terça-feira, 22 de abril de 2014

O ASSALTO AO PODER MUNICIPAL (Alcobaça a seguir ao 25 de Abril) Os “bons democratas” que assinavam a vermelho ou viravam casacas.

 

O ASSALTO AO PODER MUNICIPAL (Alcobaça a seguir ao 25 de Abril)
Os “bons democratas” que assinavam  a vermelho ou viravam casacas.

Fleming de Oliveira



A 17 de julho de 1974, o Secretário do Governo Civil de Leiria, Luís de Almeida Trindade, deu posse à primeira Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Alcobaça, com a seguinte composição:
PRESIDENTE: Jorge Nogueira Silvestre, agrónomo;
VOGAIS: José Ventura Duarte, proprietário; Alberto Serrano e Silva, investigador; Gilberto Magalhães Coutinho, comerciante; João Lameiras de Figueiredo, médico; Pessanha Gonçalves, advogado; e António Silva Rosa, agrónomo.
O termo de posse de Jorge Silvestre, como ortodoxo marxista, foi assinado com um vulgaríssima BIC, único tipo de caneta que utilizava, destoando da generalidade dos membros da sua equipe, que fizeram questão de utilizar esferográficas ou canetas de marca. Aliás, a grande herança que Silvestre legou ao seu sucessor, José Pinto, foi uma caixa cheia de esferográficas BIC, de todas as cores e que este também muito apreciava..., como contou Carvalho Lino (PPD).
Estiveram presentes, os membros da equipe cessante, com exceção de Tarcísio Trindade.
Logo após o 25 de Abril, sendo Basílio Martins, a primeira preocupação dos antifascistas e democratas alcobacenses foi, naturalmente, a de implantar a vivência democrática em todo o Concelho.
No que respeita ao poder local, o PC, MDP/CDE e outras organizações de esquerda, procuraram substituir as Juntas de Freguesia e a Câmara Municipal, por Comissões Administrativas formadas por elementos escolhidos alegadamente pelo povo. A estas comissões caberia, no seu entender, gerir os referidos órgãos, durante um período de transição, até ser publicada a nova legislação sobre a matéria.
Não existindo na altura cadernos eleitorais credíveis, as eleições que, no concelho de Alcobaça, abrangiam também a de um delegado à Câmara, realizaram-se em plenários publicitados em cartazes, folhetos, conversas pessoais, propaganda sonora.
O modo de eleição, para Basílio Martins, variou conforme deliberação tomada em freguesia: lista aberta com nomes propostos pelas comissões preparatórias entretanto criadas, podendo riscar-se ou adicionar-se outros nomes, listas propostas pelos eleitores.
Na dinamização dos preparativos dos atos eleitorais, nomeadamente na eleição prévia das comissões, teve papel destacado o Movimento Democrático Português, onde Basílio Martins se integrava, bem como António Luís Ventura e Maria Olímpia Lameiras de Figueiredo, e ainda militantes ou simpatizantes do PC, do PS e doutras formações partidárias, pessoas sem partido, etc.
Além do contacto direto e de conversas sem horário, o MDP realizava sessões de esclarecimento, nos locais onde tal era possível, nas quais se sublinhava as diferenças enormes entre o anterior regime e o regime democrático que se pretendia instaurar.
O clima em que decorriam as sessões oscilava de lugar para lugar, variando entre o interesse e participação ativa, o entusiasmo, a desconfiança, a tentativa de perturbar e evitar o diálogo, sem esquecer por vezes a reação hostil com ameaças verbais e físicas.
A eleição da Comissão Administrativa para a Câmara Municipal poderá considerar-se o ponto alto deste processo popular.

A 2 de junho de 1974, tinham-se reunido no Pavilhão Gimnodesportivo cidadãos de todo o concelho, dia em que se comemorava na Ataíja de Baixo, a Senhora dos Enfermos, festa que se realiza normalmente no dia do Pentecostes, seis semanas após a Páscoa.
É uma festa muito antiga. Manuel Vieira Natividade faz-lhe referência in O POVO DA MINHA TERRA (1917), realçando que é a romaria mais original da minha terra. Por sua vez, José Diogo Ribeiro, in TURQUEL FOLCLÓRICO (1928) dá-lhe um certo destaque e cita algumas rimas ingénuas e populares à boa tradição nacional,

Ó Senhora dos Enfermos:
Aqui vimos, aqui estamos,
P’ra o ano, se formos vivos
Ainda cá tornaremos.

Tradicionalmente invocada pelos doentes, como também já afirmava o Padre António Vieira, no Sermão do Nascimento da Mãe de Deus: Perguntai aos enfermos para que nasce esta celestial Menina, dir-vos-ão que nasce para Senhora da Saúde, tornou-se particularmente cultuada a partir dos finais do século XVI, sendo-lhe atribuída a intervenção miraculosa que levou ao fim de vários surtos de peste, ocorridos em Portugal. Em sua honra, foram-lhe erigidas igrejas ou dedicadas velhas capelas preexistentes. O culto da Nossa Senhora da Saúde ou dos Enfermos espalhou-se pelo país, chegando também a Alcobaça. Refira-se (a título meramente incidental) que, geralmente, o único traço iconográfico distintivo da Senhora da Saúde ou dos Enfermos é o segurar com o braço esquerdo o Menino Jesus, à semelhança da Nossa Senhora do Carmo, mas sem qualquer outro adereço.
A uns quilómetros acima de Chiqueda, à beira da estrada, um sinal indicava o caminho Ataíja de Baixo – Festa. E a pé, de burro, de carroça, de bicicleta ou motorizada, de automóvel ou trator, muita gente para lá se encaminhou, nesse ano de 1974. Cumprindo ainda alguma tradição, a festa da Senhora dos Enfermos teve os atrativos habituais, cerimónia religiosa, música no coreto, quermesse, barracas de comes e bebes, alguns jogos tradicionais, o fotógrafo a la minute e a imprescindível presença da Charanga do Mestre Arnesto, onde apenas dois ou três sabiam tocar qualquer coisa, e que de manhã, antes de partir, não deixou de dar uma volta pelas ruas de Alcobaça. A festa, ao longo dos anos, foi perdendo algumas características, sendo que após o círio ter-se deixado de efetuar, ainda participavam na procissão alguns burricos muito enfeitados, que realizavam três voltas à capela.
Entre as oliveiras do arraial, no meio do campo da serra naquele ano, reinava a confraternização e o bom apetite. Grupos almoçavam, oferecendo comida e bebida aos passantes, sardinhas, carapaus secos, morcelas e havia mesmo um porco inteiro, dependurado e ao dispor, oferecido por um suinicultor de Turquel.
Dividido entre o prazer das festividades e alguma obrigação politica, António Nabais Pinheiro oscilava entre dois amores, o dever de participar na escolha da CA da CMA, cujo único candidato a presidente era o seu amigo e camarada do MDP Jorge Silvestre e o gosto de não abandonar o arraial. A meio da tarde, interrompeu contrariado, o convívio do arraial e deslocou-se ao Pavilhão Gimnodesportivo, aonde estava a decorrer o ato. Como este estava atrasado, regressou à Ataíja de Baixo, e parou numa barraca de comes e bebes, aonde com uns amigos bebeu mais um copito de branco, ou tinto? Nessa altura, chegaram ao seu lado dois jovens alcobacenses que muito bem o conheciam A (…) e B (…) que, montados em cavalos os encostaram a ele, provocatoriamente dizendo, o que é que estes comunas aqui estão a fazer? Aqui não há lugar para essa gente!
Palavra puxa palavra, os ânimos azedaram, até que um cavalheiro, se intrometeu na conversa e virado para os cavaleiros, chamou-lhes a atenção que não estavam a comportar-se corretamente, e deviam terminar com a provocação. Esta intervenção foi oportuna, e a discussão terminou de imediato. Hoje em dia, António Nabais tem boas e normais relações com ambos os cavaleiros.
O nome mais votado no plenário foi o de João Lameiras de Figueiredo, imediatamente seguido pelo de Gilberto Magalhães Coutinho, e a distância significativa Jorge Silvestre, Agostinho Pessanha Gonçalves, Alberto da Nazaré e Serrano e Silva, António Lobo da Silva Rosa e José Ventura Duarte. Este último, não constava da lista inicialmente proposta, mas acabou por ser eleito, mercê dos votos recebidos por parte da vasta delegação da Freguesia de Pataias, presente no plenário. Por indisponibilidade de Lameiras de Figueiredo, a presidência da Comissão Administrativa da Câmara foi confiada ao agrónomo Jorge Silvestre, menos votado que Gilberto Coutinho.

Gonçalves Sapinho também esteve presente neste Plenário, aonde teve uma intervenção interessante, embora no momento algo controversa.
Sendo Magalhães Mota, o ministro responsável pelo poder local (Ministro da Administração Interna no I Governo Provisório, chefiado por Palma Carlos), realizou-se em Alcobaça, no Pavilhão Gimnodesportivo, um Plenário com o objetivo de festejar coletivamente a liberdade politica e a democracia nascente, bem como eleger a CA para a CMA, que seria depois ratificada pelo ministro competente. Aquando da realização do evento, convocado pelo ativo MDP, já Tarcísio Trindade tinha, há bastante tempo, pedido a demissão, relevando Gonçalves Sapinho, que a nível nacional foi dos primeiros a faze-lo.
O pavilhão estava à pinha, expectante, ocupados os lugares sentados, gente em pé, enquanto que o microfone e a mesa se encontravam instalados mais ou menos no centro. Aos presentes foi distribuída, pela organização, uma lista encabeçada por Jorge Silvestre, e da qual constava eu próprio (Gonçalves Sapinho), julgo que por ter estado presente, em 1969 e 1973, nas reuniões promovidas pelo MDP, com a presença, entre outros de Jorge Silvestre, Vasco da Gama Fernandes e José Vareda.
Da vila de Alcobaça não havia mais que um quarteirão de pessoas, ninguém me tinha sondado ou convidado para integrar uma lista, não houve qualquer reunião prévia para criar um mínimo denominador comum, não tinha sido definida estratégia relativamente ao presidente cessante. Por estas razões, (isto é, desconhecer com quem ia trabalhar e em que condições), entendi que não deveria fazer parte da lista, e assim tomei a iniciativa de me dirigir ao microfone, de usar da palavra e explicar o porquê de não aceitar integrar uma lista.
Vaias e assobios acompanharam a sua intervenção e saída do palco, o que não o impediu de continuar a assistir ao desenrolar da sessão, com serenidade. A lista acabou por ser votada, com Ventura Duarte incluído, sem que dela constasse Gonçalves Sapinho que ainda conta que Manuel José Campos, por várias vezes ao longo dos anos, me referiu esta cena, que classificou de corajosa, dado o modo firme e austero como vincou as palavras. Destaca-se a presença de um grande e ruidoso grupo de Pataias, com o objetivo declarado de apoiar Ventura Duarte, o que resultou.

Dentro com o espírito anunciado de abertura e participação, a Comissão Administrativa começou a efetuar reuniões nalgumas sedes de freguesia, a primeira das quais teve lugar no Clube Desportivo Pataiense. Recorda Basílio Martins, algumas ideias-força da intervenção de Jorge Silvestre: Pretendemos trazer a Câmara junto das freguesias, dizer tudo o que se passa na Câmara, abri-la às pessoas, de modo a que tidos possam saber como é que funciona, como é que os destinos da Câmara estão a ser geridos.

No sábado, 21 de junho, a Junta de Freguesia da Benedita reuniu com a CA da CMA para debater alguns problemas importantes que afetavam a freguesia, como o abastecimento público de água. Após varias intervenções, aventou-se a ideia de se criar uma cooperativa, com o fim de solucionar este gravíssimo e arrastado problema. O assunto ficou para estudo e a cooperativa acabou por nunca ser considerada. O problema da água ainda demorou alguns anos a ser resolvido.

Dias depois, a 24, a Comissão Municipal de Turismo que tomou posse, teve como Presidente Leonel Afonso Belo, sendo composta por Maria Celeste Vilhena, da CA da CMA, Júlio Cipriano de Figueiredo, em representação dos Serviços Centrais de Turismo, Delfim Branco Pata, Subdelegado de Saúde, Maria Ilda Lameiras de Figueiredo, Rodolfo Morgado Pereira e Raul dos Reis Gameiro, estes três em representação da Associação de Comerciantes Retalhistas do Concelho de Alcobaça.

Dos nomes que compunham a CA da CMA há a destacar o comerciante Gilberto Magalhães Coutinho, com loja na Rua Alexandre Herculano. Falando de si próprio, disse-me que desde a juventude que sou antifascista. Como tal lutei contra o regime salazarista pela restauração da democracia, que só o 25 de Abril acabaria por trazer. Militante do PC, foi por isso que a PIDE o veio prender pela primeira vez, em 22 de novembro de 1948, juntamente com outros membros da organização do Partido em Alcobaça. Esteve preso coo sabemos no Aljube, em Caxias e em Peniche, ao todo quatro anos e oito meses, longos e penosos, tendo nesse percurso conhecido ou encontrado pessoas como, Cunhal, Dias Lourenço, Mário Soares, Salgado Zenha ou Vasco da Gama Fernandes.
Era manifestamente uma lista de esquerda, numa venal condescendência do Governo Civil e do Ministério da Administração Interna, de acordo com os tempos conturbados que se viviam e que logo se aproveitou para projetar, pelo Concelho, o PC e MDP/CDE.

Em 20 de julho de 1974, sábado à tarde, a CA da Câmara fez a sua apresentação à população de Alcobaça, na sede do MDP/CDE, que ocupara rapidamente parte da ala norte do Mosteiro, perante uma assistência, contadas 162 pessoas, incluída a Mesa, destacando-se a virulenta e exaltada intervenção de Pessanha Gonçalves, pelo ataque personalizado ao anterior Presidente da Câmara, Tarcísio Trindade e aos jornais locais, O Alcoa e o Voz de Alcobaça, que apelidou de fascistas e outros termos, mais ou menos equivalentes e usuais.
O MDP/CDE, considerava o povo da Benedita como fascista, de acordo com um apontamento de José Luís Machado, em O ALCOA.

Ao mesmo tempo, a CA da Câmara Municipal permitia, a propaganda do PC, no Posto Municipal do Turismo, através da afixação de cartazes na montra de vidro, prospetos e panfletos alusivos, bem como a utilização do jeep da Federação dos Municípios, mesmo durante as horas de serviço.
Os bancos de pedra que, por alturas de 1971, foram mandados retirar da Praça D. Afonso Henriques, com o argumento que serviam quase sempre de assento aos internados no AML, aparentando muitos deles doenças infetocontagioso e conhecendo-se, até, casos de hemoptise, podendo contaminar adultos e crianças que também habitualmente os utilizavam. Mercê da campanha encetada pela Câmara (cessante), as condições do AML, Asilo de Mendicidade de Lisboa, Lar Residencial, mudaram substancialmente, com melhoria das condições de internamento, assistência médica e controlo das saídas dos internados doentes, pelo que voltaram a ser recolocados.

Com mais ou menos legalidade revolucionária, as autarquias estavam pelo País além, a ser tomadas de assalto pelo PC e MDP/CDE. Em 9 de agosto, o Diário de Notícias, órgão oficioso do governo e à sua disposição, comentava em artigo de fundo um discurso do Gen. António de Spínola, que manifestava a sua preocupação perante o assalto às autarquias locais, por homens a quem o povo não reconhecia idoneidade.

Tarcísio Trindade, anos depois, contou-me que na primeira reunião que o Movimento Democrático de Alcobaça realizou, levantou-se uma voz que falou indignadamente contra ele. Era Saul Pereira, funcionário da CP em Valado dos Frades e depois na S.P.A.L. Propôs, no meio de grandes aplausos, que Trindade fosse fechado nos Paços do Concelho e aí deixado morrer à fome. Afinal, esse democrata, tempos depois foi preso pela GNR, acusado de ter sido informador da PIDE/DGS e levado para Caxias.

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