segunda-feira, 3 de outubro de 2011

NO CENTENÁRIO DA IMPLANTAÇÃO DA REPÚBLICA CLAROS E ESCUROS



Fleming de Oliveira
(I)


Há na História momentos que marcam a vida dos Estados e dos Povos, sendo há cem anos a implantação da República Portuguesa, um deles.
Os tempos difíceis e incerteza que correm, não justificam a nostalgia ou o repúdio da I República, mas um assinalar consciente, equilibrado, onde não há que optar, meramente, entre o bom e o mau, que permita a afirmação de grandes ideais e possa conduzir a uma inspiração, fundada nos valores essenciais daquela.
Cem anos após a proclamação da República, alguns políticos continuam reclamar respeito pelos ideais republicanos. A sua motivação, no entanto, é diferente daquela que levou José Relvas, Teófilo de Braga ou Afonso Costa e seus correligionários, a depor D. Manuel II.
Nessa altura, ser republicano era ser contra a monarquia, querer acompanhar as mudanças do mundo, os ventos da História, modernizar Portugal, incentivar a indústria e o trabalho assalariado. A República havia de resolver os males da Nação, mas existiria, principalmente, para assegurar que o poder emanaria do Povo e que seria exercido de forma temporal e por representantes eleitos.
Hoje, com os escândalos de corrupção ocupando as manchetes dos jornais e a abertura dos telejornais, ser republicano foi popularizado por uma certa esquerda, com significado pouco preciso, alegadamente defender uma visão do Estado e da coisa pública de forma radical e transparente, no campo da gestão e da legislação, compreender o papel da questão democrática e saber incorporar os elementos da cidadania na sociedade, colocar o interesse comum acima dos interesses colectivos/particulares, velar para que a comunidade saia beneficiada e não apenas alguns.
O ideário republicano, forjado na luta contra os regimes absolutistas e ditatoriais assumiu, como matriz, a exigência do primado da Lei, perante a qual todos são iguais. A primeira missão do Estado Republicano será garantir a imparcialidade e equidade na aplicação da lei. A luta contra a intolerância religiosa conduziu os republicanos a defenderem a separação entre a Igreja e o Estado, proclamando a liberdade religiosa.

As palavras têm história, e a de republicano é longa e complicada. Remonta à Roma Antiga, quando o regime da res publica – sem um único soberano e de atenção à coisa pública, ao bem comum, à comunidade – substituiu o dos reis, a mona archia – o governo de um só homem. De palavra que designava oposição à monarquia, a palavra republica passou, nos séculos seguintes, a conceituar qualquer sistema, inclusive o monárquico, em contraposição a governos injustos.
O comunismo propiciou o aparecimento das repúblicas populares, onde a democracia representativa deu lugar à ditadura do proletariado. Houve a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, como há ainda a República Popular da China e a República de Cuba. Cumpre salientar os sistemas africanos de estrutura tribal ou não, provenientes da descolonização, que também se auto intitulam repúblicas, como o Congo, o Uganda ou Angola. Ou seja, todos eram ou são republicanos – de Thomas Jefferson a Lenine, Fidel Castro a José Eduardo dos Santos.
No século IV (a.c.), surgiu em Atenas a primeira concepção de sociedade perfeita, utópica, que se conhece. Tratou-se do diálogo A Republica (Politeia), escrito por Platão, conhecido discípulo de Sócrates. As ideias expostas, o sonho de uma vida harmónica, fraterna, que dominasse o caos da realidade, servirão, ao longo dos tempos, como a matriz inspiradora de todas utopias aparecidas e da maioria dos movimentos de reforma social que desde então a humanidade conheceu.
Pode haver consenso para uma palavra que perdeu o significado preciso? Assim, quando alguns batem no peito e se dizem republicanos, não sabemos o que querem dizer. Como o regime constitucional português deixou de ser monárquico em 1910, e não parece haver no horizonte uma ameaça de reinstauração, é equívoca a sua adopção e a insistência na utilização. Talvez não queiram dizer nada e tudo não passe de uma expressão retórica, sem grande conteúdo.
Se desejam afirmar-se partidários da democracia representativa, é uma expressão inadequada, visto haver monarquias bem mais democráticas do que muitas repúblicas, como a Inglaterra e Países Nórdicos. Mas não é impossível que, por trás do termo que serve de abrigo a tanta imprecisão, alguns escondam ainda a vontade de instituir uma res publica de carácter popular, como a China, a Cuba, Coreia do Norte, a ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Para evitar mal-entendidos, recomenda-se aos nossos políticos que abandonem conceitos vagos. Ser assim republicano pura e simplesmente não tem em si especial sentido ou mérito. E sentido, é o que a política portuguesa precisa.

O movimento revolucionário de 5 de Outubro de 1910 deu-se na sequência da acção doutrinária e política que, desde que foi criado o Partido Republicano-PRP, em 1876, vinha sendo desenvolvida por este, com o objectivo principal, desde cedo, da mera substituição do regime. Este propósito visava não antagonizar a pequena e média burguesia (urbana), que se tornaria uma das principais bases de militância republicana.
Esta operação pretendia fazer do derrube da monarquia uma mística messiânica, unificadora, nacional e acima de classes, moldado pela filosofia positiva de Auguste Comte, da qual Teófilo de Braga foi um dos grandes divulgadores entre nós. Esta era a panaceia que deveria curar de uma vez os males da Nação, reconduzindo-a à glória, e que foi acentuando cada vez mais duas vertentes fundamentais, o nacionalismo e o colonialismo.
Ao fazer depender o renascimento nacional do fim da monarquia, o PRP punha a questão do regime acima de qualquer outra. Ao encaminhar a sua acção política para esse objectivo o partido simplificava o seu último fim, pois obtinha ao mesmo tempo outros resultados, demarcava-se do Partido Socialista, que defendia alguma colaboração com a monarquia, em troca de regalias para a classe operária, atraía a simpatia dos descontentes e adquiria maior coesão interna, esbatendo divergências ideológicas entre os seus membros.
Mas a violência nas ruas atingia em breve pontos sem precedentes e eram elevados os prejuízos em vidas humanas, bens, energias e tempo. Além das baixas causadas pela I Guerra, pelo menos três mil ou, possivelmente, quatro a cinco mil portugueses morreram em consequência de conflitos civis durante a I República e milhares de outros ficaram feridos. Houve a detenção e o encarceramento de milhares de cidadãos, monárquicos e republicanos, muitos deportados para as colónias.
Apesar da agitação social republicana, com várias ameaças de sublevação, o governo/regime pouco se preparou, mesmo com a consciência de que o perigo era bem real. A Rainha D. Amélia, por exemplo, teve percepção do largo apoio que os republicanos congregavam, pois as suas demonstrações de força nas ruas de Lisboa fazem eco aos tumultos organizados na Assembleia por alguns deputados republicanos. Foi na noite desse dia 2 de Agosto que compreendi que a coroa estava em jogo: quando o rei, com razão ou sem ela, é contestado ou rejeitado por uma parte da opinião, deixa de conseguir cumprir o seu papel unificador.

Em 1910, a monarquia constitucional estava em grandes apuros. Tinha uma classe política desacreditada e o jovem D. Manuel II era atacado por quase toda a gente, da direita à esquerda. O PRP, um movimento urbano, sobretudo lisboeta, conseguira criar um sério problema de ordem pública que a monarquia constitucional nunca poderia ter resolvido, sem se renegar, tornando-se num regime repressivo, o que a sua génese política não podia aceitar. Quando o PRP resolveu dar o golpe, em Outubro de 1910, subvertendo a guarnição de Lisboa, quase ninguém apareceu para defender o regime.
A I República, em breve, reclamou-se não apenas como uma ruptura constitucional, rumo a um regime democrático republicano, pois assumiu profundas fracturas culturais.
Todavia, como salientou o historiador Vitorino Magalhães Godinho, os reis e as cortes portuguesas a partir do século XV sempre conceberam o Reino de Portugal como uma república no sentido clássico, um governo em que, independentemente da origem do poder dos governantes, estes regiam o Estado tendo em conta o bem público, de uma maneira regular e legal, sem arbítrio pessoal.
Mais tarde, sobretudo a partir do século XVIII, acrescentou-se a esta ideia de república o princípio da participação dos cidadãos no governo, através de instituições representativas e em nome da soberania da nação. A monarquia constitucional portuguesa, no século XIX, foi esse tipo de república. Portugal era, neste sentido, republicano muito antes de 1910.


(CONTINUA)

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