segunda-feira, 3 de outubro de 2011
NO CENTENÁRIO DA IMPLANTAÇÃO DA REPÚBLICA CLAROS E ESCUROS
Fleming de Oliveira
(III)
A I República perpassou por várias situações e personalidades.
Mas na sua versão dominante, associada ao monopólio do poder pelo PRP, de Afonso Costa, foi um regime não mais tolerante, não menos exclusivista do que lhe sucedeu em 1926.
A República do PRP assentou na redução do eleitorado através da negação do direito de voto aos analfabetos. Durante a monarquia, puderam votar 70% dos homens adultos em Portugal, com a I República, essa percentagem reduziu-se a 30%. A intolerância de Afonso Costa consistiu numa violenta guerra à Igreja Católica, sujeita a uma lei de separação que visava, de facto, a sujeição do clero e dos católicos à prepotência e arbítrio de um Estado hostil. Críticos e oposicionistas ficaram sujeitos à violência dos sicários do PRP, que em 1911 destruíram os jornais ditos monárquicos, em Lisboa.
A I República foi ainda o regime que excluiu expressamente as mulheres da vida cívica, ao negar-lhes o direito de voto.
Em África, praticou uma política dura e racista, que em 1915 chegou ao genocídio das populações do Sul de Angola.
Afonso Costa forçou a entrada de Portugal na I Guerra.
A I República pretendeu ser um movimento amplamente reformista, com prioridade à escola e à educação, valorização da ciência, a laicização do Estado (não obstante o seu enorme pendor anticlerical) a modernização das Leis da Família, não obstante os velhos republicanos de 1910 serem profundamente patriotas, machistas e homofóbicos.
Rever a História da I República é muito mais que enaltecer os seus heróis, aprofundar, promover e renovar valores, como a dedicação à causa pública, o progresso ao serviço dos cidadãos, o patriotismo democrático, o humanismo universalista (que reconhecia o Fardo do Homem Branco, do poeta britânico Rudyard Kipling, sobre a responsabilidade do Império), a laicidade, a igualdade e respeito pelas diferenças, o reforço dos direitos dos trabalhadores, a educação, ciência e cultura, como os grandes factores de emancipação pessoal e de desenvolvimento. Enfim, modernidade política, económica e social.
Foi conseguido? Muito deste ideário não seria cumprido ou, mesmo que levado a cabo no plano legislativo, só se realizaria efectivamente muitas décadas mais tarde. No plano da participação política, por exemplo, o sufrágio universal só se concretizará com o 25 de Abril de 1974, contrastando com as medidas de laicidade do Estado, como o registo civil obrigatório, implementado logo em 1911. O direito à assistência pública e outros direitos sociais consagrados na Constituição tiveram uma realização muito limitada, nomeadamente no Ensino e na Saúde Pública, grandes bandeiras da classe política.
As questões ideológicas não foram inicialmente assumidas como fundamentais na estratégia dos republicanos: para a maioria dos seus simpatizantes, que nem sequer conheciam os textos dos principais manifestos, em 1890, 1900 ou 1910 bastava ser contra a Monarquia, contra a Igreja e contra a corrupção política dos partidos tradicionais/monárquicos. A República seria o bálsamo messiânico e purificador. Esta falta de rigor ideológico não permite afirmar que o PRP não se preocupasse com a divulgação dos seus princípios.
A propaganda republicana foi sabendo tirar partido de alguns factos históricos de repercussão popular. As comemorações do III Centenário da Morte de Camões, em 1880, e o Ultimatum Inglês, em 1890, foram bem explorados enquanto se identificavam com os sentimentos nacionais e aspirações populares.
O III Centenário da Morte de Camões, foi comemorado com actos significativos, como o cortejo cívico que percorreu as ruas de Lisboa, no meio de entusiasmo popular e, também, a transladação dos seus restos mortais e os de Vasco da Gama para o Mosteiro dos Jerónimos. Em 1977, Camões foi associado publicamente às comunidades portuguesas de além-mar, tornando-se a data de sua morte o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, no intuito de apagar a imagem de Portugal como um país colonizador e se criar um novo sentido de identidade nacional que englobasse as ex-colónias e os imigrantes delas provenientes.
Apesar das intenções e dos ideais generosos e do entusiasmo inicial, os republicanos foram incapazes de criar um sistema estável e plenamente progressista. A I República foi prejudicada pela frequência da violência pública, instabilidade política, falta de continuidade administrativa e impotência governamental. Com um total de quarenta e cinco governos, oito eleições gerais e oito Presidentes da República em quinze anos e oito meses, a I República Portuguesa foi o regime parlamentar mais instável da Europa ocidental. Na arena da República, as paixões pessoais e ideológicas entrechocaram-se, tendo desencadeado forças que prepararam o terreno para a intervenção dos militares na política e a instauração da ditadura em 1926.
Marcello Caetano, disse em 1973 a Douglas L. Wheeler (do Departamento de História da Universidade de New Hampshire, Durham, EUA) que, a falência da Primeira República ficou a dever-se, na minha opinião, à política religiosa inicialmente adoptada, assim como às instituições parlamentares, que facilitaram a pulverização dos partidos e a instabilidade e a fraqueza dos governos.
Mas obviamente não só.
Entre a inúmera e inovadora legislação promulgada nos primeiros tempos da República, destacou-se a legislação de natureza e objectivos anti-clericais, sob uma alegada capa do laicismo. Com o advento da República, o anticlericalismo atingiu o expoente máximo, ao ponto de considerar-se como vimos que um bom Republicano teria de ser forçosamente anticlerical e constituir-se como instrumento de ataque à Igreja. A maioria da população portuguesa era católica e não viu com bons olhos esta situação, pelo que a separação da Igreja do Estado foi feita não através desta lei, mas paradoxalmente pela própria Igreja, que não acatou muitos desses pressupostos. O clima de perseguição à Igreja em Portugal abrandou ligeiramente com o governo de Sidónio Pais, que reatou relações diplomáticas com a Santa Sé.
Afonso Costa numa sessão branca (isto é, aberta a não maçons) da maçonaria, havia prometido extinguir, em duas ou três gerações, a religião católica em Portugal, tida como a maior causa da desgraçada situação em que se caiu. Há quem diga que esta não passa de um lenda negra. Este propósito, ainda que não expresso, permanece, todavia, no imaginário popular como uma rotunda e má imagem de marca do político e da I República, apesar de ter dado lugar a uma acesa controvérsia historiográfica, não apenas com os monárquicos.
Apesar das contrariedades remanescentes, a Igreja reagiu contra a Lei da Separação e a sua acção, conjugada com as consequências da participação de Portugal na I Guerra, forneceram lastro para o crescimento de um amplo e unificado movimento de renascimento católico de cariz revolucionário conservador, protagonizado por sectores clericais e laicos, que estaria já em gestação desde os inícios do século XX. Este movimento não deixou de utilizar o emergente fenómeno popular das aparições de Fátima ocorridas em 1917, que foi crescendo de forma cada vez menos discreta e espontânea ao longo dos anos de 1920, como instrumento eficaz de propaganda ao serviço das causas da recristianização nacional, da defesa das liberdades religiosas, sociais e políticas da Igreja e da rejeição absoluta do republicanismo demo-liberal e laico e, mais tarde, do comunismo. Tal movimento de revivalismo católico estimulado e controlado pela mais alta hierarquia da Igreja contribuiu, de resto, para derrubar I República e depois ser apontado como um sustentáculo do Estado Novo.
A política anti-clerical da I República não foi verdadeiramente original. Renasceram as perseguições pombalinas ou as leis anticongregacionistas de Joaquim António de Aguiar - Mata Frades, uma dialética de atracção e repulsa frente à vida religiosa, numa relação tipo amor-ódio. Um dos argumentos invocados pelos inimigos das ordens prende-se com o seu carácter supranacional, pois a sua maior parte tem os superiores maiores no estrangeiro a quem devem obediência, o que as leva a assumir uma acção desnacionalizadora por via do ensino e da sua imprensa.
Proclamada a República, na varanda da Câmara de Lisboa, o Governo Provisório iniciou de imediato a sua acção legislativa, como objectivo de alterar rápida e profundamente a estrutura da sociedade portuguesa. A 8 de Outubro de 1910, o Governo fez publicar um verdadeiro decreto de emergência, como é patente pelos escassos dias que mediaram a proclamação da República. Além de legislar para o futuro, como qualquer diploma, entendemos que se pretendeu dar um arremedo de cobertura a actuações de enorme violência ocorridas nesses três dias. O Decreto, fundamentalmente, repunha em vigor as leis que Miguel Bombarda apelidava de leis puras de Pombal e Aguiar, isto é, a Lei de 3 de Setembro de 1759 (expulsão dos jesuítas de qualquer nacionalidade, pois o jesuíta não tem nacionalidade), depois confirmada pela Lei de 28 de Agosto de 1767, o Decreto liberal de 28 de Maio de 1834 (extinguiu por falta de utilidade os conventos, mosteiros, colégio, hospícios e quaisquer casas de religiosos de todas as ordens regulares masculinas e a extinção das femininas, após a morte das últimas freiras), anulou o Decreto do Governo de Hintze Ribeiro, de 18 de Abril de 1901 (que disfarçadamente autorizou a constituição de congregações religiosas dedicadas à instrução e beneficência ou a propagação da fé e da civilização nas colónias).
As ordens religiosas fazem parte, desde o início da nossa nacionalidade, da história religiosa, cultural, social e política. Pertencem a um processo global em que o caso português acompanhou, participou e se confundiu com a gestação da própria consciência social europeia. Seguramente que a História da Vida Religiosa não é linear, contém um dinamismo cíclico caracterizado pelo fervor, pela decadência e depois pela exigência de renovação, recuperação, sem prejuízo de durante muito tempo os arautos das campanhas anticongracionistas e anticlericais se confrontarem com os defensores tanto dos direitos das congregações e ordens e do contributo por elas prestado à sociedade portuguesa. A natureza sectária destas campanhas, permitiu constatar situações paradoxais, quando alguns dos seus mais activos detractores não se coibiram de entregar a educação dos filhos a instituições que pretenderam desacreditar.
Seja como for, Oliveira Martins havia escrito em 1893 que nem por terem desaparecido os frades se perdeu a obra deles, sempre viva na opulência pingue nos campos de Alcobaça e na produção abundante das aldeias espalhadas pelos antigos coutos e conventos.
Houve, neste contexto, também uma série de eliminações e tentativas de eliminação de tradições católicas, seja na religiosidade popular e local (recorrendo a práticas sociais decalcadas da religiosidade popular) ou nas instituições portuguesas. São exemplo, a abolição do juramento com carácter religioso, o da Imaculada Conceição e outros previstos nos estatutos da Universidade de Coimbra, proibição de matrículas de alunos no 1º ano de Teologia, o fim da cadeira de Direito Canónico no curso de Direito daquela Universidade, a supressão do ensino da doutrina cristã no ensino primário e normal, a identificação de dias de trabalho aos dias santificados, com excepção do domingo e do feriado de 25 de Dezembro, entretanto consagrado dia da família, o fecho das irmandades, a promulgação da lei do divórcio ao mesmo tempo que o casamento era tido como um contrato civil.
O anticlericalismo acabou por resvalar para situações nada edificantes, atingindo figuras da Igreja, para além de empreender iniciativas obscuras, como aconteceu com o bispo de Beja, D. Sebastião Leite de Vasconcelos, já antes perseguido na Monarquia. Com a chegada da República, foi ameaçado de morte, sendo obrigado a desterrar-se para Sevilha, ficando suspenso das suas atribuições e direitos civis. Também, em 1917, foi a vez de o próprio governo condenar ao exílio D. António Barroso, que permitiu a vida em comunidade a umas senhoras, e ao Cardeal Patriarca D. António Mendes Belo, para além de castigos a inúmeros prelados.
Esta onda de anticlericalismo abrandou, como referimos, aquando da subida ao poder de Sidónio Pais. A anulação de algumas leis anticlericais, o fim das perseguições e das violências aos membros do clero pelo governo sidonista mantiveram-se para além do assassinato do seu líder.
Da autoria de Afonso Costa e repudiada pelo Vaticano, a Lei de 20 de Abril de 1911, que revogou o Estado confessional, determinava a separação da Igreja e do Estado e provocou uma das maiores, se não maior polémica da I República, que deixou marcas muito para além desta.
Interessante notar que aquela data, tem a particularidade (mero acaso, sem dúvida) de corresponder ao dia do aniversário da mulher de Afonso Costa, aliás, casado numa cerimónia católica.
Afonso Costa ao aludir ao diploma que preparava, disse que a Lei será promulgada para bem da própria religião e dos portugueses que são religiosos. Aos jesuítas e às congregações castigá-los-á, mas sem ódios. À Igreja e ao sentimento religioso, a República não quer fazer mal algum.
Depois da sua publicação, acrescentou que a Lei da Separação deixa à vontade o crente mas não permite aos ministros da religião que obrigue alguém a exercê-la ou impedi-la. O meu desejo é que todos – livre pensadores, católicos, protestantes – tenham a mesma liberdade de manifestar as suas convicções. O governo da República não impedirá o culto, desde que não sejam atacadas as crenças alheias ou as leis do Estado. Em todas as povoações onde puder existir o culto católico, ele existirá.
O episcopado nacional, num Protesto Colectivo, datado de 5 de Maio de 1911, acusou-a de injusta, opressiva, espoliadora e ludibriosa e considerou a precipitada promulgação, como uma declaração de guerra. O Papa Pio X, confirmou as posições da igreja portuguesa quando ordenou a divulgação da encíclica Jamdudum in Lusitania (1912), onde denunciou a apostasia e tirania do regime republicano face à Igreja e declarou nulo e sem valor tudo quanto nessa lei se encontra de ofensivo aos direitos invioláveis da Igreja.
Segundo os Bispos Portugueses, ainda que uma lei seja em si excelente, se não for oportuna, se não tiver o carácter de acomodação ao estado dos espíritos, produzirá não só a surpresa mas o desagrado, o descontentamento em grande parte dos cidadãos, e talvez a perturbação da paz pública.
Poderia aplicar-se a Portugal o que, em 1880, entre aplausos gerais, disse Littré em França? O Catolicismo é a religião da maioria dos fran¬ceses: e essa multidão dar-se-ia por seriamente ofendida se fosse con¬trariada no exercício do seu culto. Não reconhecer esta condição funda¬mental é preparar a si próprio quem seja filósofo especulativo, graves desenganos teóricos, e quem seja homem de Estado não menos graves desilusões políticas.
Para Afonso Costa, a resposta seria negativa, pois nos seus propalados argumentos o diploma instaurou a liberdade de culto, o que impunha que o catolicismo deixasse de ser a religião oficial do Estado Português e o seu ensino fosse proibido nas escolas públicas, para além de determinar a nacionalização dos bens da Igreja e colocar o culto sob a alçada do Estado. Decretava ainda a expulsão das ordens religiosas, muito especificamente a Companhia de Jesus e a nacionalização do património da Igreja, em parte aproveitados para obras de assistência social e de educação.
Declaradamente anti-clerical, a sua concretização acarretou o corte de relações entre o Vaticano e Portugal. Aliada à legalização do divórcio e obrigatoriedade do registo civil, esta legislação teve por parte da população e do clero uma reacção muito negativa. Os tempos que se lhe seguiram foram de repressão traduzida pela prisão e suspensão de prelados, a que nem escapou o prestigiado Patriarca, D. António Mendes Belo, o décimo-terceiro Patriarca de Lisboa, cargo que assumiu em 1907. Foi designado cardeal in pectore, no Consistório convocado por Pio X, em 27 de Novembro de 1911. Contudo, as convulsões políticas em Portugal impediram-no de receber o chapéu cardinalício, pelo que apenas teve direito em 1914, depois de participar no Conclave que elegeu Bento XV.
Os governos republicanos, que se lhe seguiram, especialmente com Sidónio Pais tiveram o cuidado de rever e refrear a vanguardista legislação anti-clerical, mantendo a separação do Estado e da Igreja. As Leis da Família publicadas pelo Governo Provisório estabeleciam a igualdade de direitos entre marido e mulher e a protecção para os filhos, mesmo nascidos fora do casamento, os ilegítimos. A lei do divórcio, foi também extensiva a qualquer casamento, mesmo o religioso. Os filhos legítimos, ilegítimos e adoptivos, auferiram de igualdade de direitos. Foi ainda promulgada a lei sobre as tutorias da infância. Com a aprovação, em 18 de Fevereiro de 1911, do Código do Registo Civil, ficou estabelecida a obrigatoriedade de inscrição de todos os factos essenciais ao indivíduo, à família e à sociedade, nomeadamente dos nascimentos, casamentos, óbitos e ainda o reconhecimento e legitimação de filhos, divórcios e anulação de casamentos. Os registos deixaram de ser feitos nos arquivos paroquiais, que passaram a pertencer ao Estado. Os serviços de registo foram repartidos pelos conservadores do registo civil, a vigorar nas capitais de distrito e nos bairros de Lisboa e Porto, pelos oficiais de registo civil instalados nos concelhos e pelos ajudantes de registo civil sediados nas freguesias, longe das conservatórias, como foi o caso dos Montes, com Joaquim Pereira de Magalhães, como referimos na nossa obra NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS. Alcobaça e Portugal.
(CONTINUA)
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