segunda-feira, 3 de outubro de 2011
NO CENTENÁRIO DA IMPLANTAÇÃO DA REPÚBLICA CLAROS E ESCUROS
Fleming de Oliveira
(IV)
O insucesso (dizemos nós) da I República pode atribuir-se a vários factores, como uma crise política muito prolongada, uma guerra civil interrompida, um latente estado de sítio, em que o PRP, conservou geralmente o monopólio do poder no Parlamento e na Administração. Afonso Costa recusava inicialmente o pluralismo partidário, só mais tarde, quando estiver completada a obra comum de realização imediata e aparecerem correntes diversas de ideias e princípios. Oposta era a posição de Sampaio Bruno, desde Novembro de 1910, em defesa do pluralismo político-partidário, onde incluía os monárquicos que aceitassem intervir sob o regime republicano. O derrube deste sistema político que até ao fim nunca se regenerou verdadeiramente, (a insurreição armada tornou-se um substituto da procura de mudanças de governo por meios constitucionais, embora sem o apoio do exilado D. Manuel II), tornou-se possível graças a uma conjugação de circunstâncias, como o ressentimento de uma injustiça colectiva, o não desempenho de um papel histórico na vida política, o aparecimento de uma unidade temporária como reacção contra as ameaças aos privilégios por parte das reformas sociais e económicas de esquerda da República em 1923-1925, a fragmentação da esquerda e o descrédito geral do sistema de partidos políticos, assim como o afastamento decisivo das classes médias/urbanas em relação à República. Nos fins da I República, quase todos os partidos, da esquerda à direita, já tinham apelado a insurreição militar a apoiar as respectivas causas partidárias.
A I República desencadeou e provocou uma explosão de energias que, embora tivessem levado a conflitos e tensões sem precedentes, deram igualmente lugar a uma mobilização ímpar da sociedade, a qual foi parte integrante de um processo geral de modernização e mudança. Centenas de milhares de portugueses foram desenraizados, por motivos políticos, económicos, sociais e militares. Tendo por origem a desilusão com a República, no período de 1910-15 houve uma emigração maciça para o Brasil e a América do Norte. As greves abalaram o País, especialmente durante 1910-1917 e 1919-1921. Devido à sua política estrangeira e colonial, o que constituiu até então a maior mobilização militar da história de Portugal, deu origem a que milhares de soldados fossem embarcados para África (entre 1914-1918) ou para a Flandres (entre 1916-1918). Outras formas de mobilização de massas, numa escala desconhecida no País, incluíram as insurreições civis e militares, a mobilização civil dirigida pela Carbonária, pelo PRP e diversas outras organizações da esquerda e da direita, o crescimento dos grupos de juventude católicos e monárquicos a partir de 1917 e a formação de vários grupos de elite dedicados ao estudo e à acção, como a Seara Nova, que procuravam receitas para a salvação nacional.
O contributo mais importante para o colapso da República foi em suma o comportamento dos políticos, a ineficácia dos partidos, bem como a natureza e o papel dos militares dada a tradicional crença de que as forças armadas eram o guardião e o baluarte da independência nacional, conquistador e guardião das liberdades públicas.
O PRP alcançou o domínio da administração pública e entrincheirou-se na burocracia civil e militar. O Partido teve alguns dirigentes de talento e integridade, incluindo Afonso Costa, que o dominou até ao seu auto-exílio em Paris. Depois de 1919, o Partido tornou-se cada vez mais desunido, conservador e imobilista. Alguns dos dirigentes mais novos que sucederam à geração estafada de 1910 eram homens de engenho e honestidade que tentaram corajosamente executar reformas muito retardadas, não obstante a percepção dos perigos políticos de desencadear tais mudanças. Todavia, os restos da fracção conservadora do PRP, liderados por António Maria da Silva, mantiveram-se demasiado prudentes para ensaiarem um tal esforço.
Com uma direcção corajosa e unida e umas bases disciplinadas, o PRP poderia ter sido capaz de lançar os fundamentos para as necessárias reformas, a fim de dar crédito ao sistema de partidos e desacreditar os extremistas da esquerda e da direita. Mas ao PRP, ou àquilo que dele restava em 1926, faltaram ambos os requisitos, os quais teriam proporcionado a tentativa de metamorfosear o sistema político do imobilismo, desbaratar os extremistas e impedir um golpe militar. O PRP conquistou a parte de leão na Administração, mas perdeu o apoio da população.
Se, de facto, o PRP aprendeu finalmente que o poder corrompe, a oposição descobriu que a ausência de poder também corrompe. A oposição não foi capaz de formar partidos estáveis que constituíssem uma alternativa ao PRP.
Após a derrota da Monarquia do Norte em 1919, a questão monárquica, exceptuando o barulho à sua volta, perdeu muito do seu significado. O regime republicano iniciou um entendimento com os monárquicos, legalizando-os como partido com lugar no Parlamento em 1921, e fez diversas amnistias. Começara igualmente uma aproximação relativamente à Igreja Católica. Em 1923, o Presidente da República investiu publicamente o novo Núncio Apostólico, entregando-lhe em Lisboa os símbolos do cargo.
Diversos partidos, a imprensa e o Parlamento discutiram aspectos referentes à restauração de alguns dos direitos e privilégios dos católicos antes de 1910, especialmente quanto ao culto e à educação. Por volta de 1926, a questão religiosa parecia menos perturbadora. Os nacionalistas propuseram que a instrução católica fosse restaurada como ensino particular. Também por volta de 1926, muitos republicanos começavam a discutir a ideia de criar um novo corpo representativo em que participassem os grupos com interesses económicos e as profissões, versão precursora da futura Câmara Corporativa do Estado Novo.
A I República deixou uma herança, frustrada e ambígua, de planos, propostas, de tímidos começos e de realizações pouco duradouras.
Sob alguns aspectos, os republicanos podiam rever-se no seu trabalho e visão. Foram realizadas significativas reformas na instrução primária e no ensino secundário, assim como se fizeram esforços quanto à política fiscal, às condições laborais e à política de salários.
Quando os historiadores do nosso tempo apreciam o significado da I República, devem operar dentro da perspectiva daquilo que aconteceu até ao 28 de Maio de 1926, mas também daquilo que se seguiu. Porque a Ditadura e o Estado Novo não só tentaram reescrever a história de acordo com os seus próprios mitos e preconceitos, como também procuraram adoptar diversas políticas republicanas, apresentá-las como suas e depois adaptá-las a condições posteriores.
Um dos mais astutos defensores e críticos da República, Raul Proença, escrevia em 1925 que a República para ele era uma Ideia, um facto da Consciência, uma afirmação moral, uma aspiração do Espírito.
Os primeiros republicanos estavam ansiosos por ganhar o respeito da Europa civilizada e tinham consciência de que a República Portuguesa era apenas a terceira república da Europa, a seguir à Suíça e à França. A experiência da I República principiou como uma ideia e, apesar dos falhanços dos erros e das esperanças destruídas, a república permaneceu como ideia no espírito e no coração de mais de uma geração.
Os republicanos moderados, que deploravam o terror popular da jovem república, desejavam uma sociedade justa e um governo humano e compreensivo de que a maior parte dos cidadãos pudessem sentir-se justamente orgulhosos. Estes ideais não morreram com a instauração o 28 de Maio. Alguns viveram o suficiente para ver o aparecimento de uma nova oportunidade para democrática. Quanto ao povo português, obviamente sobreviveu quer ao Reino dos Pronunciamentos, quer ao domínio da Polícia Política.
A História raramente consente aos revolucionários a liberdade de escolherem os seus momentos de poder. Tal como os que agem, os sonhadores têm de agarrar as suas oportunidades quando elas surgem. Foi assim em 1910 e foi novamente em 1974. A tragédia dos primeiros republicanos residiu no facto de a sua oportunidade de conquistar o poder ter coincidido com a I Guerra Mundial, com um enorme alarme relativamente às colónias africanas, com a pior crise financeira e económica que o País conhecera e com o despertar das aspirações e da consciência de várias classes que a República não podia satisfazer construtivamente ou reconciliar.
Uma nação mais rica e com um passado mais substancialmente democrático poderia ter falhado em tão perigoso empreendimento. Portugal era a nação mais pequena, mais pobre e menos instruída da Europa ocidental.
Que o esforço republicano tenha sido feito e que os seus ideais tenham sido promovidos é facto provavelmente mais relevante que o insucesso da Primeira República.
Há personalidades alegadamente de direita ou mesmo de esquerda que, desempenhando funções políticas num Estado Republicano como o nosso, estão todavia inscritas na Causa Monárquica.
Porém, ao invés do que diz Paulo Teixeira Pinto, presidente da Causa Real, a causa dos monárquicos em Portugal de facto não está viva, nem activa. Este ex-banqueiro, um dos responsáveis pelo projecto de revisão constitucional do PSD, não vai ao ponto de aí suscitar a questão, não obstante defender um regime monárquico constitucional, com o argumento que a monarquia não é um programa político, não é uma ideologia, não se antepõe a nenhum dos outros partidos. Pelo contrário. O que se pretende é uma monarquia diferente da de 1910, democrática, constitucional, mais moderna.
Nem acompanha D. Duarte Pio de Bragança, quando este afirma que temos uma república que não é completa, onde o povo é tratado com ignorância. A nossa democracia limita muito o direito de escolha ao não permitir que se pronunciem sobre o tipo de Chefia de Estado que querem. É um dos limites materiais da Constituição.
Para além disto, existiram e existem (?) divisões entre os monárquicos sobre a sucessão de D. Manuel II. De acordo com o Pacto de Dover, propiciado por Paiva Couceiro, D. Duarte Nuno, pai do actual pretendente, teria sido reconhecido como o herdeiro, embora muitos se recusassem a aceitar que o ramo absolutista/miguelista, voltasse eventualmente ao trono, após a derrota perante os liberais, reconhecida na Convenção de Évoramonte.
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