sexta-feira, 4 de janeiro de 2019



CAPÍTULO III
UM SUBMARINO NO CABO DO MUNDO





 Quando a Guerra acabou, muitas pessoas andaram pela baixa do Porto, fazendo o enterro de Hitler e a dando vivas aos Aliados, ante o nariz torcido de polícias e outras personalidades bem sinistras.
  Como depois das dificuldades vem muitas vezes a alegria, o fim da guerra transformou-se num momento de expectativa e otimismo, sem prejuízo de recriminação do Estado Novo.
  O júbilo e clima de contentamento foram rapidamente ofuscados no Porto pela repressão das forças do regime que não toleraram, como referi atrás, o que entenderam poder ser o fermento de transformações sociais.
  De facto, as manifestações tiveram um cunho de óbvia censura, daí que ao terceiro dia, o comando da PSP concentrou na atualmente denominada Praça Humberto Delgado um forte contingente policial, desenvolvendo cargas em formação cerrada, comandante à frente.
  As cargas de cavalaria da GNR do Quartel do Carmo, perseguiram populares mesmo em cima de passeios e não raro vezes as patas dos cavalos subiram as soleiras das portas dos cafés.
   Em breve, as manifestações estenderam-se a outros pontos das cidades do Porto e Matosinhos em que participaram o meu Pai, não obstante eu ter nascido há menos de 3 meses, e um amigo, assumindo o aspeto de um pacífico levantamento, não uma revolução.
  Seja como for, incomodado o Regime Corporativo, todavia sobreviveu. E como os problemas do pós-guerra, alteraram as relações dos Aliados e culminaram na guerra fria, as esperanças da cidade e do país seriam relegadas para os anos de 1970.
 
  Por essa altura, dia 3 de junho de 1945, a Guerra na Europa já tinha terminado há quase um mês, os tripulantes do submarino alemão UB-1277 chegaram a terra na praia de Angeiras Norte/Matosinhos, após um mês de fome, de frio e de silêncio, como disseram.
  Este lobo cinzento, tinha saído da Alemanha em 22 de abril de 1945 com o objetivo de navegar desde Bergen, através do estreito da Islândia rumo ao Atlântico e patrulhar a entrada do Canal da Mancha, mas duas semanas depois recebia a mensagem da rendição incondicional, navegar à superfície, e se dirigir ao porto aliado mais próximo.
  Era um submarino Tipo VIIC/41, mas nunca disparou um torpedo, não entrou em combate, já que se encontrou em missão de treino desde maio de 1944.
  O submarino havia navegado 42 dias debaixo de água, apenas com o turbo de ventilação à superfície, pois emergir poderia ser fatal[1].
  Apesar daquelas ordens, o Oblt. Peter-Ehrenreich Stever tomou a decisão de afundar o navio junto a Portugal e evitar que ficasse em mãos inimigas.
  Depois de abrirem as escotilhas e as janelas de ventilação, que permitiram a entrada de água no interior da unidade naval, em pequenos botes de borracha, os tripulantes desembarcaram na Praia de Angeiras. O comandante foi o último a abandonar a embarcação, como é da praxe e a Honra da Marinha e o submarino começou a afundar lentamente.
  A tripulação era composta por 45 homens, quatro dos quais eram oficiais (comandante, imediato, segundo imediato e oficial de máquinas) para além dos quatro sargentos e 37 marinheiros. A idade da tripulação deste submarino rondava entre os 18 e os 25 anos de idade, sendo o capitão o mais velho (25 anos). Peter-Ehrenreich Stever entregou-se com os seus subordinados ao Chefe do Posto de Guarda Fiscal de Angeiras, Rodolfo Mesquita que de imediato deu o alerta ao Instituto de Socorro a Náufragos/I.S.N./de Leixões.  
  A tripulação desembarcou ajudada por alguns pescadores e salva-vidas Carvalho de Araújo [2], do porto de Leixões, foi internada logo no Castelo de São José da Foz do Douro, e aí auxiliada pela comunidade alemã com roupas, tabaco, aguardente e alimentos. Esta era uma comunidade forte e solidária, sendo o Colégio Alemão um centro de convívio e de reforço da coesão política dos alemães que viviam no Porto. Um sargento conhecia a família bávara de um casal de alemães residentes no Porto que, por isso, o ajudou especialmente.
  Graças a esse marinheiro e aos esforços da Caritas, um menino austríaco, com os seus 8 ou 9 anos, cujo nome só recordo ser Fritz e suponho natural da zona de Linz, veio depois da Guerra, com muitos outros passar uns tempos Portugal, tendo ficado alojado em Miramar em casa de uns tios meus, que não tinham filhos e viviam ao lado da dos meus Pais. Portugal era o paraíso, não que assim o dissesse a mim, mas a minha Mãe, que falava alemão.
O pai, como muitos homens morrera na guerra. Inicialmente ficou perplexo como as casas semidestruídas que conhecia, deram lugar a outras que lhe pareciam enormes e muito bonitas e com a possibilidade de usar casa de banho, roupa nova, comer sem restrições coisas que desconhecia (queijo ou bananas), ou a que se desabituara (bifes) de tal maneira que ficava por vezes com dores de barriga, e a apanhar sol e tomar banhos de mar. Os meus tios ainda o tentaram convencer a ficar com eles, mas o Fritz não quis. Estava com saudades da mãe pelo que voltou de comboio à Áustria.
  Veio uma vez a Portugal e a Miramar por alturas de 1988, para visitar os meus tios, mas estes já haviam falecido. Disse que um dia iria voltar, o que não aconteceu e perdi o seu rasto.
 
  O U-Boat tinha ao todo 4 salva-vidas, cada qual para 10 homens. Os tripulantes ainda conseguiram trazer consigo alguns mantimentos, nomeadamente queijo que alguns pescadores nunca tinham provado e que os deixou admirados e gulosos, bem como roupas, binóculos e outros instrumentos.
  Os marinheiros tiveram ainda tempo de formar e cantar o Hino Alemão (pelo menos os pescadores assim o supuseram) e de pedir para beber alguma coisa, como cerveja.
  De Portugal foram enviados para Inglaterra onde permaneceram, como prisioneiros, durante cerca de 2 anos. 
  Evitaram, assim, ser capturados pelos soviéticos. Os soviéticos tomaram conta de Kiel. Entregarmo-nos aos russos era morte na certa. Argentina era muito longe, terá pensado o Oblt. Peter-Ehrenreich Stever avançando razões que justificam que o submarino, esteja afundado, mais precisamente, num sítio chamado Cabo do Mundo.
  Cerca de 40 anos depois, alguns tripulantes vieram a Portugal reviver o tempo que haviam passado e agradecer aos pescadores o apoio recebido, tendo mesmo uns dois ou três deles devolvido, na medida do possível, alguns coisas de vestir que na altura lhes foi emprestada. O alemão que havia levado uma samarra, na impossibilidade de a restituir, ofereceu um bom agasalho (kispo) ao proprietário, já velhote, mas ainda vivo.
  No regresso a Alemanha enviaram para Angeiras/ISN, como agradecimento, a foto oficial da tripulação do U-1277 que ali ainda é conservada.
   Durante alguns anos, a RFA pediu ao governo português, através do Ministério dos Negócios Estrangeiros, licença para vir buscar o submarino. Apesar de o governo português nunca ter levantado objeções, isso nunca se concretizou sendo que a RFA tinha já contratado uma empresa especializada para proceder ao resgate.
  Na Estação do I.S.N/Angeiras, junto aos barcos de pesca, ainda existe uma das balsas, embora já em mau estado, que pertenceu ao submarino alemão. Parece feita em papel, mas salvou a vida a uns 12 marinheiros nessa manhã de 1945.
  Não obstante a tripulação se ter rendido, nunca comunicou concretamente a localização do submarino, o que só aconteceu no início dos anos de 1960, graças e mergulhadores, embora os pescadores há muito o suspeitavam, dado em certo local haver normalmente muito mais fanecas. Mas os pescadores guardaram segredo por causa da concorrência.
 
Ouvi várias vezes, em casa de meus Pais, falar do incidente com este submarino. A minha Mãe, estudara no Colégio Alemão, do Porto até 1939, pelo que conheceu várias famílias de alemães, nomeadamente a que deu especial assistência ao sargento.  Depois da Guerra o Colégio Alemão, do Porto, encerrou reabrindo em 1953, totalmente remodelado.
  Um amigo do meu Pai antigo colega da equipa de Hóquei em Campo, no Leixões, era um exímio nadador e apaixonado pela pesca desportiva que praticava com um pequeno barco a motor. Quando soube de um bom mar em Angeiras, onde havia mais fanecas que o habitual, passou a frequentá-lo, sem também espalhar a notícia.
  Em junho de 1945 poucas notícias saíram sobre este assunto. O Jornal de Notícias deu uma pequena notícia na primeira página (apenas 23 linhas) realçando que a tripulação fora salva por pescadores da zona. No dia seguinte, na página 4, deu conta do transporte da tripulação para Lisboa pelo contratorpedeiro Dão [3] (sendo 22h,30m) que veio ao Porto com esse objetivo.
  Hoje em dia os destroços do U-1277 não são mais que um interessante motivo para os mergulhadores. O casco do navio está coberto de milhares de pequenos peixes, congros (os maiores que se podem encontrar nestas águas), grandes polvos e uma maravilhosa comunidade de anémonas rosadas provenientes do Mar do Norte. Na torre, os mergulhadores apenas podem observar o casco de pressão, o periscópio e a escotilha sem tampa.
 
  Em 1945, a Grã-Bretanha detinha centenas de milhares de prisioneiros alemães no seu território, no Canadá, nos Estados Unidos e no Norte de África. No entanto, para usá-los como trabalho, o governo teria que tirá-los da proteção concedida pelas Convenções de Genebra. Assim, a Grã-Bretanha mudou o status dos seus prisioneiros de guerra para pessoal inimigo rendido.
    As Convenções de Genebra exigem que os prisioneiros de guerra sejam repatriados logo que as hostilidades cessem, mas a Grã-Bretanha creio que só em 1947 permitiu que o último dos alemães detidos voltasse ao seu país.
  Este acontecimento foi recordado pela SIC Notícias no programa Aqui Há História), TSF e numa peça de teatro, levada a cena em 2 de junho de 2015, na Praia do Funtão/ Matosinhos protagonizada por Rui Spranger, Laura Casano e Valeria Benigni, com encenação de Renzo Sicco e João Luiz (veja-se foto adiante).
  Rui Spranger sublinhou que, apesar de a peça se desenrolar no local onde se deu a rendição, não é uma recriação histórica do que aconteceu na Praia de Angeiras.
  Tem como personagens, o pai, um dos marinheiros que estava no submarino, e a filha que perdoa o pai por ser nazi. Rui Spranger interpretou o papel de alguém que não se arrepende do que fez na II Guerra.
   A peça U-Boat 1277, foi apresentada em Itália, encenada pelo italiano Renzo Sicco, produzida pela companhia Assemblea Teatro/ Turim, em coprodução com o Pé-de-Vento/Porto, com o apoio da Câmara Municipal de Matosinhos, e integrou o Festival de Teatro Contemporâneo de Ligúria/Génova.


[1]Fora construído em 1943, podia descer a 250m, percorrer 8.500 milhas a 10 nós e teve mais 90 iguais. O U-1277 tinha 67,23 metros de comprimento, 6,20 metros de pontal, 4,74 metros de boca e 9,95 metros de altura máxima. Utilizava dois dos quatros motores disponíveis que geravam uma força de 3200hp com velocidade máxima de 17,6 nós (superfície) e 7,6 nós quando (submerso) 
  Estava equipado com quatro tubos de lançamento de torpedos na proa, dois a bombordo e dois a estibordo (todos de 533mm), transportando um total de 14 torpedos. Possuía também, no exterior, artilharia antiaérea constituída por um canhão automático de 37mm e quatro metralhadoras de 20mm equipadas aos pares
  Angeiras Norte possui um areal muito extenso que prima pela ausência de formações rochosas, o que facilita um desembarque.
[2] Houve vários navios portugueses afetados com a denominação Carvalho Araújo.
O caça-minas português Augusto Castilho escoltava o navio mercante S. Miguel em 14 de outubro de 1918, quando este foi atacado pelo submarino alemão U-139. O caça-minas, sob o comando de Carvalho Araújo, tentou combater o poder de fogo superior do submarino e, finalmente, protegeu o S. Miguel interpondo-se entre ele e o navio atacante, e dando-lhe tempo para ficar fora do alcance deste. Após duas horas de combate, com as máquinas inutilizadas, o Augusto Castilho rendeu-se. O comandante Carvalho Araújo foi morto pelo último tiro do submarino.
   A partir desse momento, o submarino alemão registou os acontecimentos em filme (que não pude consultar), para sublinhar a humanidade dos vencedores. O médico alemão assistiu os feridos portugueses e estes puderam embarcar em dois pequenos salva-vidas que dois dias depois atingiram Santa Maria, nos Açores, com 35 sobreviventes. Um ferido sucumbiu durante a jornada.
  O filme mostra como marinheiros do submarino vão a bordo do caça-minas para retirar munições e mantimentos e como, depois, o afundaram detonando explosivos colocados a bordo e disparando contra o navio na linha de água. Os alemães homenagearam o comandante e outros tripulantes do Augusto Castilho mortos no combate, lançando-os ao mar envolvidos na bandeira portuguesa.
 
   Rodolfo Mesquita tem uma Rua em Angeiras com o seu nome.

   Durante a Guerra Peninsular, a 6 de Junho de 1808, o Sargento-mor Raimundo José Pinheiro ocupou o Castelo de S. João Batista da Foz, e, na madrugada seguinte, fez hastear a Bandeira das Quinas, primeiro ato de reação portuguesa contra a ocupação napoleónica.
  Perante a evolução das embarcações e da artilharia, progressivamente perdeu a função defensiva-militar, sendo utilizado como prisão.
  No século XX foi residência da poetisa Florbela Espanca, casada com um oficial da guarnição.
  Os Alemães foram para aí transferidos, pois tratava-se de uma unidade a cargo do Exército, com guarnição que os podia efetivamente vigiar. Foi entendido não alojar estes detidos conjuntamente com os militares presos no Presídio Militar do Porto.
  Informação do Comandante da Delegação do Norte do I.D.N., aí sediada.
[3] Em 8 de setembro de 1936, eclodiu nos navios Bartolomeu Dias, Afonso de Albuquerque bem como o Dão, fundeados no Tejo, uma sublevação de marinheiros.
  Na sua preparação tiveram papel determinante os comunistas e a Organização Revolucionária da Armada/ORA, com intensa intervenção política, num momento em que o fascismo procurava consolidar-se e a resistência democrática ganhava ímpeto.

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