MOÇAMBIQUE, LOURENÇO MARQUES/MAPUTO (SETEMBRO DE 1974).
MEMÓRIAS E SAUDADES…
Fleming de Oliveira
Mário Lopes Cardoso, nasceu em Lourenço Marques/Maputo
em 1939, filho de pais naturais de Espinho, que já haviam estado na Venezuela,
aonde não se deram com o clima.
Fez toda a vida em Moçambique, só tendo vindo uma vez a
Portugal, em meados da década de 1960, ao casamento de uma prima. Assumia-se
como um moçambicano (embora de tez
branca), pois era a sua terra, a única que conhecia ou reconhecia. Tinha uma
boa posição no Banco Nacional Ultramarino, mas já tinha trabalhado nos
Correios. Hoje em dia, viúvo, vive em Lisboa, e reúne-se de vez em quando com
uns amigos do seu tempo de Moçambique.
Ao sair do banco, ao fim da tarde de sexta-feira, dia 6
de setembro 1974, na baixa da cidade de Lourenço Marques/Maputo, pelos lados da
Avenida da República, ainda viu circular uma carrinha, levantando alto uma
bandeira da Frelimo, enquanto arrastava, provocatoriamente, pelo chão uma
bandeira portuguesa.
Brancos que assistirem a esta cena, reagiram e encetaram
uma perseguição à carrinha, acabando por destrui-la e eliminar os seus
ocupantes.
De seguida, rasgaram a bandeira da Frelimo que lançaram
ao chão, calcaram e ergueram, de forma triunfal, a bandeira portuguesa, que
agitaram.
De súbito, a comunidade portuguesa (europeia), espontaneamente, começou a concentrar-se,
iniciando uma caravana com os automóveis a buzinar, ao mesmo tempo que cantava,
arrebatadamente, o Hino Nacional.
Lopes Cardoso enervou-se com o que estava a assistir do
passeio, tanto mais que se encontrava dividido quanto a atitude a tomar.
Apetecia-lhe ir apoiar a manifestação dos brancos, mas
também para casa, brincar com a filha, com quase um ano. Entretanto, surgiram
uns dois ou três carros com estudantes brancos, exibindo cartazes com a foto de
Samora Machel e símbolos da Frelimo.
Rotulados de traidores (o que Lopes Cardoso reputa de
excessivo, pois aqueles estudantes eram moçambicanos tanto como ele), de
imediato foram perseguidos por portugueses exaltados, refugiando-se ao que
supõe no edifício dos jornais Notícias e Tribuna. Os automóveis dos estudantes
foram incendiados, bem como apedrejados os vidros e as portas do edifício onde
se refugiaram. Como um rastilho, o movimento branco, alastrou pela cidade,
tendo como alvos, entre outros, a Associação Académica e o Rádio Clube de
Moçambique (ambos pró FRELIMO). A caravana de automóveis, em protesto
dirigiu-se ainda para a Ponta Vermelha, entretanto prudentemente bloqueada por
jipes da Polícia de Choque. Vítor Crespo, Alto Comissário, que de comandante da
marinha totalmente desconhecido passara a Vice-Almirante (cujo estado normal se
dizia ser a embriaguez…), dava em breve a entender que se tratara de um “incidente, compreensível num quadro de
passagem do colonialismo à liberdade” em que participaram. “elementos
menos evoluídos que têm medo de perder as suas regalias”, ou “pessoas
racistas que não abdicam dos seus privilégios”.
Quando chegou a casa, Lopes Cardoso estava muito
preocupado (não tendo posto a mulher totalmente ao corrente do que se estava a
passar), e pela primeira vez equacionou, a sério, a saída de Moçambique.
No dia seguinte, à tarde, 7 de setembro, a bandeira da
Frelimo hasteada no RCM/Rádio Clube da Moçambique, foi arreada e substituída
pela Bandeira Portuguesa e a estação emissora ocupada por exaltados e
contestatários brancos.
A prisão de Lourenço Marques foi invadida, e libertados
os agentes da DGS no meio de bastantes aplausos.
Acusados de minoria de reacionários pela imprensa de
Lisboa, pelo governo gonçalvista, com o apoio de Vítor Crespo, os radicais
brancos vieram a dar por finda a sua ação no dia 10 e cerca de 10.000 pessoas
de origem portuguesa fugiram para a África do Sul, o que não foi o caso de
Mário Lopes Cardoso e família.
Os jornalistas
portugueses usavam expressões como “brancos ressentidos, brancos em
pânico ou pessoas que reivindicam um desejo de viver num mundo que já
acabou”, para referir a maior fuga de portugueses, nos seus muitos séculos
de História...
Tropas do Exército Português sufocaram a revolta.
Blindados, tratores e G3 empurraram os manifestantes para longe das posições
ocupadas. Com o apoio da Frelimo, os nativos dos arrabaldes invadiram as ruas
de Lourenço Marques, queimando, saqueando, violando as mulheres brancas, com
alguma passividade, complacência por falta de liderança e desmotivação das FA.
Os Comandos foram proibidos de sair, e o governo pensou em desarmá-los. Nestes
graves incidentes, morreram centenas de pessoas entre brancos e pretos, bem
como foram destruídas e saqueadas casas, lojas e fábricas.
A violência da Frelimo (e dos marginais associados),
aumentou contra os brancos,
principalmente a partir de outubro, com a instalação do governo
provisório em Lourenço Marques. Bandos de africanos, drogados e embriagados,
passaram a fazer controlos nas ruas, barrando e roubando os carros que se
aventuravam a passar, munidos de catanas, armas de fogo e latas de gasolina.
Muitos foram incendiados e caso reagissem os ocupantes corriam o risco de ser
massacrados, como aliás aconteceu com um vizinho de Lopes Cardoso, que foi
transportado para o hospital, aonde veio a falecer no dia seguinte. As mulheres
brancas, só em caso de absoluta necessidade passaram a sair à rua e nunca
desacompanhadas. Os dirigentes da Frelimo afirmavam que não lhes assistia
responsabilidade nos acontecimentos.
Centenas, milhares? de homens, mulheres e crianças,
brancos e pretos, foram esquartejados nas ruas de Lourenço Marques. Viram-se
corpos humanos pendurados nos talhos e a avenida que conduz ao aeroporto, na
extensão de alguns quilómetros, foi ornamentada com cabeças espetadas em paus. Era tal o número
de mutilados que chegava ao Hospital Miguel Bombarda, que os depositavam nos
corredores e nos pavimentos das salas, a esvaírem-se, enquanto os exaustos
médicos, com as batas sujas de sangue, procuravam minorar os sofrimentos. Ante
tão pavorosa hecatombe, o pessoal médico do hospital exigiu, sob pena de se
refugiar nas representações diplomáticas acreditadas em Moçambique, que o chefe
do governo provisório, Joaquim Chissano, comparecesse no hospital para se dar
conta da extensão de tamanho horror. Perante o calvário que se lhe deparou,
Chissano saiu, aparentemente muito incomodado, salpicado pelo sangue dos que
eram, também, suas vítimas.
Cardoso tinha um mainato que há cerca de 10 anos ia a
sua casa 3 vezes por semana, e com quem mantinha boas relações, mas por via de
dúvidas a partir de certa altura “deixou
de estar de costas para ele”, pelo que por esta e outras voltou mais uma
vez pensar seriamente deixar Lourenço
Marques, a adorada Cidade das Acácias, como escreveu Craveirinha:
“Na cidade
alinhadas à margem
as acácias
ao vento urbanizado
agitam
o sentido carmesim
das suas flores.
E um
menino com mais
outros
meninos todos juntos
um dia
fecundam a síntese
da rua
cidade
meninos e flores”.
Aquela
era uma dura e mesmo suja consequência de uma guerra de insurreição, onde se
combate o antigo amigo, o empregado, o patrão, o amante ou o irmão.
Interroga-nos imprevistamente sobre os direitos e deveres. A soberania de uma
Pátria é um mero conjunto de fórmulas ou rezas ou antes a memória dos
sacrifícios de um Povo ou Coletividade Nacional?
Consigo ficavam as memórias do tempo de menino que viveu
na Gomes Freire ao pé da Escola Sá Sepúlveda, onde fez a 4ª classe. Foi
crismado na Igreja de Nossa Srª das Vitórias e ia lá à missa ao domingo. Depois
da missa, ia patinar para o clube da Malhangalene.
Para trás, iriam ficar os tempos em que a seleção de
Hóquei em Patins, de Moçambique (com Fernando Adrião, Velasco e outros), chegou
a representar Portugal em competições internacionais, pois os hoquistas
moçambicanos eram tão bons que a Federação entendeu que o maior sucesso seria
vestir as cores da seleção nacional à equipa moçambicana. Boa foi a aposta pois
que essa representação acumulou êxitos e títulos a fio, com muito orgulho da
Metrópole e de Portugal.
Ve-se entre gente muito agradável como a Tó Silveira, a
Ilda Peres, o Augusto Inácio ou Joaquim Francisco, o “Cientista”, jovens da sua idade que se reuniam na esplanada da
Cristal ou da Princesa, perto do Liceu Salazar e da Escola Comercial, contando
anedotas e confessando (gabando-se?) os seus amores juvenis.
Onde estarão?
Ve-se no “Continental”, no “Scala”, ou na esplanada do “Nicola”,
rodeada pelas frondosas árvores da Praça 7 de março.
Ve-se a saborear os pregos no pão do “Marialva”, a
galinha à cafreal da “Imperial” e os camarões grelhados com molho de limão e
manteiga, do “Piri-Piri”.
Ve-se no “Mercado Vasco da Gama”, a compartilhar uma
aventura de vida e de cor, tirar mesmo fotografias das bancadas de vendedeiras
brancas e negras, mulatas, indianas ou chinesas.
Ainda hoje em Portugal, passados tantos anos, sente o
paladar e cheiro das doces laranjas de casca verde, das mangas, das enormes
abacates, das papaias rosadas, do maracujá e abacaxi, do cajú assado pelas
mamanas numa rudimentar lata com carvão incandescente. As recordações, aqui com
uma lágrima impossível de controlar, levam-no ainda ao Jardim Vasco da Gama e à
paz que se gozava entre a fresca e a variada vegetação, onde comungava da
alegria dos parezinhos de namorados, como o seu de que já fazia parte a
Alexandra, que prometiam juras eternas, sentados nos bancos de pedra ou de
madeira espalhados sob aquelas frondosas e seculares árvores.
Sente as mãos de novo transpiradas a conduzir o
Volkswagen, às escondidas dos pais, entre fângios, alguns sem carta, na pista “Costa do Sol”.
Ve-se a percorrer a marginal e a gozar a beleza de uma
paisagem inesquecível, enquadrada por velhas palmeiras, acácias e jacarandás e
por um mar calmo e meigo.
E como Mário Lopes Cardoso se orgulhava e gostava de ser
moçambicano e viver na cidade de Lourenço Marques ao contemplá-la do outro lado
da Baía do Espírito Santo! Quanto mais se aproximava do mar, mais belo ele lhe
parecia, numa costa onde figurava a serenidade da praia do Bilene, a bravura do
mar na escondidinha Macaneta, a beleza agreste das praias do Xai-Xai, do
Chonguene, da pacatez de João Belo, do acolhimento de Inhambane, ou o encanto
bravio da Ponta do Ouro.
Para trás ficava “Kanimambo”
e João Maria Tudela a cujos espetáculos chegou a assistir com a família, que no
distante 1959 criou o seu primeiro e maior êxito de sempre (Kanimambo), que
fará grande carreira na Metrópole, nos Estados Unidos e na América do Sul e
que, no dialeto Changana, falado na zona de Lourenço Marques/Maputo, significa
“Obrigado, Prazer”.
Embora o seu pai nunca
tivesse sido grande bebedor, às vezes bebia totonto, uma aguardente tradicional
vendida pelo vizinho, Malanga Lopes. A bebida, ao que supõe, pode ser feita com
frutas ou açúcar e farelo de milho. A mãe do Malanga, que não falava bem o
português, perguntou uma vez a Lopes Cardoso se existia totonto em Portugal. “Sim…Uma
coisa parecida. Chamamos-lhe bagaço…” Mas ele nunca tinha bebido bagaço ou
totonto, nem sabia o que eram.
Tó tonto parecido com bagaço?
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