quinta-feira, 17 de abril de 2014

-ATÉ AO LAVAR DE CESTOS É VINDIMA.-

-ATÉ AO LAVAR DE CESTOS É VINDIMA.-

Fleming de Oliveira




Enquanto nos armazéns e lagares se ultimava a faina de consertos, se esfregava e lavava o vasilhame, as vinhas dos Montes começavam a animar-se com uma alegria vibrante, ruidosa e contagiosa.
Chegou a hora de desanuviamento para pessoas que, não obstante a amargura contínua da existência, pelo menos uma vez no ano, sabem rir e cantar, os ranchos de mulheres, o transporte dos cestos ou latões abarrotados de uvas, as canções entrecortadas da quadrilhice entre os sexos, no geral um pouco maliciosa, tudo a evocar antigas festas populares.
O carro com os trabalhadores chegava por volta das 7h00. No chão, já se encontravam alinhados os cestos, procuravam-se as tesouras e as sogras (pano que as mulheres põem à cabeça quando vão carregar o cesto). O pessoal começava a dirigir-se para a vinha bem cheia. Em breve, começada a jornada até às tinas, nas redondezas quase só se ouvia o barulho ritmado das tesouras e alguma cantoria do mulherio.
A vindima propriamente dita (a separação dos cachos da vide), competia tradicionalmente ao mulherio e a rapazes, munidos de uma navalha ou tesoura que cortam as uvas e as lançam, depois de escolhidas, nuns pequenos cabazes ou latões, para serem conduzidos por homens para o lagar, onde são esvaziados.

Quem trabalha duro necessita do mata bicho.
O Manel nunca se esquecia de juntar uns cavacos e preparar um lume com aquela mestria de muitos anos, assar chouriços ou farinheiras. Bebia um copo e diz-me agora com reconhecimento geral expresso dos circunstantes da Associação junto ao balcão, num assentar de cabeças que, se o mar fosse de vinho, toda a gente era marinheiro.
Mas que ninguém se esqueça, o trabalho está à espera. Vamos lá pessoal, que até ao almoço é um instantinho e, com a barriguinha aconchegada, trabalha-se melhor.
Para o almoço, a Maria (que em nova era muito rapioqueira) fazia uma fogueira, e anunciava, no meio de risota, que vinho e amor nus, têm mais sabor, assavam-se umas febras ou entrecosto, sempre acompanhado de um pão caseiro que se retirava de uma saca de pano, cortado à navalha, comia-se um caldo, sem esquecer o garrafão do tinto, que rodava de mão em mão.
Ti Francisco das Hortas, diz ao compadre Albano, para o provocar, que mesmo com más pernas, ainda vais às tabernas. Este, que não se cala, atira-lhe que a igreja é para os padres, a taberna para os beberrões.
E acrescentava pragmaticamente, que é no copo que se conhece o homem.
Durante a tarde, as horas voam.
Oh Ti Maria, esta vindima está a correr muito bem. Ainda não choveu.
O João Luís que tem, desde garoto, a fama de ser algo desbocado, dizia que depois de beber e jantar, uma mulher vem mesmo a calhar. Mas Ti Maria, com ares de muito sabida respondia-lhe que contigo só se ela andar encalhada…

Cheio o lagar, procedia-se à pisa. Esta lida, fatigantíssima, era feita com os pés, como já o era em Roma, na Grécia ou mesmo no Egipto. Os pisadores (depois de lavados), entravam no lagar, onde se encontram as uvas a aguardar.
A primeira pisa era a mais exaustiva, recorda-me Francisco das Hortas.
De começo a tarefa corria em recato, mas à medida que o esmagamento se completava e espalhavam os aromas do mosto que tinge as pernas, as mãos e cara, os lagareiros iniciavam alguns descantes, (acompanhados de uns instrumentos, hoje considerados como pré-históricos) e um contentamento, rude e tonitruante, espalhava-se pelo ambiente alumiado pela claridade crua e fixa do acetileno, ou pela luz difusa do petróleo.

Isto sim era uma boa vindima, que ia atá ao lavar dos cestos.
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE SALAZAR, CAETANO E OUTROS



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