JUSTIÇA PORTUGUESA ANTES E DEPOIS DE 25 DE ABRIL
(Alcobaça e não só)
Fleming de Oliveira
“Eles gostam muito
de beber”, era o comentário que
num misto de condenação e desculpa faziam em geral os familiares e vizinhos do
casal, que já lá vão mais de 40 anos vivia num lugar do concelho de Barcelos.
Conheci o facto que vou contar através de um familiar.
Mas daquela vez a discussão acabou no hospital da pior
maneira para Maria Domingas, de 39 anos, que só teve alta ao fim de dois dias.
Esta foi espancada pelo companheiro, com quem vivia há 4 anos, até que caiu
inanimada no chão da cozinha. Este, que já tinha alguns antecedentes criminais
por violência doméstica e não só (fora despedido da fábrica por ter dado um
murro no encarregado), apresentado pela GNR ao juiz, saiu em liberdade, com o
agrado da opinião pública.
“Entre marido e
mulher…”
Duas filhas da Domingas assistiram sem grande
sobressalto à cena, que terá começado quando aquela atirou com um martelo e uma
chave de fendas ao companheiro e depois ainda o atingiu com uma mesa. O homem
respondeu, puxando-lhe os cabelos, calcando as mãos e batendo na cabeça.
Quando o filho mais velho chegou a casa, encontrou a
cozinha toda “baldeada”, com pingos
de sangue e a mãe estendida no chão e perguntou:
“E agora o que vamos
jantar?”
Tal como as irmãs, entende que a mãe (que nunca acertou
com os homens), não tem juízo pois que “numa
casa quem tem calças é o homem…”
Na Bemposta/Alcobaça, a vida seguia o seu ritmo
tradicional, nesse mês de maio ou junho de 1974, sem grandes conflitos entre os
habitantes.
Nem tudo eram rosas neste período pós-revolução e os
desentendimentos entre a vizinhança continuavam normais e inevitáveis. Foi isto
que aconteceu entre dois homens nesta localidade perto de Alcobaça. Um deles
foi mordido pelo cão do vizinho e levou o caso ao regedor. Ainda havia regedor.
A vítima alegou ter perdido seis dias de trabalho, facto que comprovou com um atestado
médico do Dr. Henrique Trindade
Ferreira, e exigiu o pagamento das despesas médicas e a jorna perdida. O
assunto ainda estava em fase de mediação, quando os dois vizinhos chegaram a
acordo.
Ficou decidido que o dono do cão iria lavrar a terra do
seu vizinho, até que esse serviço pagasse o prejuízo da vítima. A amizade de
muitos anos entre os dois falou mais alto num assunto que poderia ter tido um
desfecho pior, se tivesse sido levado à GNR do truculento Sarg. Barbosa ou ao
tribunal.
Há
algum anos, Luísa (com trinta e tal anos), foi ao meu escritório, por sugestão
de sua mãe Albertina M., que também por lá passara, por alturas de 1975. Apesar
do tempo decorrido, lembrava-me do assunto da Albertina, pois foi dos primeiros
que assumi enquanto novel advogado no escritório do Dr. Amílcar Magalhães.
Albertina
M., menina de boas famílias de Pataias, aos 18 anos deixou de estudar, para
casar, com um rapaz de 25 anos, com um bom emprego, mas sem fortuna. Foi um romance
de amor, bem aceite em casa, que acabaria por ser abençoado no altar do
Mosteiro de Coz. Mas a paixão arrefeceu e, passados não muitos anos, a quase ainda menina, viu o marido sair
de casa, deixando-lhe a filha Luísa nos braços.
Como a
Albertina era pessoa de profunda e tradicional formação católica (que herdou da
família aonde havia dois sacerdotes), rejeitava liminarmente o divórcio, que
aliás no antes do 25 de Abril não era possível. Luísa recordava a dor que a
rutura conjugal provocou na mãe Albertina, a que acresceu uma certa
marginalização da sociedade, família e amigos.
Albertina,
achava que o marido, ao sair de casa e deixar a família, cometeu um pecado
grande e, por isso, não iria para o Céu. Embora tenha refeito a vida com outro
homem, com quem viveu (e creio que ainda vive não obstante ser idosa), muito
mais tempo, que com o primeiro marido, é a aliança do casamento católico que
tem mantido no dedo, verdade seja dita, com um certo constrangimento do outro.
Albertina, sempre ouviu dizer em casa dos pais, que “o que Deus juntou ninguém pode separar”.
O
facto de a lei civil não permitir o divórcio aumentava o sentimento de
culpa/pecado da Albertina, que só teve mais dois filhos, aliás muito mais novos
que Luísa, após legalizar a situação no escritório do Dr. Magalhães, isto é,
convertendo a separação de pessoas e bens em divórcio, evitando o ónus dos
filhos ilegítimos.
Naquela
história, estava em causa uma troca de sopapos entre dois elementos locais de
partidos diferentes (creio em Turquel), num sábado à noite de campanha para as
eleições para a Constituinte de 1975.
O do
PPD, apresentou queixa contra o outro do CDS, por ofensas à integridade física.
Tudo acabou de uma forma satisfatória, de acordo com o auto elaborado pelo
Sarg. Barbosa, que até se dizia ir lanchar muitas vezes a casa do queixoso, de
onde trazia um garrafão…., de vinho ou azeite.
“Pelos elementos apurados, não se compreende
na realidade o que se passou, visto que houve gente ouvida no processo que não
falou a verdade. Há duas testemunhas a dizer que o agressor andava num Fiat
branco e, pelo menos uma, afirmou que era o sr. Manuel (…) que tem um
Fiat branco. Apareceram outras pessoas de boa situação social, uma professora,
um bancário, um comerciante e um empreiteiro, também conceituados na praça a
dizerem o contrário. Isto é, disseram que estavam naquele momento com o
arguido. Assim sendo, havendo só um Manuel (…) não poderia estar em ambos os locais à mesma hora. “
No
Tribunal de Alcobaça, por alturas de 1977 um individuo estava a ser julgado
pelo juiz Morais, que durante quase um ano só despachava no crime.
Na
parte final do julgamento, o juiz fez-lhe perguntas sobre as suas posses e
rendimentos. Tinha em vista colher dados que lhe permitissem fixar o montante
da multa se, porventura, viesse a impor-lhe uma sanção desse tipo. O valor de
cada dia de multa é fixado em função da situação económico-financeira do
arguido.
Este,
era pouco esperto mas muito vaidoso, pelo que não querendo prejudicar a imagem
de empresário de sucesso que julgava arranjada em França, respondeu que não
tinha salário fixo, havendo alturas em que ganhava muito dinheiro e outras em
que ganhava menos.
O juiz
Morais, que precisava de dados concretos, provocou uma resposta concreta,
perguntando:
-“Ganha
1000, 2000, 5000 contos por mês?”
O
arguido (do alto da sua soberba), respondeu apenas que havia meses em que até
ganhava mais. Foi condenado na taxa diária máxima.
Vejamos
agora uma notificação expedida na sequência de um despacho de arquivamento de
um processo crime, na fase de inquérito no MP.
Alcobaça, 22 de outubro de 1974
Exmº Sr.
Comandante da GNR de
Alcobaça
Rogo a V. Exª que seja notificado o arguido ( …), residente em (…), de que por despacho de 15.10.1974, do Digno Agente do MP, e nos termos do Artigo 277º,, nº 1 do CPP, foi ordenado o arquivamento dos autos, dado o crime ser de natureza cível.
Tanto
o Dr. Manuel Almeida, como o Dr. Amílcar Magalhães eram advogados muito
respeitados e conceituados em Alcobaça, quando se deu o 25 de Abril.
Além
destes, também exercia o Dr. José Bento da Silva, e residualmente o Dr. Amílcar
Ramos Ferreira, Tinham acabado de chegar
à comarca e começado a exercer advocacia, Virgílio Ribeiro e Pessanha
Gonçalves. Eu vim viver para Alcobaça, a 20 de abril de 1974, acabada a
comissão militar na Guiné e trabalhar
com o Dr. Amílcar Magalhães.
O Dr.
Manuel de Almeida, ainda exerceu durante alguns anos, recusando-se a seguir
alguns novos conceitos e métodos da profissão. Era vulgar ve-lo, ao fim da
tarde, à porta do escritório na Praça 25 de Abril, conversando afavelmente com
quem passava. Não era frequentador de cafés ou restaurantes e nunca quis ter
automóvel ou mesmo carta de condução.
Contava
aos colegas mais novos, alguns dos seus casos, sempre “muito complicados” e o daquele advogado de Leiria, licenciado no
pós-25 de Abril, que comentava a propósito de um inventário, que o “de cujus”, isto é, o falecido e
inventariado, havia deixado cinco “de
cujinhos”.
Ele
queria dizer, na sua ignorância, que o morto deixou cinco filhos vivos,
menores.
O Dr.
Amílcar Magalhães (meu sogro), gostava de salientar que “jamais aceitou uma causa em que tivesse de mentir com inteiro
conhecimento, pois o juiz e o colega da outra parte descobririam tudo pela sua
cara e o cliente acabaria por perder a questão”. Assim, na década de 1960
recusou tomar conta do caso de um indivíduo da Nazaré, ao descobrir que isso
seria a ruína de uma viúva, com seis filhos. O caso referia-se a seiscentos
contos.
Numa
carta ao cliente recusado, o Dr. Magalhães dizia que “não fico com o seu caso, embora pudesse, sem dúvida alguma, ganhá-lo.
Há coisas que são legalmente certas, mas moralmente erradas. Quando puder passe
pelo meu escritório para lhe explicar melhor”.
O Dr.
A. Magalhães deu-lhe depois, um gratuito conselho, que desconheço se foi
apreciado, “um homem vivo, capaz e
enérgico como o senhor, deveria tentar recuperar os seiscentos contos de outra
maneira, sempre civilizada…”
E o
caso daquela mulher acusada de ter partido um braço a uma outra, que andava
enrolada com o seu marido e se ria quando se cruzavam na rua. O Dr. Magalhães
defendia a acusada e, embora fosse muito formal, fleumático e normalmente pouco
dado a graçolas, em alegações orais finais perante o juiz Morais não resistiu
em salientar a importância da sincera confissão, pois “ela diz sempre a verdade. Ela (a acusada) disse que ia dar uma valente sova aquela filha da mãe e deu mesmo!”
Foi
condenada, embora com a pena suspensa.
A
notícia caiu como uma bomba nos meios forenses da região, mas nunca foi muito
divulgada.
Na
Marinha Grande, fizera-se um Auto de Fé na praça pública, pois o Senhor Juiz
(comunista assumido, frequentador da sede do PC), mandou queimar os “códigos fascistas”.
Julgamentos
de ações de despejo, tinham a intervenção (nem sempre meramente consultiva), de
comissões de moradores e de populares. Não que estes atos, fossem
verdadeiramente originais, não que não tivessem sido perpetrados noutros tempos
e paragens.
Não
que houvesse diferença especial entre os pressupostos da esquerda radical
portuguesa, da direita nazi-fascista, exceto no facto daquela aplicar esses
métodos com a hipocrisia da defesa das virtudes públicas e sociais. Camilo José
Cela, escreveu in “Tomas Cerudellar Cavilador” que um juiz deve ser sereno,
velho e cético, dado que a justiça não tem por missão consertar o mundo mas,
sim, evitar que se deteriore mais, isso basta. Quando um juiz se sente depositário dos valores morais da
sociedade, a justiça ressente-se e protesta.
Para
além da queima dos “códigos fascistas”
na Marinha Grande, noutro tempo e locais, estiveram incluídos na lista de
material combustível, livros ou páginas de escritores como Ana Hatherly, José
Régio, Urbano Tavares Rodrigues, Hermano Saraiva, Fernanda de Castro, Tomás
Ribas, Vitorino Nemésio, Barrilaro Ruas, Esther de Lemos, Calvet de Magalhães e
Maria de Lurdes Belchior.
O que
formalmente distinguiu quaisquer um dos ditos autos-da-fé portugueses, dos
levados a cabo pelos nazis, decorreu que estes, eram feitos, em geral, sem
alarido público, mais ou menos às escondidas.
Por
sua vez, os nazis assumiam com orgulho e publicitavam os seus autos de fé.
Sottomayor
Cardia, num discurso em outubro de 1976, dois anos depois do despacho de Rui
Grácio, Secretário de Estado da Educação, que determinava os autos de fé,
acusou o ME de ter “à maneira
inquisitorial, ordenado a destruição
de livros pelo fogo. Há no Ministério
prova da realização de autos de fé por determinação oficial.”
Na altura,
os jornais na sua censura não ligaram a estas denúncias, porque alinhavam com o
politicamente correto, que dominava os meios de comunicação social.
Veja-se
Saramago, no Diário de Notícias, que acharia profilática a queima dessa
literatura viciosa e, assim, exercia a censura camuflada, sob a capa das boas
intenções.
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