FLEMING DE OLIVEIRA
Hoje em dia, o cinema ambulante está absolutamente fora de moda, poder-se-à mesmo dizer que morreu.
Há algum tempo o Diário de Noticias publicou uma reportagem interessante sobre um dos últimos projeccionistas ambulantes, a trabalhar em Portugal. Aos 68 anos, continuava a levar pelo Alentejo, o cinema às costas.
Concomitantemente à eleição de Craveiro Lopes para a Presidência da República, O Alcoa, na primeira página de 2 de Agosto de 1951, defendia expressivamente que (…) através do cinema imoral, a juventude operária é docemente explorada por empresários sem escrúpulos que, aproveitando inteligentemente as preferências dos jovens, organizam programas-monstros, que lhes enchem as casas e os cofres. Com espectáculos suculentos de pornografia, crimes, imoralidades e violências, atraem facilmente os jovens. Os cartazes de reclame são, como é natural, a amostra mais convidativa, à maneira de forte aperitivo (…).
Mesmo assim, em 1955, quando arrancou a Campanha Nacional de Educação de Adultos-CNEA, onde se utilizou o cinema em salas próprias ou ambulante para ajudar à alfabetização, é o próprio CNEA que refere que muitas das pessoas das localidades visitadas nunca tinham visto cinema.
O crítico Lauro António escreveu que a primeira indicação da existência em Portugal de uma censura cinematográfica, data de 1919. Referindo-se a um Decreto de 1917, a Secretaria da Guerra, informou o País que o filme Os Últimos Acontecimentos no Norte do País, cujo tema era as tentativas de restauração da monarquia A Monarquia do Norte, no Porto, estava autorizado a ser exibido. Ainda nos anos finais da I República surgiram dois Decretos, um em 1925 e outro no início de 1926, que proibiram, e regularam a legislação sobre filmes, contra a moral oficial!
Já em plena Ditadura Militar, ainda antes da ascensão de Salazar ao poder, foi publicado o Dec.Lei nº 13564, de Maio de 1927, que irá influenciar a forma de visionamento dos filmes pela Censura. Esta lei, onde se incluía a referência à metragem mínima de 100 metros, obrigava à inscrição dos tradutores, importadores e produtores de películas cinematográficas, bem como a comunicação dos novos filmes e locais de estreia. Como apontou ainda o mesmo autor, a atividade da censura não é anterior à estreia do filme, mas sim posterior, deixando-se ao arbítrio dos empresários o seu cumprimento. Arbítrio condicionado pela Ditadura, que tinha o seu conceito de fitas perniciosas à educação, de incitamento ao crime, atentatórias da moral e do regime político-social vigentes. Da mesma forma, eram passíveis de censura as cenas que mostrassem maus tratos a mulheres, torturas a homens e animais, personagens nuas, bailes lascivos, operações cirúrgicas, execuções capitais, bordéis, sexo e homicídios. Bem como episódios de roubo com arrombamento ou violação de domicílio, sempre que estes fossem passíveis de ensinar os modos de actuação. Estas matérias ficavam sob a alçada da Inspecção-Geral dos Teatros-IGT, dependente do Ministério da Instrução Pública.
Em 1929, a IGT passou a depender do Ministério do Interior a quem cabia a censura de obras teatrais, fitas cinematográficas e tudo o mais que fosse conducente à eficiência da fiscalização dos espetáculos.
Dez anos mais tarde, estes serviços foram reorganizados e, em 1944, passaram a fazer parte do Secretariado Nacional de Informação-SNI. Um ano depois, foi instituída uma Comissão de Censura, abrangendo a censura teatral e cinematográfica. Esta Comissão era constituída pelo Secretário-Geral do Ministério (presidente), pelo Inspector dos Espectáculos (vice-presidente), nove vogais e um secretário. O SNI estava representado através de três delegados.
Em 1948, ficou assente que qualquer tipo de exibição só seria possível após a atribuição de uma Licença de Exibição, dependente de um visto prévio da Censura.
Foi a institucionalização do controlo, legislando ainda sobre a criação de salas de cinema e a segmentação etárias dos filmes. António Ferro, segundo se diz ainda, nunca admirou por princípio a censura !!!, mas não a combateu, encaixando os desejos e justificações de Salazar, talvez por também servir os seus propósitos. Quando ainda não era o mentor da propaganda do Estado Novo, nas suas entrevistas a Salazar no início dos anos trinta, questionou-o sobre esta questão, ao que este respondeu que eu compreendo que a censura os irrite, porque não há nada que o homem considere mais sagrado do que o seu pensamento e do que a expressão do seu pensamento. Vou mais longe: chego a concordar que a censura é uma instituição defeituosa, injusta, por vezes, sujeita ao livre arbítrio dos censores, às variantes do seu temperamento, às consequências do seu mau humor. Salazar, queixando-se de ter sido, ele próprio, vítima da censura durante a I República, o que lhe deixou um sabor amargo, justificou-se, que a censura, hoje por muito paradoxal que a afirmação pareça, constitui a legítima defesa dos Estados livres, independentes, contra a grande desorientação do pensamento moderno, a revolução internacional da desordem (soviética).
Salazar sabia que os factos só se tornam verdades, quando deles existe conhecimento, pelo que se irá encarregar de fornecer as suas verdades à população, ainda que construindo uma outra (a sua) realidade.
A esmagadora maioria dos filmes censurados, era proveniente do estrangeiro. Mesmo mais tarde, entre 1964 e 1967, foram levados à Censura 1301 filmes, sendo que, destes, 145 vieram a ser proibidos, e 693 autorizados, embora com cortes mais ou menos profundos.
Até 1936, as malhas da censura pareciam alargar-se mas, com o início da Guerra Civil, a censura tornou-se mais activa.
Durante a Guerra, a diversos filmes anti-nazis não foi autorizada exibição. Portugal foi, nesse domínio, palco de confrontos entre os beligerantes. Se a máquina alemã encontrava público, principalmente em sectores políticos, militares e para-militares, a indústria cinematográfica norte-americana levava a melhor em termos populares. As facções beligerantes faziam exibições privadas, mas os Aliados conseguiram, após resistência dos exibidores, que temiam confrontos entre o público, a projecção de documentários de guerra, de propaganda, antes dos filmes de fundo. Após o final da Guerra, numa curta fase de pretensa distensão do regime, entraram em Portugal filmes como Casablanca, que em Lisboa se manteve em cartaz na mesma sala o tempo recorde de dez semanas. Mas o cerco voltou a apertar, tendo como grandes vítimas obras do neo-realismo italiano e alguma filmografia francesa. Por outro lado, os filmes do Leste Europeu e soviéticos eram, à partida suspeitos, e portanto vetados.
Mas como dissemos, mesmo depois da Guerra, o cinema em si era objeto de atenção particular do regime. Escrevia-se em Alcobaça, em 1947, in O Alcoa, sob a pena do articulista Mendes e Sousa que, o cinema é, sem dúvida, um dos mais terríveis inimigos da infância. Raríssimos são os filmes exibidos nas casas de espectáculo que possam ser vistos pelos olhos inocentes das nossas crianças (…). Na verdade o que é que hoje se aprende no cinema? Aprende-se o que ele ensina. E a maioria esmagadora ensina a roubar com cenas de banditismo, ensina a matar com cenas cruéis de ódio e guerra, ensina a perverter o coração, com cenas de amor impuro e degradante (…). a paixão pelo cinema entre a maioria das crianças das cidades e até de muitas vilas é verdadeiramente cega. Passa-se fome, não se compra o necessário, rouba-se até para comprar um bilhete de cinema (…). Num inquérito feito por um distinto médico num liceu de Lisboa há coisas que nos podem ilucidar. Do inquérito se deduz que os filmes preferidos pelas crianças sãos os filmes de amor, de ódio e de guerra. Os depoimentos são deveras eloquentes. Dizia um: gosto dos filmes com amores, aventuras, duelos, ciúmes e mulheres bonitas. É a alma da criança prevertida, é o retrato da maioria dos pequenos frequentadores de cinema (…). Por meio de um instrumento chamado hipnógrafo adaptado à cama, verificaram que o sono de uma criança que acaba de chegar do cinema é continuamente (quase de minuto a minuto) cortado por estremecimentos, agitações, reajustamentos de posição, etc. (…).
No que diz respeito à filmografia portuguesa, existem registos e referências a filmes com partes censuradas desde, pelo menos, 1937. Sabe-se que a versão que nos chegou de Maria Papoila, sofreu cortes. O que não impediu o facto deste ter sido, todavia, o primeiro filme financiado pelo SPN.
No ano seguinte, A Aldeia da Roupa Branca, sofreu um pequeno corte, pequeno mas ainda assim um corte, numa cena considerada imoral.
Em 1952, a película Nazaré foi exibida com cortes, como José Tempero salientava.
A censura no cinema, no entanto, não se exercia apenas de forma ativa. Os importadores não compravam algo que admitissem ser passível da sua acção, de modo a evitar despesas e problemas. Preferiam a censura total, em vez da projeção com cortes. Desta forma, viam restituído o sinal pago pela sua importação. Caso o filme fosse exibido com cortes, corriam o risco dos filmes, esvaziados de cenas por vezes fundamentais, não agradarem ao público. Do ponto de vista dos realizadores, para além do facto de muitos serem a favor do regime, a auto-censura assumiu-se, no tempo, como uma prática. Constitui a prova de que afinal o sistema funcionava como o regime no fundo desejava. Se à partida se liberalizava a produção cinematográfica nacional, pois não se controlavam os argumentos e filmagens, ninguém se daria ao trabalho de avançar com um projecto passível de ser censurado no final.
A criação do Fundo do Cinema Nacional (FCN), a partir de 1948, alegadamente como forma de tornar viável o cinema português, não foi mais do que uma forma de censura. A indústria de cinema tornava-se refém do julgamento governamental, do que deve ou não ser produzido, através da atribuição dos subsídios. Embora tivesse sempre como fiel da balança os critérios da lei de 1927, a censura cinematográfica, tal como a exercida sobre outras artes, variava conforme quem a exercia e a conjuntura.
Após a tomada de Damão, Goa e Diu em 1961, nenhum filme indiano foi autorizado a passar em Portugal até 1974, independentemente do assunto que abordasse.
Com o desenvolvimento da guerra de África, a repressão passou a incidir, entre o mais, sobre filmes de temática pacifista, alegadamente para não comprometer o esforço nacional e por em causa a solidariedade das famílias com rapazes a combater em África. A partir desta época, com destaque para os anos da década de 1970, aumentou o número de filmes nacionais proibidos. Mudavam-se os tempos, mas não as vontades, embora Sazarar já cá não estivesse.
De Julho de 1971 a Março de 1972, foram levados 304 filmes à Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos (C.E.C.E.). Destes após recursos, 37 foram definitivamente proibidos, e 132 parcialmente cortados. Ficou o registo de filmes como A Promessa, de António Macedo, produzido em 1972, e que é o primeiro filme onde a censura autoriza a visão de dois corpos nus. Sorte diversa tiveram películas como Sofia e a Educação Sexual, de Eduardo Geada, Nojo aos Cães, de António de Macedo, Nem Amantes, Nem Amigos, de Orlando Vitorino, Índia, de António Faria, Grande, Grande era a Cidade, de Rogério Ceitil, O Mal-Amado, de Fernando Matos Silva, Deixem-me ao Menos Subir às Palmeiras, de Lopes Barbosa, Quem Espera por Sapatos de Defunto, de César Monteiro ou, ainda nos ano 60, Catembe, de Faria de Almeida.
Todos eles, viram impedida a sua exibição.
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