MELO BISCAIA E A ASSEMBLEIA CONSTITUINTE (1975).
O DEPUTADO TELECOMANDADO.
Fleming de Oliveira
Luís Melo Biscaia, um prestigiado advogado da cidade e
seu decano, nasceu na Figueira da Foz, a 28 de março de 1928.
Foi opositor do regime de Salazar e Caetano, razão pela
qual se demitiu, em 1958, de vereador da Câmara Municipal para apoiar a
candidatura de Humberto Delgado.
Melo Biscaia fez parte da direção do Ginásio
Figueirense, do Rotary Club da Figueira da Foz, dos Bombeiros Voluntários, da
Misericórdia-Obra da Figueira.
A seguir ao 25 de Abril, integrou a direção do MDP, que
abandonaria para se filiar no PPD, nas listas do qual viria a ser eleito
Deputado à Assembleia Constituinte.
Depois de entrar em rutura com Sá Carneiro e com o PPD,
saiu dele integrado num grupo de 40 deputados sociais-democratas, constituindo
depois no Parlamento um grupo de independentes. Não mais voltou ao PPD/PSD, ao
contrário de alguns outros, como aprecia registar, mas não me quer identificar.
“Esses deputados não
quiseram pactuar com a prática do PPD, porque no seu programa inicial se
consagrava uma social-democracia autêntica, vindo a verificar-se que os
responsáveis máximos desse partido estavam, sim, a querer torná-lo um mero
partido liberal. Entre esses deputados estavam Mota Pinto, José Augusto Seabra,
Artur Santos Silva (pai), Emídio Guerreiro, José Casimiro Cobre, etc. Ainda lembro o
rosto, muito sombrio, a denotar preocupação e tristeza, como Sá Carneiro
recebeu as cartas de demissão desses deputados, que constituíam metade do grupo
parlamentar do PPD”.
Biscaia lembrou-me a
“dificuldade em se encontrar posição para nos colocar no hemiciclo: havia quem
quisesse pôr-nos à direita do PS, outros à esquerda, e, durante alguns dias
deram-nos lugar à frente das bancadas do parlamento, sentados em simples
cadeiras, sem qualquer mesa para se poder escrever”.
Na Assembleia Constituinte, fui “reencontrar um numeroso grupo de amigos pessoais e políticos com os
quais “trabalhei” contra a ditadura de Salazar e Caetano e ali tive
oportunidade de assistir a um firme e corajoso confronto ideológico. Nesse
tempo havia mesmo ideologias demarcadas, para o qual muitos se mostraram estar
seriamente preparados. Destaco os deputados Amaro da Costa, Mota Pinto, Jorge
Miranda, Luís Catarino, Vital Moreira, José Luís Nunes, Manuel Alegre e outros
que produziram intervenções de elevado nível, cheias de conteúdo político e
formalmente belas no estilo. Não posso deixar de registar a isenção e a maneira
muito distinta como o Professor Henrique de Barros, Presidente da Assembleia,
sempre orientou os trabalhos, não lhe faltando nunca o bom senso”.
No Governo de Maria de Lurdes Pintasilgo (1979), Biscaia
foi Secretário de Estado do Emprego e Formação Profissional.
“Foram cinco meses
intensos e de belíssima legislação. Alguns dos meus despachos ainda vigoram,
embora não sejam aplicados”, lembrou-me Melo
Biscaia. Como advogado, com 55 anos de carreira (hoje reformado) pode afirmar
que “tenho a minha consciência profissional
tranquila, pois tenho cumprido o meu dever, sem esquecer a função social da
advocacia”.
Deputado Constituinte, Melo Biscaia tem gosto em
recordar um discurso que fez no Parlamento no qual criticou severamente a ação
do Primeiro-Ministro, Vasco Gonçalves, acabando por dizer: “Vá-se embora, porque já não está a fazer
nada nesse lugar!”
Esse discurso foi proferido numa sexta-feira e na
segunda-feira seguinte, quando chegou à Assembleia, vários deputados vieram
felicitá-lo porque Vasco Gonçalves tinha “obedecido” ao seu mandado, o que foi
motivo, de muitas conversas e piadas.
O discurso apareceu numa televisão sueca, segundo lhe
referiu uma senhora da Figueira da Foz, casada com um cidadão sueco.
E ainda o facto, que trouxe alguma preocupação episódica
aos deputados, relacionado com segurança da Assembleia.
No final de uma sessão da tarde, foram avisados pelo
oficial que comandava a segurança do Palácio de S. Bento, que se dizia que
nessa noite, elementos do COPCON poderiam fazer rusgas nos hotéis onde estavam
alojados os deputados que não pertencessem aos partidos de esquerda para os
prenderem e levarem para o Campo Pequeno, onde seriam vítimas de violências ou
mesmo talvez da morte. E a verdade é que muitos dos deputados deslocaram-se, de
mala aviada, para hotéis da “Linha”.
“Eu, que era o único
a estar num hotel perto do Parque Eduardo VII, limitei-me a recomendar na
receção que jantaria no quarto e que se alguém ali fosse perguntar por mim, que
dissessem que tinha ido para a Figueira. Afinal, não passou de um susto. Aliás,
nesse período conturbado após o 25 de Abril, próprio de qualquer tempo
revolucionário, punham-se a correr notícias perturbadoras, sobretudo para
aqueles que queriam elaborar uma Constituição que consagrasse uma democracia
pluralista e representativa”.
Biscaia não esquece o pouco esclarecido e “telecomandado” deputado Américo Duarte,
o único representante da UDP pois “quando
das votações, ele obedecia a uma camarada que estava na galeria, levantando-se
ou deixando-se estar sentado, consoante o gesto que era feito para o sentido de
voto”.
Aquando da manifestação de trabalhadores da construção
civil que cercou o Palácio de S. Bento, onde o Governo se encontrava reunido,
foi decidido apresentar ao Primeiro-Ministro um caderno reivindicativo. Em
frente do portão da residência oficial deste, os trabalhadores colocaram uma
betoneira, obstruindo a saída, pelo que, ninguém poderia abandonar o palácio
antes de terem sido atendidas as reivindicações, anunciaram os delegados
sindicais.
No interior, permaneciam o Governo, os deputados e o
público que assistia à sessão da Assembleia, bem como os funcionários. Uma
delegação dos manifestantes foi falar com Pinheiro de Azevedo, que declarou não
tencionar ler o documento das reivindicações, enquanto se mantivesse a situação
de pressão. Em resposta, representantes dos trabalhadores entraram no salão
nobre e na varanda, onde instalaram um sistema sonoro tendo iniciado um
comício.
Não iriam arredar pé, enquanto os seus problemas não
fossem resolvidos, gritaram aos altifalantes. E com isso, assumiram o sequestro
do Governo e dos deputados, que duraria 36 horas, sem que as forças de
segurança, comandadas pelo COPCON de Otelo, fizessem coisa alguma. Vendo a
situação entrar num impasse, com os trabalhadores a estenderem mantas e
acenderem fogueiras para dormir e ficar ali por tempo indeterminado, Pinheiro
de Azevedo veio à varanda apelar à dispersão, sob a promessa de estudar o
caderno reivindicativo.
Mas os manifestantes não o queriam ouvir, e gritavam e
insultavam o primeiro-ministro quando abria a boca. “Fascista!”, chamavam eles e Pinheiro de Azevedo, vulgo o
Almirante sem Medo, perdeu a paciência e retorquiu: “Fascista uma merda!” Na versão de outras testemunhas, terá até dito
que “vão todos bardamerda”.
Só na manhã de quinta-feira, dia 13 de novembro de 1975,
os manifestantes permitiram a saída dos deputados, funcionários e elementos do
público assistente. Os ministros continuaram sequestrados até que Pinheiro de
Azevedo acabou por assinar um compromisso, em que aceitava certas
reivindicações.
Aquando do sequestro à Assembleia, Mário Soares estava a
discursar e leu um bilhete que Jaime Gama lhe pôs à frente e ao corrente do que
se estava a passar. Soares colocou os papéis do discurso no bolso e saiu por
uma porta de acesso ao gabinete do Primeiro-ministro e dali para a rua. Tomou
um táxi e dirigiu-se para a sede do partido, no Largo do Rato. Como a
hipótese de golpe começava a ganhar credibilidade, Soares telefonou a Freitas
do Amaral, a informá-lo que tinha informações seguras de que o PC e a
extrema-esquerda estavam a preparar uma ação.
Do cerco da Assembleia Constituinte promovido pela UDP e
logo aproveitado pelo PC, Melo Biscaia não esquece a fome de que muitos
deputados se queixaram, enquanto nas salas do grupo parlamentar do PC não
faltava boa comida, nem bebida, “o sono
intranquilo de outros e a desesperada expectativa em que se viveram aquelas
prolongadas horas. Mas, o Dr. Olívio França, deputado do PPD, já idoso, começou
a dizer e fez constar aos mandantes do cerco que estava a ter um ataque
cardíaco e que chamassem, com urgência, uma ambulância que o transportasse a um
hospital. Conseguiu que acedessem mas, quando a ambulância chegou ao Rossio,
mandou-a parar e saiu pelo seu pé, havendo quem dissesse que tinha sido um
truque”.
No dia 14 de novembro reunidas, no Porto, as direções
dos grupos parlamentares dos três partidos democráticos, PS, PPD, CDS,
juntamente com os respetivos líderes, admitiram dividir o País a meio, a
fronteira seria Rio Maior (AQUI COMEÇA/ACABA PORTUGAL), continuar no Porto a
discutir e votar o novo texto constitucional, bem como formar um novo governo,
ali sediado.
Os SUV, de Lisboa, fizeram circular um comunicado a 23
de novembro, no qual afirmam que “a hora
é de avançar”. A FUR decide lançar o assalto ao poder. E o golpe vem para a
rua, na madrugada de 25 de novembro.
Biscaia passados estes anos, ainda se emociona com os
tempos da Constituinte pois, apesar “de
muitos atos hostis e até alguns violentos que se praticaram contra os
“fazedores” dessa Constituição que uns não desejavam que se concluísse, tal Lei
Fundamental veio a ser aprovada em 2 de abril de 1976, numa memorável sessão em
que não faltou a emoção até às lágrimas de muitos democratas que, durante anos,
lutaram corajosamente contra a ditadura e que depois de um laborioso ano
quiseram dar aos portugueses aquela Lei, donde constavam os direitos
fundamentais políticos, sociais, económicos e culturais e a preservação da
Liberdade. A democracia, cujas regras foram definidas e fixadas na Constituição
de 1976, na qual tive a honra de colaborar e que foi considerada, na altura,
como uma das mais avançadas dos países democráticos, foi-se, felizmente, pouco
a pouco consolidando, o período muito difícil do chamado PREC vencido, a
sociedade pacificou-se, embora não se tenha, ainda, encontrado as melhores
soluções para os problemas sociais e políticos do nosso país”.
Gonçalves Sapinho também me confessou que “votei a Constituição com lágrimas nos
olhos, porque tinha a perceção que estava a votar a arquitetura da democracia
portuguesa”.
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