ALTINO DO COUTO RIBEIRO E UM “DOUTOR” INADAPTADO AOS
NOVOS TEMPOS.
GANHAR O MESMO QUE UM CAVADOR?
Fleming de Oliveira
Altino do Couto Ribeiro, natural de Alcobaça, aonde
nasceu há mais de 90 anos, fez a sua vida pessoal e profissional em variados
locais, desde Alpedriz, Caldas da Rainha e Coimbra.
Quando se deu o 25 de Abril, era proprietário de uma
empresa de cerâmica, a ALTICOR, Ldª, com sede em Alpedriz, que chegou a ter ao
serviço 54 trabalhadores e manteve até 1981, altura em que a vendeu e se
reformou.
Embora o seu grande prazer, fosse a pesca desportiva de
mar, foi na cerâmica que desenvolveu a atividade profissional.
Trata-se de uma personalidade interessante, a quem já me
referi, com algum detalhe, na obra No
Tempo de Salazar, Caetano e Outros. Alcobaça e Portugal. Grande conversador
e contador de histórias, gosta muito de relembrar alguns episódios insólitos,
absurdos ou impensáveis, ocorridos nos tempos do PPREC, na sua condição de
empresário.
Pouco depois de 11 de março de 1975, no meio da euforia
exaltante que se vivia, Altino Ribeiro passou a frequentar regularmente a
Delegação do Ministério do Trabalho, em Leiria, quer por força da ação da
Inspeção, quer pelo menos boa ou leal ação de alguns delegados sindicais, que
se pretendiam intrometer, no seu dizer, na sua empresa. Esta era considerada
por empresários ou trabalhadores, como modelar no distrito, graças à
mecanização, bom gosto e qualidade.
Mesmo assim, Altino Ribeiro recebia com frequência
avisos postais, para comparecer na Delegação do Ministério do Trabalho, para “tratar de assuntos do seu interesse”.
Normalmente essas convocatórias eram para meio da manhã, e prolongavam-se, sem
vislumbre do termo para a parte da tarde, com os incómodos e despesas
inerentes.
No dia a dia, de manhã antes de sair de casa para o
trabalho, Altino levava consigo o almoço numa marmita que aquecia e tomava com
o demais pessoal, no respetivo intervalo.
Em Leiria porém, quando tinha que almoçar, frequentava o
restaurante Capelinha do Monte, perto do Hotel Lis.
Num determinado dia, pouco depois de 11 de março de
1975, estando em Leiria, por solicitação do Ministério do Trabalho numa reunião
inconclusiva e infindável, teve que ficar para almoçar, o que fez no referido
restaurante.
De outras vezes que lá esteve, conhecia de vista um
senhor que normalmente almoçava sozinho, e que ouvia tratar deferentemente por
“doutor”, que soube ser da Vieira de
Leiria, embora desconhecesse, concretamente, quem era e a profissão.
Quando chegou naquele dia, o restaurante estava quase
cheio, pelo que apenas encontrou disponível uma mesa de canto, aliás perto do
referido “doutor”. Entretanto, chegou
uma cinquentona com uma molhada de papéis que, na falta de outro lugar, pediu
licença para se sentar à mesa do “doutor”, ao que ele anuiu. Sobre a mesa e com à
vontade, colocou os papéis que trazia espalhando-os desajeitadamente.
Sem que Altino se tivesse apercebido do que ambos haviam
conversado, notou que o “doutor” se
levantou de repente e irritadíssimo, tanto mais que a cadeira aonde estava se
virou no chão, e em voz alta começou a barafustar: “Ganhar o mesmo que um cavador? E a mim quem me paga o tempo que gastei
a queimar pestanas e a estudar ao longo da noite?”
Altino e os demais comensais, estupefactos, perceberam
que a dita senhora, aliás bem conotada politicamente, terá dito que um doutor
deveria ganhar o mesmo que um cavador, pois ambos tem barriga e família para
cuidar.
Ao mesmo tempo que barafustava, o “doutor” fazia manguitos, e virado para a senhora, dizia-lhe “toma, toma, ora toma !”
Esta, talvez surpreendida pela reação, calou-se, e não
pronunciou mais qualquer palavra. Mesmo antes de ter terminado o almoço, o “doutor” pagou a conta, foi-se embora e,
tanto quanto Altino apurou, nunca mais aquele voltou ao restaurante.
Pessoas que estavam presentes, imediatamente passaram a
comentar entre si com um certo ar de censura, que o “doutor” não se tinha ainda ajustado aos novos tempos que se
viviam…
ABAIXO O
SOCIAL-FASCISMO!
ABAIXO A DITADURA!
VIVA A
SOCIAL-DEMOCRACIA!
VIVA PORTUGAL!”
De acordo com o Voz de Alcobaça, as coisas não se
passaram assim. A festa foi muito solidária, abrangente e agradável, “para um dia recordar com muito afeto”.
Bandas na rua, um comício, uma manifestação, uma tarde
de pintura infantil, vários espetáculos e muitas horas de confraternização
popular, assim foi assinalado o 1º. de maio de 1975, em Alcobaça.
Este programa foi organizado pelo PC, PS e MDP,
correspondendo a um apelo da União dos Sindicados do Distrito de Leiria. No
comício, que teve lugar pelas 15h, falaram Armando Correia, pela União dos
Sindicatos Livres do Distrito de Leiria, Basílio Martins, do MDP/CDE, Rui
Alexandre, do PC, Joaquim Matias Ferreira, do PS e Ten. Carvalhão, em
representação do MFA.
Gilberto de Magalhães Coutinho, disse-me anos mais tarde
que, “na época, as coisas viviam-se muito
intensamente, com paixão, e às vezes surgiam aqui e acolá excessos,
comportamentos menos serenos, palavras menos corretas”.
Mas o panfletário/esquerdista Voz de Alcobaça, nas suas
notícias passava ao lado desses pequenos pormenores.
Vergílio Ferreira, numa carta a Vasco Gonçalves, após as
acidentadas comemorações do 1º de maio de 1975, criticou a tese de contrapor
uma cultura elitista a uma cultura popular, pois que cultura é uma só.
“É bom que assim
seja, para que nela ao menos nos sintamos irmãos e o povo tenha acesso ao que
foi dos privilegiados”.
Timóteo de Matos em diferentes momentos, veio a sofrer
todas as punições constantes dos Estatutos do PC, exceto a da expulsão, “certamente porque não tenho feitio para
defender continuamente a opinião da maioria, só porque é a da maioria”.
Só em março do ano seguinte, voltou ao Partido, perante
uma acesa discussão sobre a sua expulsão da Concelhia, reentrando pela mão de
dois dirigentes do Comité Central, Osvaldo Castro e Lancinha, “dirigente e homem de grandes qualidades,
infelizmente já falecido e de quem vim a ser muito amigo e companheiro de
muitas lutas e de alguns momentos de grande alegria. Voltei pois, cheio de
força, de ideias e de ideais. Que diabo! Os tempos que se seguiram ao 11 de
março, eram necessariamente, para qualquer revolucionário, por mais ofendido
que se encontrasse, tempos que não podia ignorar. Estar de fora nessas lutas,
teria sido para mim inimaginável, embora deva confessar que nunca fui daqueles
que confiavam que o socialismo fosse instalado em Portugal, assim já ali, ao
virar da esquina. Sempre via (e ainda vejo) o PCP mais como um partido com uma
influência decisiva na sociedade e na política portuguesa, mas muito mais no
aspeto de não deixar descambar tudo para a direita, o que necessariamente
aconteceria com o PS que temos, do que na assumpção do poder, num momento em
que o capitalismo está por cima, pesem embora os óbvios disparates e
manigâncias em que cada vez se enterra mais, na ânsia de sobrevivência”.
A partir daí, e durante cinco ou seis anos, manteve-se
em bastante atividade, tendo chegado a membro da Comissão Nacional de Desporto.
O PC, no Concelho de Alcobaça, atingiu, no seu melhor
momento, os cerca de duzentos e cinquenta militantes, com considerável força no
norte e centro e muito pequena no sul do Concelho onde, especialmente nas
freguesias da Benedita, Turquel e Vimeiro, “ser
comunista equivalia a ter problemas no dia a dia”.
Depois do 11 de março, as nacionalizações, a reforma
agrária, manifestações gigantescas e o PREC, a luta entre a direita e a
esquerda agudizaram-se. É opinião de Timóteo de Matos, agora de conteúdo muito
benévolo/reciclado, enfim cauteloso e politicamente correto, que “em todos os casos em que duas fações entram
em confronto, a razão deixa frequentemente de imperar e as respostas são,
muitas vezes, desproporcionadas em relação às ações que pretendem combater.
Em Portugal, a linha do PC em relação à
PIDE e ao fascismo em geral, sempre foi, após o 25 de Abril, a da defesa do
julgamento justo e não a da vingança. Substituir, nos comícios, a palavra de
ordem MORTE À PIDE! por JUSTIÇA! foi coisa que a extrema-esquerda nunca pode
tolerar e que a maioria dos militantes comunistas tiveram dificuldade em
engolir”.
Timóteo de Matos justifica-o, porque acabava-se de ver o
que ocorrera no Chile de Allende, “onde a
extrema-direita tinha perseguido selvaticamente os elementos da esquerda e os
democratas em geral, os comunistas portugueses, ou melhor, alguns deles, não deixaram,
aqui e ali, de responder com violência às provocações e, por vezes, serem eles
próprios a iniciarem-nas. Mas pode dizer-se que, na Revolução Portuguesa, os
que estavam do lado dos vencedores levaram mais do que deram”.
Logo no 1º. de maio de 1975 as coisas azedaram.
“Estava marcada uma
manifestação, pelas ruas de Alcobaça, integrada numa festa na Praça D. Afonso
Henriques, com razoável número de presenças e em que recordo que o ator José
Viana foi um dos animadores. Da Praça partia-se para a manifestação, junto ao
Café Trindade e à então sede do PPD. Como é sabido, nestas manifestações, o
colorido de bandeiras e faixas tem papel primordial, em conjunto com as
palavras de ordem que se gritam e o número de manifestantes. E lá estavam as
bandeiras de alguns sindicatos, de alguns partidos de extrema-esquerda, também
do PS e grande quantidade do PC. Aconteceu então descerem da sede do PPD com o
fim de se integrarem na manifestação com outros manifestantes da sede do seu
partido, Gonçalves Sapinho com uma bandeira nacional e Fleming de Oliveira
empunhando a do PPD. Fruto do acaso, a distribuição das bandeiras? Ou “ratice”
maior de Gonçalves Sapinho? O que é certo é que a presença da bandeira do PPD
foi contestada imediatamente por parte do funcionário do PCP (Manuel Beja) que
se atribuía o papel de comandante da manifestação e que era portador de um
megafone para melhor iniciar as palavras de ordem. Não estavam pelos ajustes os
do PPD e travaram-se de razões os de um e outro lados. Razões de rua, bem
gritadas, mal ouvidas, as coisas aqueceram e o megafone experimentou a dureza
de duas ou três cabeças. Lembro-me que o principal agredido foi o Dr. Fleming.
Não me recordo, mas estou em crer que a bandeira se manteve na manifestação,
até ao fim”.
Manuel campos, inscrito no MDP/CDE, mas sem renegar
totalmente o Estado Novo, reconhece que neste 1º de maio, houve “turbulência” em Alcobaça, que não
aprovou.
Não participou na manifestação, tendo-se limitado a
assistir do passeio, mas destaca o momento em que viu “um grupo no qual seguia à frente o dr. Fleming, com uma bandeira do
PPD, se ter envolvido em desavença com outro afeto ao PC.”
Quanto aos acontecimentos com Natália Evangelista,
embrulhada na bandeira laranja e correndo ao longo da rua, não se apercebeu de
nada, mas ouviu falar deles.
Com a finalidade de esclarecer a opinião pública sobre a “verdade” das comemorações do 1º, de
maio em Alcobaça, que alegadamente deveriam ser de concórdia e unidade entre os
trabalhadores, independentemente do credo político, a Secção de Alcobaça do PS,
veio a público informar que este foi contactado no sentido de organizar com o
PC e o MDP/CDE, os respetivos festejos. O PPD,
obviamente, não foi convidado, o que não o impediu de comparecer na
festa. O PS defendeu que as
comemorações deveriam ser apenas obra dos trabalhadores, levada a cabo por
intermédio dos sindicatos, embora com o apoio dos partidos, que participando,
não deveriam assumir a direção dos trabalhadores. Acontece que acabou por não ser esse o entendimento que prevaleceu
pelo que só o respeito pela classe operária, impediu que, pelo menos, no seu
dizer o PS não abandonasse a organização.
O PS informou os alcobacenses que discordou da
instalação de stands dos partidos com fins lucrativos, aliás no seu stand
apenas foram distribuídos cravos vermelhos, e alertou para o perigo que poderia
resultar da inclusão de bandeiras partidárias no desfile. O PS tinha razão e o
mau exemplo não lhe pode ser imputado.
As comemorações foram, enfim, programadas nas costas do
PS, sendo a reunião uma mera e vazia formalidade, pois que terminou na
madrugada do dia 29 e o programa deu entrada na tipografia na manhã desse mesmo
dia.
Tudo isto acarretou, segundo o PS, graves incidentes,
imputados à cegueira partidária de alguns como PC e MDP/CDE.
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