposição de espírito, veio acompanhar-nos até à caleobe. Quando o carro partiu, uma nuvem envolveu subitamente o espírito de João Basto, e tal foi ela, que a muito custo conteve as lágrimas.
–Se não fosse-disse ele-a necessidade impreterível de estar amanhã em Lisboa, voltava para trás.
Ruim pancada lhe bateu o coração! Era a última vez que apertava a mão do seu grande amigo! A 13 de Setembro de 1877, sobre as dez horas da noite, Alexandre Herculano expirava na sua casa de Vale de Lobos. Dias antes, José de Avelar-depois de haver observado o enfermo com olho de médico-entrou no gabinete de trabalho do mestre. Deixou-se cair desalentado sobre a cadeira onde Herculano se assentava para escrever e, passando a mão pela testa, nesse momento húmida de suor, disse-me:
-Éramos treze, no dia dos anos dele!
O seu funesto prognóstico resumia-se nessas palavras! De então para cá não tornei a sentar-me a mesa alguma com treze pessoas.
O Pe. Vergílio apreciava gatos (contrariamente ao Pe. Brigalheira de quem já falámos) e tinha um.
Afirmava que acariciar um gato atrai a sorte, ter um gato em casa atrai a fortuna e que se um pão cair no chão, deve ser beijado por quem o deixou caír, porque está lá Nosso Senhor e assim não faltará comida ao desleixado. Fez, segundo constava, o ensino primário na sua aldeia da Beira-Alta. Entre os cinco e os seis anos, frequentou a escola das meninas, porque o seu pai conhecia a professora. Desse modo, pôde familiarizar-se com as letras e os números, em boa companhia. A companhia das raparigas garantiu-lhe mesmo a passagem directa para a segunda classe bem como a facilidade e gosto de em adulto lidar com mulheres. Em todos os anos lectivos, foi sempre o aluno mais novo. Acabou por ter as suas vantagens, mas penso que me faltou um ano de brincadeiras, confessava a algumas pessoas mais chegadas.
Para continuar a estudar, o Seminário de Viseu era a única possibilidade. A vocação não seria profunda. Rezava muito bem, garantia muito mais tarde, muitos padre-nossos e ave-marias, segundo o preceito. A vida no Seminário não era muito fácil devido, em especial, as regras de conduta impostas ao seu funcionamento diário. No entanto, para alguns, como ele, isso não foi grande problema. Os anos que ali passou permitiram-me adquirir regras de comportamento e de atitude que foram úteis enquanto decorreram os estudos e, mesmo, para a vida, dizia também sem consciência de hipocrisia.
O contacto com a natureza fazia parte da rotina do dia a dia no Seminário, o que aliás não era estranho ao seminarista Vergílio e facilitou-lhe a integração. Ao lado do Seminário, havia uma quinta que os alunos frequentavam, onde além de produtos da terra como legumes e vinho, tinha uma vacaria. O Pe. Vergílio gostava de recordar a junta de bois que puxava o carro, a charrua ou o arado, guiada pelo criado, apoiado pela aguilhada com o respectivo aguilhão na extremidade. E tendo em conta a sua origem e formação, invocava saberes tão simples como o que sendo o arco-íris um bom prenúncio, conseguir ver ao mesmo tempo as pontas do arco-íris é um sinal muito favorável, ou que ver ou ouvir um pica-pau significa chuva, tal como se as formigas estiverem muito ocupadas.
Altino Ribeiro, embora nunca tivesse sido pessoa frequentador da igreja, nada tinha contra os padres, e dava-se bem com o Pe Vergílio. Encontravam-se para conversar e, de vez em quando, até para caçar coelhos ou perdizes. Além da pesca Altino também apreciava a caça. Num determinado dia, antes de saírem para a caça, armas, cães e farnel preparados, bem como tudo o mais que cumpre, o Pe. Vergílio anunciou que, dessa vez, iria levar um furão. Como se sabe, em Portugal, é ilegal ter furões, mesmo como animais de estimação, devido a lei da caça não permitir que estes animais sejam utilizados para caçar, sem uma licença. Não existe, todavia, qualquer diferença entre os furões utilizados para a caça e os furões como animais de estimação.
-Eu sei que é proibido, mas sempre ajuda a apanhar um coelho, acrescentou o Pe. Vergílio.
-Oh Senhor Padre, se levar o furão eu não saio, respondeu Altino. Não quero ter problemas com a Venatória.
Perante esta firmeza, o furão ficou mesmo em casa. Depois de dados uns uns tiros com mais ou menos pontaria encontraram, a meio da manhã, os guardas da Venatória que os mandaram parar. O Padre ainda tentou evitá-los, enquanto Altino ficou a pequena distância a assistir com muita curiosidade à conversa, durante a qual aquele tentava convencer os guardas que, enquanto sacerdote, estava dispensado de licença de uso e porte de arma de caça, razão porque a não tinha.
Na Castanheira, com o Fernando Gomes Salgueiro aconteceu por alturas dos anos sessenta um caso interessante. A caça de perdizes era bastante vulgar, pois estas ainda não faltavam. Muitos da Castanheira, como aliás em todo o País, iam caçar, levando consigo os seus próprios perdigueiros.
Fernando Gomes Salgueiro tinha um cão considerado de fidelidade máxima. Durante uma caçada o cão desapareceu. Não voltou para o dono como era habitual. Apesar de chamado insistentemente, não apareceu. Cansado de esperar e cheio de desgosto, Fernando Gomes resolvou dar a caçada por terminada e voltou para casa sem o animal. No ano seguinte com a abertura da temporada, lá foi caçar no mesmo local do ano anterior. Para sua surpresa, ao lá chegar encontrou o esqueleto do cão, junto aos restos de uma perdiz. Ficou bem evidente que o cão tinha morrido de fome sem comer a caça. Gomes é do tempo do terreno dito livre, como gosta de dizer, que o era por haver caça e não excesso de caçadores, como também o é já também do tempo das coutadas, cuja existência defende. A caça, alega, tem que ter um dono, como as cabras, o que é de todos não é de ninguém, como o mel dos enxames silvestres que ninguém aproveita.
CONTINUA
(II)
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FLEMING DE OLIVERIA
Mas também há quem goste mais de caçar sozinho, como Luís Pires, dos Carris. Nas suas caçadas de muitos anos normalmente solitárias, acha agradável não ter obrigação de seguir por aqui ou por ali, progredir a bel-prazer, parar ou andar, falar em voz alta com os cães, com as peças de caça, ou com as fragas e as árvores. Não ter que interromper o acto, alimentar-se frugalmente com o que a natureza dá, figos, uvas, maçãs, peras, marmelos, nabos, tomates e outros frutos esquecidos, como laranjas, tangerinas, tudo honestamente roubado sem exageros e sem desrespeitar a propriedade alheia. Nisso é intransigente. Na caça, tudo complementado com o indispensável naco de pão, queijo duro, uma fatia de presunto ou linguiça.
Manuel Deodoro, de Turquel, conta muitas histórias de caça, ocorridas consigo e amigos ao longo de mais de quarenta anos de espingarda nas mãos. Caçava normalmente com um grupo de mais dois ou três colegas, seus vizinhos, inclusivamente no Alentejo. Alguns metros à frente, conta ele, vejo a pointer marrada de nariz ao alto. Aproximo-me calma e silenciosamente. A pointer vai olhando pelo canto do olho, dá 2 ou 3 passos e estaca de novo. De repenta salta uma perdiz e logo ao primeiro tiro acerto em cheio e prego com ela no chão. A pointer arrancou e trouxe-me a ave à mão. Linda, dá cá, faço-lhe uma festa, depois de retiro-lhe a perdiz e dou-lhe a cheirar o troféu. O animal abanou alegremente a cauda, cheio de satisfação.
Ainda nesse dia mais à frente, aconteceu outro lance interessante com Manuel Deodoro. O António Manco, dono de 2 de dois excelentes cães de caça, estava com ele e com outro coldega. Um dos cães levantou uma lebre jovem e bastante pequena. O Manco pegou prontamente na arma e preparou-separa lhe desferir um tiro. Mas o Manuel gritou-lhe de imediato: Não atires, a lebre é nova e vamos ver se consegue escapar. Os cães desataram no seu encalço e depois de voltas e quebras de rins, a pequena lebre, certamente já muito cansada, acabou por se deixar agarrar, já dentro de um vinhedo. Apesar dos gritos do António Manco, os cães não lhe obedeceram e acabaram por cobrar a lebre.
Os caçadores, comos pescadores, têm mil e uma histórias, algumas verdadeiras, outras assim-assim ou até pura ficção, mas que contadas com alma e emoção deixariam as suas vítimas com lágrimas nos olhos ou com uma revolta maior que a terra queimada num incêndio de verão. Manuel Deodoro pode afiançar-nos que o seu relato … é a verdade verdadinha, que eu vi com estes olhos que a terra há-de comer, assim Deus me salve a alma, e ainda há por aí muito povo de Turquel que não me deixa mentir. Seja como for, o nosso leitor perceberá logo que essas narrativas são histórias e que as histórias podem ser aquilo que dissemos atrás, mesmo com Manuel Deodoro, e até podem começar com o tradicional era uma vez a que, no caso, se pode acrescentar nos bons tempos em que havia perdizes. Para Manuel Deodoro, a caça foi sempre antes de mais um ritual, tal com para outros aficcionados seus colegas, a subir montes e vales, calcorreando quilómetros, andando a pé, muitas vezes sem resultados práticos que não sejam umas tainadas com farnel preparado em casa (isso sim mesmo importante…). Foi esta uma das boas razões para quem caçava como Manuel Deodoro. Juntar-se com amigos, conhecer bonitas paisagens e comer uns petiscos. Deodoro porém nunca gostou de caçar com padres, pois acredita que estes não dão sorte aos caçadores, por acompanharem os mortos ao cemitério. Contudo, conheceu casos de homens que antes de partirem para a caça se benziam e pediam a bênção para afastar os agouros e azares.
Mas nem só de perdizes vivia a caça de Deodoro e amigos, sendo recorrente a sua afirmação de que perdiz que canta não espera. Durante várias décadas, o coelho bravo foi também uma caça se não predilecta, mas importante para si e outros caçadores. O coelho bravo era um complemento alimentar de muitas famílias do mundo rural, devido à sua abundância e facilidade de captura. Nas últimas décadas, temos assistido a um decréscimo acentuado das populações desta espécie, devido essencialmente às alterações do meio, aos predadores, ao esforço de caça e às doenças.
Não há ainda muitos anos, era costume pelo Natal, no fim da missa, as pessoas fazerem fila para, em frente ao altar, se ajoelharem a beijar uma imagem do Menino Jesus, normalmente no pé. Há quem diga, à margem de outro argumento mais consistente, que a prática não era muito higiénica e, por isso, a recusavam, apesar de o sacristão passar de cada vez, uma toalha para limpar os restos de saliva ou os perdigotos que alguns, mais gulosos ou ávidos, lá deixavam. Num Natal, do início dos anos sessenta, o uso cumpria-se em Alpedriz, com o povo postado ordeira e piedosamente para beijar o pé do Menino. O Pe. Vergílio, que conhecia por dentro e por fora a vida de todos os paroquiano(a)s, descortinou na fila, através do véu, uma muito compenetrada senhora, quarentona e em bom estado, que já há algum tempo se tentava insinuar junto dele, embora sem sucesso. Ele não queria nada com ela, pois tinha sempre disponíveis, raparigas novas e fresquinhas. Todavia, o Pe. Vergílio não conseguiu evitar fazer-lhe publicamente uma maldade. Qual? Quando chegou a vez dela, retirou-lhe ostensivamente o Menino Jesus, o que criou um grande surúrú, especialmente entre as pessoas que não perceberam a razão do insólito gesto.
Por estas e por outras, havia também muita gente que não gostava do Pe. Vergílio e dizia mal dele. Mas ele não se preocupava com isso e tinha um argumento eficaz e sempre pronto. Quando a orelha aquecia e rosava de repente, isto é, de acordo com a tradição popular porque alguém estava a falar mal dele, o Pe. Vergílio começava a dizer rapidamente o nome dos suspeitos, em voz alta (fosse onde fosse) até a orelha parar de arder ou perder a cor. Para aumentar a eficiência do contra-ataque, o Pe. Vergílio mordia mesmo o dedo mínimo da mão esquerda, para que o sujeito maldizente mordesse a própria língua… As paroquianas mais chegadas achavam muita graça a estes trjeitos. Parece correcto concluir que podemos (Padres e laicos) ignorar muitas superstições, usos ou costumes antigos que deixaram de ter sentido hoje em dia, tais como rituais e prenúncios ligados à feitura manual de feno, a crença de que encontrar um limpa-chaminés é um bom sinal ou que os amola-tesouras e facas trazem chuva.
Porém, ainda permanece um número surpreendente de prenúncios úteis, nos quais as pessoas acreditam, no início do racional e cientifico século XXI.
Durante a vindima, uma rapariga ao retirar o lenço do bolso do avental, deixou inadvertidamente e sem se aperceber, cair ao chão um papel. As colegas trataram de ver logo o que nele estava escrito, antes de o devolverem. E para enorme gáudio e surpresa, constataram que lá estava ajustado, para o dia seguinte, um encontro com o Pe Vergílio, que só poderia ser de amor. O facto correu célere, não tanto por ser interveniente o Padre, o que não seria novidade, mas por ser com a rapariga, noiva e acima de toda a suspeita. Assim, os seus familiares, para lavarem a honra maculada, foram queixar-se ao Bispo de Leiria, que, possivelmente à espera de uma oportunidade, resolveu castigar o Pe. Vergílio, mandando-o coadjuvar um outro, numa terra do Ribatejo. Segundo conta Altino Ribeiro, nessa localidade, o Pe Vergílio, voltou a ter sarilhos de saias, pelo que ali esteve pouco tempo, até ser nomeado capelão militar e enviado para Angola.
O Pe. Vergílio faz-nos recordar neste momento, salvo as devidas proporções, um seu (quase) conterrâneo. Saiba-se que o maior progenitor do País, terá sido um Padre, que gerou 299 filhos. A heresia que ocorreu no século XV, em Trancoso, terá tido também pelo meio um nada comedido consumo de vinho do Dão. Diz o povo que com o primeiro copo o homem bebe vinho. Com o segundo, o vinho bebe vinho. Com o terceiro, o vinho bebe o homem. Diz-se também que, quem bebe bem, dorme bem e, quem dorme bem, pensa bem. Quem pensa bem, trabalha bem e, quem trabalha bem, deve beber bem. Mas em Trancoso, um houve um padre, que dizia que beber vinho, para mim, pode ser o caminho do pecado, mas transporta-me para o afrodisiasmo. Mas o padre de Trancoso, de nome Francisco Costa, ia mais longe. Recordava ao Bispo, aos maridos, namorados ou irmãos, por descargo de consciência, que Cristo disse: Crescei e multiplicai-vos. Foi quanto bastou ao padre Costa, que viveu pelo século XV, para ser tido até hoje como o mais prolífero progenitor português. Ao todo, contaram-se-lhe 299 filhos, concebidos em 53 mulheres, sendo 214 raparigas e 85 rapazes. A sua capacidade reprodutora, assente numa ilimitada libertinagem e no o vinho, chegou a ser condenada por um tribunal, naturalmente com uma sentença medieval. Foi arrastado pelas ruas, preso ao rabo de cavalos, para depois ser esquartejado aos quartos, sendo que a cabeça e as mãos depositadas em diferentes localidades.
Damião da Agonia tinha uma interessante faceta. Um belo dia um grupo de senhoras que organizavam a festa de Santa Marta, talvez por sugestão do Pe. Vergílio, dirigiram-se a casa do Sr. Damião a pedir-lhe flores do seu jardim, junto casa. Ele respondeu-lhes muito delicada, mas firmemente, que não, não dou nem uma flor, porque as só flores são belas no jardim, e os jardins só são bonitos quando têm flores. Mas as senhoras e o senhor padre que não me levem a mal, têm aqui o dinheiro necessário para comprar flores, que não faltem na nossa capela, nem no andor que quero com muitas flores. Quero que este ano a festa tenha muitas e bonitas flores, mas as flores do meu jardim não chegariam para nada.
Os padres também vão para o Inferno?
Altino Ribeiro diz que um padre das suas relações lhe confidenciou que estava convencido que, quando morresse, ia para directo para o Inferno, tal como as línguas das freiras (porque são muito cuscuvilheiras…). Altino respondeu lhe que não tinha razão, além de que tinha muito gosto em defender a reputação delas, aliás suas cunhadas.
-Mas vc. tem alguma freira cunhada?, perguntou-lhe admirado o padre.
-Tenho muitas, não uma, pois para a minha mulher elas são todas irmãs.
Nestas notas, quando abordamos alguns factos antigos relacionados com sacerdotes, não os pretendemos ridicularizar, nem diminuir. Estamos a falar de homens, em geral estimáveis, mas cuja vocação não nos permitimos em caso algum discutir (em muitos casos nem os próprios então a discutiam… com seriedade), embora pensemos que se enveredaram por esse munus, tal poderá ter sido fundamentalmente devido à falta de opções de outro tipo. O seminário foi durante larguíssimo período de tempo, o local que independentemente da vocação relativamente à qual não era muito exigente, permitia a rapazes de grupos sociais mais desfavorecidos, limitados e/ou rurais, o acesso ou trampolim a estudos, doutro modo impossíveis. E se o futuro sacerdote, embora estimável, não possuísse a devida vocação (em termos de Fé), haveria de naturalmente ter no seu dia a dia de adulto, todo um conjunto de características de ordem comportamental (como a não aceitação do celibato e o despreendimento material), cuja cedência se aceitaria mais benevolamente se se tratasse de um laico. Hoje, ser sacerdote, pressupõe em geral uma vovcação consciente. Por isso, entendemos que para a Igreja, o problema do nosso tempo não é tanto a mera falta de vocações para o sacerdócio, mas a verdadeira exigência que cada candidato faça si próprio, antes de o assumir. Hoje em dia, poderíamos dividir o tempo da vida no Seminário em dois períodos distintos:
Um, caracterizado pela forma tradicional de o gerir, cuja filosofia poderia ser sintetizada em quantos mais alunos entram, mais padres saem. Outro, caracterizado por uma mudança de filosofia na pastoral vocacional. Menos alunos, entrados com mais idade, melhor preparação e motivação, dão na recta final, em menos tempo e com menos gastos, talvez melhores padres.
A aplicação deste princípio levou a que uma parte dos seminários fechassem ou ficassem sem número suficiente de alunos e ao argumento, redutor, que há menos vocações.
Mas voltemos ao tema da caça. Há anos vivia em Chiqueda, um indivíduo violento que era temido pelos vizinhos e tido por pessoa de mau carácter. Gostava de brigar, de beber (dizia-se que tinha mau vinho) e de caçar, o que neste caso fazia sem critério, pois tudo o que lhe aparecia à frente poderia ser abatido, mesmo em tempo de defeso. Um dia, em pleno mês de Agosto, foi encontrado por uma patrulha da GNR que, perante a manifesta infracção às leis da caça, lhe pediu a identificação. O nosso homem apontou para o interior dos canos da arma com os dois dedos da mão direita e respondeu, ao guarda com sobranceria, que a sua licença ali se encontrava… Perante isto, o GNR nada mais acrescentou e, mandou-o seguir. Mas adiante, quando o homem já se encontrava a um distância superior à da sua capacidade de tiro, o GNR apontou-lha a respectiva arma (que atingia com eficácia uma distância de mais de um quilómetro), mandou-o parar, pousar a arma e chegar até ele devagarinho e, sem ondas. Então deteve-o para o fazer apresentar e prestar contas em Tribunal.
Por algumas fotografias que nos chegaram, por memórias pessoais ou até transmitidas de familiares, poderemos recordar casas, ruas, pessoas e cenas do quotidiano rural de um lugar como Montes, um espaço integrador e apesar de tudo com poder afectivo. Era um mundo de trabalho, aonde se impunha a par de pequenos prazeres a cultura da vinha, pois estava ainda longe o tempo dos grandes pomares, não havia indústria nem serviços, aliás como agora, salvo o café ou as bombas de gasolina. As histórias da vida contavam-se na taberna, entre dois de branco ou tinto, e nos mexericos das comadres à porta ou à janela, na saída da missa ou nas festividades religiosas. Era um ambiente de mosto em Outubro, fumos de lareira a preparar os enchidos depois da matança do porco. Era um tempo em que havia miúdos a correr despreocupadamente na rua aonde só transitavam carros de bois e bicicletes, o que justificava um olhar desconfiado sempre que aparecia um estranho. Era um tempo em que em fins de Agosto de um ano longínquo e quente, as uvas estavam bonitas, e assim parecia que se podia começar a vindimar. O pai do Ti’ Manel da Costa, então com uns cinco ou seis anos, tirou um bago do cacho que este acabara de colher, deu-lhe a provar. Trincou e logo cuspiu, era azedo. Assim, o Ti’ Manel começou aos poucos a perceber que tudo tem o seu tempo, obedece a regras, Lei suprema quer para a Natureza, quer para a sociedade, que é outra forma da Natureza. Quem não respeita as regras é desordeiro. Mas quem sempre as põe em causa e delas troça, é ateu a infectar os que estão por perto.
Era um mundo onde não estava arredado um sentido de hospitalidade, para com os de fora. Era isso mesmo o que o regime queria e fomentava, se possível para sempre, em prol do bom povo português.
Era um mundo onde paradoxalmente se citava de vez em quando o provérbio, tal como nos recordou Manuel Carolino que, sol que nasce cedo, mulher que sabe latim e padre que ama o bom vinho, nunca terão bom fim…
FLEMING DE OLIVERIA
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