segunda-feira, 28 de abril de 2014

MELO BISCAIA E A ASSEMBLEIA CONSTITUINTE (1975). O DEPUTADO TELECOMANDADO.

 

MELO BISCAIA E A ASSEMBLEIA CONSTITUINTE (1975).
O DEPUTADO TELECOMANDADO.

Fleming de Oliveira


Luís Melo Biscaia, um prestigiado advogado da cidade e seu decano, nasceu na Figueira da Foz, a 28 de março de 1928.
Foi opositor do regime de Salazar e Caetano, razão pela qual se demitiu, em 1958, de vereador da Câmara Municipal para apoiar a candidatura de Humberto Delgado.
Melo Biscaia fez parte da direção do Ginásio Figueirense, do Rotary Club da Figueira da Foz, dos Bombeiros Voluntários, da Misericórdia-Obra da Figueira.
A seguir ao 25 de Abril, integrou a direção do MDP, que abandonaria para se filiar no PPD, nas listas do qual viria a ser eleito Deputado à Assembleia Constituinte.
Depois de entrar em rutura com Sá Carneiro e com o PPD, saiu dele integrado num grupo de 40 deputados sociais-democratas, constituindo depois no Parlamento um grupo de independentes. Não mais voltou ao PPD/PSD, ao contrário de alguns outros, como aprecia registar, mas não me quer identificar.
“Esses deputados não quiseram pactuar com a prática do PPD, porque no seu programa inicial se consagrava uma social-democracia autêntica, vindo a verificar-se que os responsáveis máximos desse partido estavam, sim, a querer torná-lo um mero partido liberal. Entre esses deputados estavam Mota Pinto, José Augusto Seabra, Artur Santos Silva (pai), Emídio Guerreiro, José Casimiro Cobre, etc. Ainda lembro o rosto, muito sombrio, a denotar preocupação e tristeza, como Sá Carneiro recebeu as cartas de demissão desses deputados, que constituíam metade do grupo parlamentar do PPD”.
Biscaia lembrou-me a “dificuldade em se encontrar posição para nos colocar no hemiciclo: havia quem quisesse pôr-nos à direita do PS, outros à esquerda, e, durante alguns dias deram-nos lugar à frente das bancadas do parlamento, sentados em simples cadeiras, sem qualquer mesa para se poder escrever”.
Na Assembleia Constituinte, fui “reencontrar um numeroso grupo de amigos pessoais e políticos com os quais “trabalhei” contra a ditadura de Salazar e Caetano e ali tive oportunidade de assistir a um firme e corajoso confronto ideológico. Nesse tempo havia mesmo ideologias demarcadas, para o qual muitos se mostraram estar seriamente preparados. Destaco os deputados Amaro da Costa, Mota Pinto, Jorge Miranda, Luís Catarino, Vital Moreira, José Luís Nunes, Manuel Alegre e outros que produziram intervenções de elevado nível, cheias de conteúdo político e formalmente belas no estilo. Não posso deixar de registar a isenção e a maneira muito distinta como o Professor Henrique de Barros, Presidente da Assembleia, sempre orientou os trabalhos, não lhe faltando nunca o bom senso”.
No Governo de Maria de Lurdes Pintasilgo (1979), Biscaia foi Secretário de Estado do Emprego e Formação Profissional.
“Foram cinco meses intensos e de belíssima legislação. Alguns dos meus despachos ainda vigoram, embora não sejam aplicados”, lembrou-me Melo Biscaia. Como advogado, com 55 anos de carreira (hoje reformado) pode afirmar que “tenho a minha consciência profissional tranquila, pois tenho cumprido o meu dever, sem esquecer a função social da advocacia”.

Deputado Constituinte, Melo Biscaia tem gosto em recordar um discurso que fez no Parlamento no qual criticou severamente a ação do Primeiro-Ministro, Vasco Gonçalves, acabando por dizer: “Vá-se embora, porque já não está a fazer nada nesse lugar!”
Esse discurso foi proferido numa sexta-feira e na segunda-feira seguinte, quando chegou à Assembleia, vários deputados vieram felicitá-lo porque Vasco Gonçalves tinha “obedecido” ao seu mandado, o que foi motivo, de muitas conversas e piadas.
O discurso apareceu numa televisão sueca, segundo lhe referiu uma senhora da Figueira da Foz, casada com um cidadão sueco.

E ainda o facto, que trouxe alguma preocupação episódica aos deputados, relacionado com segurança da Assembleia.
No final de uma sessão da tarde, foram avisados pelo oficial que comandava a segurança do Palácio de S. Bento, que se dizia que nessa noite, elementos do COPCON poderiam fazer rusgas nos hotéis onde estavam alojados os deputados que não pertencessem aos partidos de esquerda para os prenderem e levarem para o Campo Pequeno, onde seriam vítimas de violências ou mesmo talvez da morte. E a verdade é que muitos dos deputados deslocaram-se, de mala aviada, para hotéis da “Linha”.
“Eu, que era o único a estar num hotel perto do Parque Eduardo VII, limitei-me a recomendar na receção que jantaria no quarto e que se alguém ali fosse perguntar por mim, que dissessem que tinha ido para a Figueira. Afinal, não passou de um susto. Aliás, nesse período conturbado após o 25 de Abril, próprio de qualquer tempo revolucionário, punham-se a correr notícias perturbadoras, sobretudo para aqueles que queriam elaborar uma Constituição que consagrasse uma democracia pluralista e representativa”.
Biscaia não esquece o pouco esclarecido e “telecomandado” deputado Américo Duarte, o único representante da UDP pois “quando das votações, ele obedecia a uma camarada que estava na galeria, levantando-se ou deixando-se estar sentado, consoante o gesto que era feito para o sentido de voto”.

Aquando da manifestação de trabalhadores da construção civil que cercou o Palácio de S. Bento, onde o Governo se encontrava reunido, foi decidido apresentar ao Primeiro-Ministro um caderno reivindicativo. Em frente do portão da residência oficial deste, os trabalhadores colocaram uma betoneira, obstruindo a saída, pelo que, ninguém poderia abandonar o palácio antes de terem sido atendidas as reivindicações, anunciaram os delegados sindicais.
No interior, permaneciam o Governo, os deputados e o público que assistia à sessão da Assembleia, bem como os funcionários. Uma delegação dos manifestantes foi falar com Pinheiro de Azevedo, que declarou não tencionar ler o documento das reivindicações, enquanto se mantivesse a situação de pressão. Em resposta, representantes dos trabalhadores entraram no salão nobre e na varanda, onde instalaram um sistema sonoro tendo iniciado um comício.
Não iriam arredar pé, enquanto os seus problemas não fossem resolvidos, gritaram aos altifalantes. E com isso, assumiram o sequestro do Governo e dos deputados, que duraria 36 horas, sem que as forças de segurança, comandadas pelo COPCON de Otelo, fizessem coisa alguma. Vendo a situação entrar num impasse, com os trabalhadores a estenderem mantas e acenderem fogueiras para dormir e ficar ali por tempo indeterminado, Pinheiro de Azevedo veio à varanda apelar à dispersão, sob a promessa de estudar o caderno reivindicativo.
Mas os manifestantes não o queriam ouvir, e gritavam e insultavam o primeiro-ministro quando abria a boca. “Fascista!”, chamavam eles e Pinheiro de Azevedo, vulgo o Almirante sem Medo, perdeu a paciência e retorquiu: “Fascista uma merda!” Na versão de outras testemunhas, terá até dito que “vão todos bardamerda”.
Só na manhã de quinta-feira, dia 13 de novembro de 1975, os manifestantes permitiram a saída dos deputados, funcionários e elementos do público assistente. Os ministros continuaram sequestrados até que Pinheiro de Azevedo acabou por assinar um compromisso, em que aceitava certas reivindicações.
Aquando do sequestro à Assembleia, Mário Soares estava a discursar e leu um bilhete que Jaime Gama lhe pôs à frente e ao corrente do que se estava a passar. Soares colocou os papéis do discurso no bolso e saiu por uma porta de acesso ao gabinete do Primeiro-ministro e dali para a rua. Tomou um táxi e dirigiu-se para a sede do partido, no Largo do Rato. Como a hipótese de golpe começava a ganhar credibilidade, Soares telefonou a Freitas do Amaral, a informá-lo que tinha informações seguras de que o PC e a extrema-esquerda estavam a preparar uma ação.

Do cerco da Assembleia Constituinte promovido pela UDP e logo aproveitado pelo PC, Melo Biscaia não esquece a fome de que muitos deputados se queixaram, enquanto nas salas do grupo parlamentar do PC não faltava boa comida, nem bebida, “o sono intranquilo de outros e a desesperada expectativa em que se viveram aquelas prolongadas horas. Mas, o Dr. Olívio França, deputado do PPD, já idoso, começou a dizer e fez constar aos mandantes do cerco que estava a ter um ataque cardíaco e que chamassem, com urgência, uma ambulância que o transportasse a um hospital. Conseguiu que acedessem mas, quando a ambulância chegou ao Rossio, mandou-a parar e saiu pelo seu pé, havendo quem dissesse que tinha sido um truque”.

No dia 14 de novembro reunidas, no Porto, as direções dos grupos parlamentares dos três partidos democráticos, PS, PPD, CDS, juntamente com os respetivos líderes, admitiram dividir o País a meio, a fronteira seria Rio Maior (AQUI COMEÇA/ACABA PORTUGAL), continuar no Porto a discutir e votar o novo texto constitucional, bem como formar um novo governo, ali sediado.
Os SUV, de Lisboa, fizeram circular um comunicado a 23 de novembro, no qual afirmam que “a hora é de avançar”. A FUR decide lançar o assalto ao poder. E o golpe vem para a rua, na madrugada de 25 de novembro. 

Biscaia passados estes anos, ainda se emociona com os tempos da Constituinte pois, apesar “de muitos atos hostis e até alguns violentos que se praticaram contra os “fazedores” dessa Constituição que uns não desejavam que se concluísse, tal Lei Fundamental veio a ser aprovada em 2 de abril de 1976, numa memorável sessão em que não faltou a emoção até às lágrimas de muitos democratas que, durante anos, lutaram corajosamente contra a ditadura e que depois de um laborioso ano quiseram dar aos portugueses aquela Lei, donde constavam os direitos fundamentais políticos, sociais, económicos e culturais e a preservação da Liberdade. A democracia, cujas regras foram definidas e fixadas na Constituição de 1976, na qual tive a honra de colaborar e que foi considerada, na altura, como uma das mais avançadas dos países democráticos, foi-se, felizmente, pouco a pouco consolidando, o período muito difícil do chamado PREC vencido, a sociedade pacificou-se, embora não se tenha, ainda, encontrado as melhores soluções para os problemas sociais e políticos do nosso país”.

Gonçalves Sapinho também me confessou que “votei a Constituição com lágrimas nos olhos, porque tinha a perceção que estava a votar a arquitetura da democracia portuguesa”.



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