UMA ALCOBACENSE PROFESSORA PRIMÁRIA DO ANTIGAMENTE,
“GIRA” E AFÁVEL.
PIEDADE NETO.
Fleming de Oliveira
Piedade Neto, define-se como pessoa corajosa, afável, “amiga do meu amigo”, de convicções
claras pelas quais luta, sendo capaz de fazer frente aquilo com que não
concorda “e até já sofri na pele por
causa disso”, não se deixa abater com facilidade e vai à luta, “sou progressista, porque o mundo evolui, mas
há aspetos que considero intemporais e de que não abdico. Nunca me filiei em
partidos políticos, embora tenha tido convites, pois não aprecio a disciplina
partidária, gosto de pensar pela minha cabeça”.
Reformada do exercício do ensino básico, faz uma vida
social intensa, colaborando há anos na rádio local, inicialmente com um
programa infantil, depois de música clássica e atualmente na área do
jornalismo, político, económico e social.
Avó, gostaria segundo me disse de poder dedicar mais
tempo ao neto, mas não sendo apreciadora de cozinha e de atividades domésticas,
no mais, é uma normal dona de casa.
Começou a trabalhar em 1972 no então chamado ensino
primário, colocada na Maiorga, numa época em que no setor tudo era diferente.
Era uma professora “gira” e sem
dúvida, transmitia uma lufada de ar fresco, na forma de se relacionar com os
meninos.
Há quase quarenta
anos, era assim uma sala de aula de Escola Primária. À direita na parede do
fundo, a fotografia do Presidente da República, Alm. Américo Tomás. Ao centro,
o crucifixo e o quadro preto de ardósia. Nesta imagem, já falta Salazar,
substituído em 1968 por Caetano.
Piedade Neto tinha uma relação informal com os seus
meninos, capacidade de comunicação, mas sabia delimitar os espaços.
Um antigo aluno, aliás como muitos que sempre que a
encontram cumprimentam-na muito saudosa e afavelmente, conta que uma vez estava
toda a gente na brincadeira e em algazarra, quando ela entrou e pediu silêncio.
Sem obter resultado, à terceira, pegou numa pasta que trazia consigo, levou-a à
altura da cabeça e deixou-a cair sobre a secretária. Os miúdos estremeceram com
o barulho, calaram-se e “quando olhei
para ela, estava a rir-se da nossa reação”.
O mesmo ex-aluno, acrescenta que “sabia dar um berro para impor a ordem”.
Neste aspeto, não era caso único. Havia casos de outros
professores, com carisma, boa capacidade de se entenderem com os alunos mais
fracos e de controlar os mais inquietos, que por vezes apenas com a presença,
uma graça ou algo inesperado, conseguia dobrar.
“Os malandrecos
tinham respeito pela autoridade natural da prof. Piedade e batiam baixinho a
bola”.
Em Alenquer, a profª. Margarida Matias, também
reformada, conta que um dia teve de castigar um rapaz mal comportado.
“Agora vais ficar
aqui, até limpares e arrumares a porcaria (papeis
no chão e riscos na secretária) que
fizeste”.
Como o garoto tivesse começado a choramingar, a
professora disse-lhe que “fizeste esta
bagunça toda, mas não é preciso ficar assim”. E o aluno, “é que assim perco o treino de andebol e não
posso jogar no sábado”. Então acalmou-o, “acaba depressa o que tens de fazer, que eu levo-te de carro ao treino.
Onde é?”
Os programas escolares do ensino primário traduziam
princípios e práticas ancestrais, a que não era estranha a trilogia Deus, a
aceitação da pobreza, a humildade, o Céu e o Inferno, Pátria, o nacionalismo, a
fundação da nacionalidade, o espírito patriótico, a gesta dos descobrimentos e
o Grande Império uno e indivisível do Minho a Timor, o respeito incondicional
aos chefes, e Família, a predominância do Chefe da Família e a capitis diminutio da mulher.
Com o 25 de Abril, a rutura não foi imediata, mas
atordoou os professores, que se viram empurrados para atitudes, antes
impensáveis, e com as quais Piedade Neto, nem sempre se identificava.
“Todavia, a pressão
politica e social desenvolvida por alguns grupos minoritários era muito forte,
o que criava constrangimentos, desde logo pela imputação de comportamentos
alegadamente retrógrados ou fascizantes, incompatíveis com os novos tempos e a
nova alvorada”.
Isto, ao fim de algum tempo, alterou o tipo de relações
entre o professor e alunos, pois que eram tidas como desajustadas conotações
com a religião e certas práticas sociais de boa civilidade, como fascistas ou
fascizantes.
Os programas iam sendo revistos, com destaque para a
componente de história, onde foi patente o branqueamento ou reescrever de
alguns episódios. Os professores, tinham de ser objeto de apressada
atualização/formação, por parte do MDP/CDE e Ministério da Educação, que os
convocavam para debater, no coletivo, os novos problemas adequados à época.
Mestres como Camões, foram desvalorizados, dando lugar a outros, ainda que não
portugueses, mas de pensamento progressista, tais como Agostinho Neto e Amílcar
Cabral, referências do movimento de libertação da opressão do colonialismo
português e agora da cultura portuguesa…
A iniciação musical, tinha por base modinhas
tradicionais que Piedade Neto cultivava, amorosamente, com os meninos, mas que
começaram a ser arredadas, para dar lugar a temas, como a célebre Gaivota, de
Ermelinda Duarte, repetida ad nauseam na
rádio.
Uma das primeiras iniciativas revolucionárias, que teve
de aceitar na escola, foi a abolição do uso da bata. Os alunos, meninas e
meninos, usavam bata, tal como os professores, o que era aceite naturalmente
pois, “na minha opinião, esta prática
tinha sentido, pois que para além de ser higiénica, criava menos
desigualdades”.
Como cidadã (“o 25
de Abril entusiasmou-me, criou-me expectativas. A alegria era contagiante, e
era impossível fugir a essa onda. Ainda hoje considero o 25 de Abril, na sua
essência, uma das mais bonitas datas da nossa História” ), deu-lhe novas perspetivas,
nomeadamente no que diz respeito à situação da mulher na sociedade e no
trabalho.
No ensino secundário, aconteceram pois grandes mudanças,
fruto de novos ideais. Os professores mais antigos e com referências eram por
alguns colegas considerados fascistas e retrógrados, porque representavam um
sistema se queria banir.
O marido de Piedade Neto, foi professor na Escola
Secundária de Alcobaça, atualmente Dona Inês de Castro, e não sendo alinhado
com os excessos de alguns colegas, a correspondência que lhe era dirigida e
entregue trouxe, uma vez, uma cruz suástica desenhada no envelope.
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