quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A CENSURA

-A Censura é antiga como o Mundo.
-O assassinato de Theo van Gogh.
-As caricaturas de Maomé.
-O Papa Bento XVI.
-O caso da Ópera de Berlim.
-Os nús femininos.
-Sir Salman Rushdie.
-O Grande Oriente Lusitano.
-A memória não pode ser alienada.
-Mário Soares e o exílio.
-O Cardeal-Rei e o Santo Ofício.
-Damião de Góis, Gil Vicente, Camões, Fernão Mendes Pinto, Pe. António
Vieira e outros, até perto de nós, sem esquecer Gonçalves Rapazote.
-Luandino Vieira e a extinção da Sociedade Portuguesa de Autores.


Fleming de Oliveira

(II)





Há mais de seis anos (2 de Novembro de 2004), um marroquino disparou na via púbica uns tiros, degolou e cravou um punhal no cineasta, escritor, ator, arauto da liberdade de expressão, o holandês Theo Van Gogh (por acaso sobrinho de Vincent van Gogh, o pintor de searas e girassóis), que morreu.
No rescaldo do seu comportamento o assassino, vestido com uma típica jallaba árabe, para que não fosse confundido com um qualquer transeunte ocidental, deixou apologéticas considerações sobre a Jihad Islâmica e mandou um recado a uma deputada holandesa, de origem somali, que antes vivera na Arábia Saudita, Etiópia e Quénia e rompera com o Islão por discordar que a fonte do conhecimento resida apenas num livro. Theo tinha convicções fortes, abominava o tratamento hemófobo conferido no mundo árabe às mulheres, especialmente no respeitante às incomensuráveis proibições de educação e nas relações familiares (o que é permitido funciona como a exceção, pois a regra é obedecer…).
T.Van Gogh expressava-se por vezes de forma truculenta e provocatória (que também poderia abranger cristãos, judeus, budistas, negros ou amarelos…). Na libertária Holanda, onde vive cerca de um milhão de muçulmanos (mais de 5% da população ativa), com a sua fleumática e auto proclamada sociedade tolerante, supostamente imune a este tipo de acontecimentos dramáticos, o crime desorientou os crentes do multiculturalismo. O holandês melting pot já vivera melhores dias. Na Europa comunitária, o assunto teve uma repercussão relativa.
Tudo começou, muito especialmente, após a televisão holandesa ter, em fins de Agosto desse ano, exibido Submissão (com argumento de Ayan Hirsi Ali), um documentário de van Gogh, em inglês, onde quatro mulheres, com véus transparentes negros, apareciam com trechos do Corão escritos no corpo e marcas de chicotadas nas costas e pernas. Foi um escaândalo entre os muçulmanos radicais, já que as mulheres desobedientes devem ser castigadas, devem andar veladas, o homem pode dispor da sua mulher sempre e quando lhe apetecer, o homem e a mulher que cometam adultério devem ser vergastados cem vezes.
Daí, a Theo van Gog ter passado a receber ameaças de morte, foi um pequeno passo. Criticar o Islão pode conduzir à morte.
É nisto que os muçulmanos acreditam? É desta forma que se deve praticar uma religião?
Antes, tinha realizado uma controversa versão moderna do Romeu e Julieta, a história de uma jovem holandesa apaixonada por um marroquino distribuidor de pizzas, bem como um documentário de homenagem a Pim Fortuyn, homossexual assumido, político populista da extrema-direita, aonde chegara vindo da esquerda, defensor do controlo draconiano da imigração e que fora assassinado em 2202. Morto Van Gogh, sobreviveu Ayaan Hirsi Ali que, entretanto, renunciou ao Parlamento Holandês, foi viver para Inglaterra. Aí passou a ser ameaçada ostensivamente e a estar rodeada de guarda-costas, o que provocou, o alarme dos vizinhos que temiam assim pelo seu, (deles), sossego. Para a família e fé de origem, era a pecadora, para o país de acolhimento, o Reino Unido (na Holanda fora-lhe concedido o asilo político), tornara-se um problema desagradável. Uma Ministra, de Tony Blair, tratou de encontrar maneira de reabrir o seu processo de imigração. Mas o escândalo foi grande que a ministra caiu. Na sofisticada consciência europeia, este facto afinal referia-se apenas a um político, que se exilara por motivos exclusivamente religiosos...

Tempos depois (30 de Setembro de 2005), foram publicadas na Dinamarca umas caricaturas de Maomé que, segundo alguns, não eram especialmente boas, nem particularmente espirituosas. Mas o Irão e o Islão ligaram a corrente, a faísca surgiu de pronto e incendiou. O Ocidente, a Europa especialmente, dividiu-se. Como o jornal, aliás de não grande tiragem, era editorialmente de direita, alguns progressistas acharam mais importante ligar a cassette anti-americana e antiglobalização. Escapou-lhes, todavia, o (pequeníssimo…) pormenor da questão da Liberdade de Expressão. Alguns conservadores, também argumentaram piedosamente, que estava em causa o respeito pelo sagrado. Confundiu-se o essencial com o acessório, esqueceu-se que a liberdade tem consequências, que a crítica das instituições é legítima, mas que não obstante a concordância formal com este princípio, para uns tantos, na prática, só é hipotética ou tolerada, porque necessário. Numa palavra, quem julgava proteger Jesus defendendo Maomé, equivocou-se e não prestou bom serviço a nenhum. Porém, defendendo a liberdade de expressão, jornais de mais de 50 países de todos os continentes (incluindo Portugal), reproduziram os cartunes.

Mas nem todos seguem este tipo de procedimentos.
Em meados de 2007, um museu holandês, cremos que foi o Museu Geemente, recusou expor uma obra retratando um Maomé gay, da autoria de uma iraniana, que obviamente não vive no seu país natal.

O Papa Bento XVI, foi à Universidade de Ratisbona, Alemanha, fazer um discurso culto, dirigido a pessoas cultas. Mas muitas outras que não o eram, também o ouviram. Milhões, mobilizaram-se contra uma invocação de Manuel Paleólogo, que até então desconheciam. Imãs que pregam, para milhões, a punição impiedosa do infiel ocidental e se resguardam em passagens literais do Corão para justificar o terror, uniram-se nas diatribes e a exigir desculpas ao Vaticano. Este comportamento acabou por consciencializar, momentaneamente, alguns que a democrática Europa, estava a ser vítima de um convite à auto-censura, a redução da inteligência, à conveniência ou indigência, a administração da cultura em função do medo real ou hipotético. Por uma vez, humanistas cristãos e laicos (republicanos) deram as mãos. Mas não rejubilemos, pois para muitos, mesmo católico-romanos, Bento XVI foi inconveniente e inoportuno. Dias depois, um não muito conhecido francês, professor de filosofia, publicou em Le Figaro uma coluna de opinião sobre a islamização dos espíritos. Os seguidores de Allah, decretaram mais uma vez a pronta condenação, e os serviços secretos franceses desmontaram um projecto de assassinato do professor, e esconderam-no. De acordo com o mesmo, não tenho direito a ir para minha casa, ando com protecção policial permanente, tive de anular as minhas conferências, vivo a monte.

Mais recente, foi o caso da Ópera de Berlim que retirou da programação o Idomeneo, uma peça de Mozart, com um libreto clássico. Uma cena com as cabeças de Neptuno, Maomé, Buda e Jesus era susceptível de ferir a sensibilidade do Islão e provocar a sua ira ! A censura de Mozart foi fruto do medo que escondeu, de novo, uma concepção redutora da arte e da liberdade. Na democracia alemã, e porque não dizer europeia? há condescendência crescente apenas para se ver, ouvir e ler, o que for politicamente correcto.

Preparava-se em Londres uma exposição de Hans Bellmer, surrealista, amigo de Breton, conhecido pelos nús femininos. Fotógrafo e pintor, morreu há mais de 30 anos. Seriam vistos não mais de dez desenhos, sem alusões a divindades ou orações, ainda que subtis. O leit-motiv de Hans Bellmer era o corpo. Por causa do arredondado corpo feminino, os desenhos foram tidos por eróticos, e a muito vitoriana senhora directora, cancelou a exposição. Explicou, que há muitas mulheres muçulmanas no bairro, que se iriam sentir vexadas. A emancipação da mulher parece ser afinal apenas uma história politicamente correcta para consumo do mundo ocidental, mas deveria ser para qualquer parte, ao lado da democracia política e a tolerância religiosa, um referencial da qualidade de vida.

Em 2007, a Rainha de Inglaterra nomeou cavaleiro, Sir, o escritor de origem paquistanesa Ahmed Salman Rushdie, autor em 1988 (vinte anos passados) dos Versículos Satânicos (Whitbread Awards). Criado de acordo com a fé do Islão, encontra-se refugiado/escondido há alguns anos, para fugir a uma condenação à morte por meio de uma fatwa (decreto religioso interpretativo ou orientativo) por heresia, da iniciativa do Ayathola Khomeini, do Irão. Apelando à morte do herético, este fica à mercê de qualquer fanático. Aquela distinção real, provocou inflamadas reações, tanto do Irão, como do Paquistão, tendo este considerado que se trata de mais um insulto apto a reacender o ódio de grupos radicais islâmicos e justificar ataques bombistas e suicidas…
Escolhemos nesta introdução alguns fatos estrangeiros de mérito variável, mas com um denominador comum, ou seja, a diferença não se pode exprimir.

O Grande Oriente Lusitano, em 2007, organizou em Lisboa, o seu Iº Encontro Internacional, sob o tema Religiões, Violência e Razão. O Grão Mestre da mais antiga ordem maçónica nacional, António Reis, explicou que a polémica em torno dos cartoons de Maomé, do discurso do Papa na Alemanha e do cancelamento do espetáculo da ópera de Berlim, contribuíram para a decisão de promover esta reflexão, com a presença de representantes católicos, protestantes, muçulmanos, judeus e budistas, sobre um tema que interessa a todos, crentes e não crentes, maçons e não maçons. Embora, nem de perto nem de longe, o autor destas notas se considere identificado com a maçonaria, entende ser fundamental que o mundo muçulmano se abra à modernidade, o que não quer dizer que assuma todos os valores ditos ocidentais como a separação entre Estado e Religião, forma de travar o fundamentalismo. O Prof. Eduardo Lourenço, fez uma intervenção em que sublinhou que se assiste neste dealbar do milénio a um retorno do religioso, não nas formas tidas por tradicionais, porque o Ocidente é interpelado por culturas que em vez de conhecerem o processo de laicização continuam na idade média deles, com a convicção de que Deus é o seu Deus e os outros tipos de crenças estão erradas. E adiantou que esta emergência religiosa não é a nossa, mas já foi a nossa durante séculos.

Assusta saber que certas ditaduras, com pretexto na moral, lançam campanhas de moralização do tipo das da República Islâmica do Irão, impondo a punição de indumentárias alegadamente ofensivas dos princípios do Islão, onde se insere o combate ao uso por mulheres de túnicas justas, de sandálias com os pés à vista, leituras estrangeiras ou TV por satélite. Ou o cabelo fora da respetiva cobertura. Mulheres apenas? Não, os homens não podem mostrar partes tão pecaminosamente eróticas, como os cotovelos !!!, já não falando no tronco ou baixo-ventre, especialmente em calções apertados.

(CONTINUA)


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