CAPÍTULO
III
UM SUBMARINO NO CABO DO MUNDO
Quando a Guerra acabou, muitas pessoas andaram
pela baixa do Porto, fazendo o enterro
de Hitler e a dando vivas aos Aliados, ante o nariz torcido de polícias e outras
personalidades bem sinistras.
Como depois das dificuldades vem muitas vezes
a alegria, o fim da guerra transformou-se num momento de expectativa e otimismo,
sem prejuízo de recriminação do Estado Novo.
O júbilo e clima de contentamento foram
rapidamente ofuscados no Porto pela repressão das forças do regime que não
toleraram, como referi atrás, o que entenderam poder ser o fermento de
transformações sociais.
De facto, as manifestações tiveram um cunho
de óbvia censura, daí que ao terceiro dia, o comando da PSP concentrou na atualmente
denominada Praça Humberto Delgado um forte contingente policial, desenvolvendo
cargas em formação cerrada, comandante à frente.
As cargas de cavalaria da GNR do Quartel do
Carmo, perseguiram populares mesmo em cima de passeios e não raro vezes as
patas dos cavalos subiram as soleiras das portas dos cafés.
Em breve, as manifestações estenderam-se a
outros pontos das cidades do Porto e Matosinhos em que participaram o meu Pai,
não obstante eu ter nascido há menos de 3 meses, e um amigo, assumindo o aspeto
de um pacífico levantamento, não uma revolução.
Seja como for, incomodado o Regime Corporativo,
todavia sobreviveu. E como os problemas do pós-guerra, alteraram as relações
dos Aliados e culminaram na guerra fria, as esperanças da cidade e do país
seriam relegadas para os anos de 1970.
Por essa altura, dia 3
de junho de 1945, a Guerra na Europa já tinha terminado há quase um mês, os
tripulantes do submarino alemão UB-1277 chegaram a terra na praia de Angeiras
Norte/Matosinhos, após um mês de fome, de
frio e de silêncio, como disseram.
Este lobo cinzento, tinha saído da Alemanha
em 22 de abril de 1945 com o objetivo de navegar desde Bergen, através do
estreito da Islândia rumo ao Atlântico e patrulhar a entrada do Canal da
Mancha, mas
duas semanas depois recebia a mensagem da rendição incondicional, navegar à
superfície, e se dirigir ao porto aliado mais próximo.
Era um
submarino Tipo VIIC/41, mas nunca disparou um torpedo, não entrou em combate,
já que se encontrou em missão de treino desde maio de 1944.
O submarino
havia navegado 42 dias debaixo de água, apenas com o turbo de ventilação à
superfície, pois emergir poderia ser fatal[1].
Apesar daquelas ordens, o Oblt. Peter-Ehrenreich Stever tomou a
decisão de afundar o navio junto a Portugal e evitar que ficasse em mãos
inimigas.
Depois de abrirem as escotilhas e as janelas
de ventilação, que permitiram a entrada de água no interior da unidade naval, em pequenos botes de borracha,
os tripulantes desembarcaram na Praia de Angeiras. O comandante foi o último a abandonar
a embarcação, como é da praxe e a Honra da Marinha e o submarino começou a
afundar lentamente.
A tripulação era composta por 45
homens, quatro dos quais eram oficiais (comandante, imediato, segundo imediato
e oficial de máquinas) para além dos quatro sargentos e 37 marinheiros. A idade
da tripulação deste submarino rondava entre os 18 e os 25 anos de idade, sendo
o capitão o mais velho (25 anos). Peter-Ehrenreich
Stever entregou-se com os seus subordinados ao Chefe do Posto de Guarda
Fiscal de Angeiras, Rodolfo Mesquita que de imediato deu o alerta ao Instituto
de Socorro a Náufragos/I.S.N./de Leixões.
A tripulação desembarcou ajudada por alguns
pescadores e salva-vidas Carvalho de
Araújo [2], do porto de Leixões, foi internada logo
no Castelo de São José da Foz do Douro, e aí auxiliada pela comunidade alemã
com roupas, tabaco, aguardente e alimentos. Esta era uma comunidade forte e
solidária, sendo o Colégio Alemão um centro de convívio e de reforço da coesão política
dos alemães que viviam no Porto. Um sargento conhecia a família bávara de um
casal de alemães residentes no Porto que, por isso, o ajudou especialmente.
Graças a esse marinheiro e aos esforços da
Caritas, um menino austríaco, com os seus 8 ou 9 anos, cujo nome só recordo ser
Fritz e suponho natural da zona de
Linz, veio depois da Guerra, com muitos outros passar
uns tempos Portugal, tendo ficado alojado em Miramar em casa de uns tios meus,
que não tinham filhos e viviam ao lado da dos meus Pais. Portugal era o
paraíso, não que assim o dissesse a mim, mas a minha Mãe, que falava alemão.
O
pai, como muitos homens morrera na guerra. Inicialmente ficou perplexo como as
casas semidestruídas que conhecia, deram lugar a outras que lhe pareciam
enormes e muito bonitas e com a possibilidade de usar casa de banho, roupa
nova, comer sem restrições coisas que desconhecia (queijo ou bananas), ou a que
se desabituara (bifes) de
tal maneira que ficava por vezes com dores de barriga, e a apanhar sol e tomar
banhos de mar. Os meus tios ainda o tentaram convencer a ficar com eles, mas o Fritz não quis. Estava com saudades da
mãe pelo que voltou de comboio à Áustria.
Veio uma vez a Portugal e a Miramar por
alturas de 1988, para visitar os meus tios, mas estes já haviam falecido. Disse
que um dia iria voltar, o que não aconteceu e perdi o seu rasto.
O U-Boat tinha ao todo 4 salva-vidas, cada qual
para 10 homens. Os
tripulantes ainda conseguiram trazer consigo alguns mantimentos, nomeadamente
queijo que alguns pescadores nunca tinham provado e que os deixou admirados e
gulosos, bem como roupas, binóculos e outros instrumentos.
Os marinheiros tiveram ainda tempo de formar
e cantar o Hino Alemão (pelo menos os pescadores assim o supuseram) e de pedir
para beber alguma coisa, como cerveja.
De Portugal foram enviados para Inglaterra
onde permaneceram, como prisioneiros, durante cerca de 2 anos.
Evitaram, assim, ser capturados pelos soviéticos.
Os soviéticos tomaram conta de Kiel.
Entregarmo-nos aos russos era morte na certa. Argentina era muito longe, terá
pensado o Oblt. Peter-Ehrenreich Stever avançando razões que justificam que o
submarino, esteja afundado, mais precisamente, num sítio chamado Cabo do Mundo.
Cerca de 40 anos depois, alguns tripulantes
vieram a Portugal reviver o tempo que haviam passado e agradecer aos pescadores
o apoio recebido, tendo mesmo uns dois ou três deles devolvido, na medida do
possível, alguns coisas de vestir que na altura lhes foi emprestada. O alemão que
havia levado uma samarra, na impossibilidade de a restituir, ofereceu um bom
agasalho (kispo) ao proprietário, já
velhote, mas ainda vivo.
No regresso a Alemanha enviaram para Angeiras/ISN,
como agradecimento, a foto oficial da tripulação do U-1277 que ali ainda é
conservada.
Durante alguns anos, a RFA pediu ao governo
português, através do Ministério dos Negócios Estrangeiros, licença para vir
buscar o submarino. Apesar de o governo português nunca ter levantado objeções,
isso nunca se concretizou sendo que a RFA tinha já contratado uma empresa
especializada para proceder ao resgate.
Na Estação do I.S.N/Angeiras, junto aos
barcos de pesca, ainda existe uma das balsas, embora já em mau estado, que
pertenceu ao submarino alemão. Parece feita em papel, mas salvou a vida a uns
12 marinheiros nessa manhã de 1945.
Não obstante a tripulação se ter rendido,
nunca comunicou concretamente a localização do submarino, o que só aconteceu no
início dos anos de 1960, graças e mergulhadores, embora os pescadores há muito
o suspeitavam, dado em certo local haver normalmente muito mais fanecas. Mas os
pescadores guardaram segredo por causa da concorrência.
Ouvi várias vezes, em
casa de meus Pais, falar do incidente com este submarino. A minha Mãe, estudara
no Colégio Alemão, do Porto até 1939, pelo que conheceu várias famílias de
alemães, nomeadamente a que deu especial assistência ao sargento. Depois da Guerra o Colégio Alemão, do Porto,
encerrou reabrindo em 1953, totalmente remodelado.
Um amigo do meu Pai antigo colega da equipa
de Hóquei em Campo, no Leixões, era um exímio nadador e apaixonado pela pesca
desportiva que praticava com um pequeno barco a motor. Quando soube de um bom mar
em Angeiras, onde havia mais fanecas que o habitual, passou a frequentá-lo, sem
também espalhar a notícia.
Em junho de 1945 poucas notícias saíram sobre
este assunto. O Jornal de Notícias deu uma pequena notícia na primeira página
(apenas 23 linhas) realçando que a tripulação fora salva por pescadores da
zona. No dia seguinte, na página 4, deu conta do transporte da tripulação para
Lisboa pelo contratorpedeiro Dão [3]
(sendo 22h,30m) que veio ao Porto com esse objetivo.
Hoje em dia os destroços do U-1277 não são
mais que um interessante motivo para os mergulhadores. O casco do navio está
coberto de milhares de pequenos peixes, congros (os maiores que se podem
encontrar nestas águas), grandes polvos e uma maravilhosa comunidade de
anémonas rosadas provenientes do Mar do Norte. Na torre, os mergulhadores
apenas podem observar o casco de pressão, o periscópio e a escotilha sem tampa.
Em 1945, a Grã-Bretanha detinha centenas de milhares de prisioneiros alemães
no seu território, no Canadá, nos Estados Unidos e no Norte de África. No
entanto, para usá-los como trabalho, o governo teria que tirá-los da proteção
concedida pelas Convenções de Genebra. Assim, a Grã-Bretanha mudou o status dos
seus prisioneiros de guerra para pessoal inimigo rendido.
As Convenções de Genebra exigem que os
prisioneiros de guerra sejam repatriados logo que as hostilidades cessem, mas a
Grã-Bretanha creio que só em 1947 permitiu que o último dos alemães detidos
voltasse ao seu país.
Este acontecimento foi
recordado pela SIC Notícias no programa Aqui
Há História), TSF e numa peça de teatro, levada a cena em 2 de junho de
2015, na Praia do Funtão/ Matosinhos protagonizada por Rui Spranger, Laura
Casano e Valeria Benigni, com encenação de Renzo Sicco e João Luiz (veja-se
foto adiante).
Rui Spranger sublinhou que, apesar de a peça se desenrolar no local onde
se deu a rendição, não é uma recriação histórica do que aconteceu na Praia de
Angeiras.
Tem como personagens, o pai, um dos
marinheiros que estava no submarino, e a filha que perdoa o pai por ser nazi.
Rui Spranger interpretou o papel de alguém que não se arrepende do que fez na
II Guerra.
A peça U-Boat 1277, foi apresentada
em Itália, encenada pelo italiano Renzo Sicco, produzida pela companhia
Assemblea Teatro/ Turim, em coprodução com o Pé-de-Vento/Porto, com o apoio da
Câmara Municipal de Matosinhos, e integrou o Festival de Teatro Contemporâneo
de Ligúria/Génova.
[1]Fora
construído em 1943, podia descer a 250m, percorrer 8.500 milhas a 10 nós e teve
mais 90 iguais. O U-1277 tinha 67,23 metros de comprimento, 6,20 metros de
pontal, 4,74 metros de boca e 9,95 metros de altura máxima. Utilizava dois dos
quatros motores disponíveis que geravam uma força de 3200hp com velocidade
máxima de 17,6 nós (superfície) e 7,6 nós quando (submerso)
Estava
equipado com quatro tubos de lançamento de torpedos na proa, dois a bombordo e
dois a estibordo (todos de 533mm), transportando um total de 14 torpedos.
Possuía também, no exterior, artilharia antiaérea constituída por um canhão
automático de 37mm e quatro metralhadoras de 20mm equipadas aos pares
Angeiras Norte
possui um areal muito extenso que prima pela ausência de formações rochosas, o
que facilita um desembarque.
[2] Houve
vários navios portugueses afetados com a denominação Carvalho Araújo.
O caça-minas português Augusto Castilho escoltava o
navio mercante S. Miguel em 14 de outubro de 1918, quando este foi atacado pelo
submarino alemão U-139. O caça-minas, sob o comando de Carvalho Araújo, tentou
combater o poder de fogo superior do submarino e, finalmente, protegeu o S.
Miguel interpondo-se entre ele e o navio atacante, e dando-lhe tempo para ficar
fora do alcance deste. Após duas horas de combate, com as máquinas
inutilizadas, o Augusto Castilho rendeu-se. O comandante Carvalho Araújo foi
morto pelo último tiro do submarino.
A partir
desse momento, o submarino alemão registou os acontecimentos em filme (que não
pude consultar), para sublinhar a humanidade dos vencedores. O médico alemão
assistiu os feridos portugueses e estes puderam embarcar em dois pequenos
salva-vidas que dois dias depois atingiram Santa Maria, nos Açores, com 35
sobreviventes. Um ferido sucumbiu durante a jornada.
O filme mostra
como marinheiros do submarino vão a bordo do caça-minas para retirar munições e
mantimentos e como, depois, o afundaram detonando explosivos colocados a bordo
e disparando contra o navio na linha de água. Os alemães homenagearam o
comandante e outros tripulantes do Augusto Castilho mortos no combate,
lançando-os ao mar envolvidos na bandeira portuguesa.
Rodolfo
Mesquita tem uma Rua em Angeiras com o seu nome.
Durante a
Guerra Peninsular, a 6 de Junho de 1808, o Sargento-mor Raimundo José Pinheiro
ocupou o Castelo de S. João Batista da Foz, e, na madrugada seguinte, fez
hastear a Bandeira das Quinas, primeiro ato de reação portuguesa contra a
ocupação napoleónica.
Perante a
evolução das embarcações e da artilharia, progressivamente perdeu a função
defensiva-militar, sendo utilizado como prisão.
No século XX
foi residência da poetisa Florbela Espanca, casada com um oficial da guarnição.
Os Alemães
foram para aí transferidos, pois tratava-se de uma unidade a cargo do Exército,
com guarnição que os podia efetivamente vigiar. Foi entendido não alojar estes
detidos conjuntamente com os militares presos no Presídio Militar do Porto.
Informação do
Comandante da Delegação do Norte do I.D.N., aí sediada.
[3] Em 8 de setembro
de 1936, eclodiu nos navios Bartolomeu Dias, Afonso de Albuquerque bem como o
Dão, fundeados no Tejo, uma sublevação de marinheiros.
Na sua
preparação tiveram papel determinante os comunistas e a Organização
Revolucionária da Armada/ORA, com intensa intervenção política, num momento em
que o fascismo procurava consolidar-se e a resistência democrática ganhava
ímpeto.
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