FLEMING DE OLIVEIRA
Costa Melo, refere que a viagem de comboio de ida e volta a Lisboa na Linha do Oeste, feita recentemente, ocorreu num ambiente tão calmo e civilizado que quase me convenci de que estamos num daqueles países em que viajar de comboio para trabalhar e estudar é uma actividade normal.
Isto levou-o a recordar uma viagem com o primo Zé Costa, a prestar serviço militar em Caldas da Rainha há uns quarenta anos, num Domingo à noite, num comboio carregado de magalas, onde não havia nenhum lugar disponível para sentar. E lá fizeram grande parte do percurso de pé, a ouvir as histórias do meu primeiro (sargento), do Oliveira (cabo), do Silva (alferes) ou do Gomes (capitão).
Viajar na Linha do Oeste é, hoje em dia, como que embarcar numa viagem ao passado. Entre bonitas, mas descuradas, estações com painéis de azulejo à portuguesa e apeadeiros minúsculos, quase sempre desertos, uma via única conduz composições que se parecem alimentar-se de velhos hábitos que as sustentam em circulação. Rotinas que não são mais suficientes ou interessantes para motivar os passageiros, que têm vindo a trocar, definitivamente, o comboio por outros meios de locomoção.
Longe vão os tempos em que a animação era grande à paragem do comboio, por entre cumprimentos e gargalhadas, havia a preocupação dos viajantes no passar na estreita porta e descer dois degraus, sem perder o conteúdo dos sacos que transportavam.
Isto também é seu?, perguntava com cortesia o revisor, ajudando a sair a senhora mais atrapalhada, com o volume das compras.
Agora, já nem se vendem bilhetes na estação do Valado de Frades. As janelas brancas de madeira das bilheteiras, fecham-se dias seguidos e abrem apenas esporadicamente, nunca se sabe quando.
Ainda um dia destes andei de comboio e as pessoas estavam na gare, a bater o dente. Mas, porque razão a estação está quase sempre fechada? Se não abrirem a estação, vai haver cada vez menos gente a apanhar ali o comboio, aponta Cidália da Purificação, 70 anos, ex-guarda de passagem de nível. Sentada à porta de casa, esta ex-guarda da passagem de nível aquece o corpo ao sol do meio-dia, enquanto ultima os preparativos para o almoço. Os grelos verdes já estão arranjados, mas o frango e o arroz não a deixam tirar os olhos do relógio de parede. Não me posso atrasar, o meu neto vem almoçar a casa e tem de ir para a escola, explica no seu jeito de falar, meio cantarolado e algo nazareno.
Com a sua farda cinzenta com riscas vermelhas e de bandeira vermelha em punho, Cidália organizava a sua vida em turnos de oito horas. Entrava à meia-noite e saía às oito, entrava às oito e saía às quatro, ou entrava às quatro e saía à meia-noite. E estava sempre com os olhinhos bem abertos durante aquelas oito horas..
À medida que se avança na Linha do Oeste, a partir do Cacém, os prédios suburbanos altos, malfeitotes e cinzentões ficam para trás e aliviam-se os olhos nos vales verdes.
Luís Santos, guarda gratas recordações da Linha de caminho de ferro do Oeste.
Há 44 anos, eu e a minha mulher comprámos umas maletas novas e apanhámos o comboio em direcção à Figueira da Foz. Foi a nossa lua-de-mel. Lembro-me bem de ouvirmos tiros de aviso durante o percurso, porque havia obras na linha e o comboio tinha por isso de abrandar, à vezes mesmo de parar.
Na altura, os comboios eram pouco confortáveis.
Eram uns comboios vermelhos, com duas carruagens, com os bancos que mudavam de posição, para que os passageiros pudessem ir sempre de frente para a paisagem.
Mas, para quem depende dos comboios da Linha do Oeste para cumprir horários, esta inalterável modorra é, no mínimo, irritante e impossível.
Há poucos comboios. Cada vez menos. E as camionetas, que param mesmo à porta de casa, cada vez roubam mais passageiros. E o carro também, de carro chega-se mais depressa ao destino, refere Cidália. Desculpe, mas com esta conversa não me posso atrasar com o almoço do meu Zé. Esta linha foi quase sempre assim. Os comboios de Sintra é que mudaram, muito para melhor.
Cidália que pretende perceber de comboios, entende que há uma modernização que os passageiros gostariam de ver na Linha do Oeste, para a revitalizar. Bastava que electrificassem a via e introduzissem mais combóios. Era o suficiente para aumentar o número de passageiros.
Tem saudades do passado, Ti’ Cidália?
Sim e não! Querem mais comboios, afinal para quê? Para andarem vazios? A gente olha para as estradas e só vê carros, mesmo com a gasolina cara. Se aumentassem o número de composições em circulação, passávamos a ter ainda mais comboios, com menos gente, frisa com energia esta ex-guarda da passagem de nível, que sofre de achaques no peito que a incomodam bastante.
Em mais de 40 anos de profissão junto aos carris, Cidália assistiu aos progressos do caminho-de-ferro. Em 1960, lembra que, o trabalho não era nada fácil. Nessa altura, as cancelas eram umas folhas de ferro, com um fecho no meio. Aquilo custava um bocado a manobrar. Mas fazia-se, claro! Depois das folhas, vieram as manivelas e, mais tarde, as cancelas automáticas. Agora funciona tudo sozinho..
Não obstante o progresso, os receios de Cidália enquanto trabalhou, sempre a perseguiram. Estava sempre com medo que o telefone não tocasse ou eu não o ouvisse. Muita renda e muita malha fiz para casa e filhos, a fim de me manter acordada e atenta. Controlado o sono, difícil era por vezes controlar os impacientes condutores das motas ou carros. Passavam até com as cancelas fechadas e com o comboio quase a chegar. E quantas vezes não abriam eles mesmos as cancelas? Era preciso estar sempre à tabela, às vezes até me chamavam nomes. Agora, se passarem com a cancela fechada, a responsabilidade é só deles. E se tiverem um azar, então que se queixem.
Depois de uma vida inteira a ver passar os comboios Cidália, teme que as mudanças anunciadas para a Linha do Oeste a obriguem a deixar a casinha do velho apeadeiro onde ainda vive com o marido, que também foi ferroviário.
Nos não queríamos ter de ir embora daqui. Sempre vou fazendo as coisinhas da casa e falando com os vizinhos, diz com os olhos aos poucos a molhar-se. Levada pelas memórias, Cidália foi buscar a sua velhinha bandeira vermelha e postada junto à cancela, ergueu-a enquanto fixava o olhar na distante curva da linha. Era assim que fazia, exemplifica embarcando, uma vez mais, na carruagem do passado.
Tenho saudades, tenho muitas saudades, suspira.
Afinal não é a única…
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