segunda-feira, 28 de abril de 2014

JUSTIÇA PORTUGUESA ANTES E DEPOIS DE 25 DE ABRIL (Alcobaça e não só)


 
JUSTIÇA PORTUGUESA ANTES E DEPOIS DE 25 DE ABRIL (Alcobaça e não só)

Fleming de Oliveira

“Eles gostam muito de beber”, era o comentário que num misto de condenação e desculpa faziam em geral os familiares e vizinhos do casal, que já lá vão mais de 40 anos vivia num lugar do concelho de Barcelos. Conheci o facto que vou contar através de um familiar.
Mas daquela vez a discussão acabou no hospital da pior maneira para Maria Domingas, de 39 anos, que só teve alta ao fim de dois dias. Esta foi espancada pelo companheiro, com quem vivia há 4 anos, até que caiu inanimada no chão da cozinha. Este, que já tinha alguns antecedentes criminais por violência doméstica e não só (fora despedido da fábrica por ter dado um murro no encarregado), apresentado pela GNR ao juiz, saiu em liberdade, com o agrado da opinião pública.
“Entre marido e mulher…”
Duas filhas da Domingas assistiram sem grande sobressalto à cena, que terá começado quando aquela atirou com um martelo e uma chave de fendas ao companheiro e depois ainda o atingiu com uma mesa. O homem respondeu, puxando-lhe os cabelos, calcando as mãos e batendo na cabeça.
Quando o filho mais velho chegou a casa, encontrou a cozinha toda “baldeada”, com pingos de sangue e a mãe estendida no chão e perguntou:
“E agora o que vamos jantar?”
Tal como as irmãs, entende que a mãe (que nunca acertou com os homens), não tem juízo pois que “numa casa quem tem calças é o homem…”

Na Bemposta/Alcobaça, a vida seguia o seu ritmo tradicional, nesse mês de maio ou junho de 1974, sem grandes conflitos entre os habitantes.
Nem tudo eram rosas neste período pós-revolução e os desentendimentos entre a vizinhança continuavam normais e inevitáveis. Foi isto que aconteceu entre dois homens nesta localidade perto de Alcobaça. Um deles foi mordido pelo cão do vizinho e levou o caso ao regedor. Ainda havia regedor. A vítima alegou ter perdido seis dias de trabalho, facto que comprovou com um atestado médico do Dr. Henrique Trindade  Ferreira, e exigiu o pagamento das despesas médicas e a jorna perdida. O assunto ainda estava em fase de mediação, quando os dois vizinhos chegaram a acordo.
Ficou decidido que o dono do cão iria lavrar a terra do seu vizinho, até que esse serviço pagasse o prejuízo da vítima. A amizade de muitos anos entre os dois falou mais alto num assunto que poderia ter tido um desfecho pior, se tivesse sido levado à GNR do truculento Sarg. Barbosa ou ao tribunal.
E assim se faziam as coisas, em Alcobaça.

Há algum anos, Luísa (com trinta e tal anos), foi ao meu escritório, por sugestão de sua mãe Albertina M., que também por lá passara, por alturas de 1975. Apesar do tempo decorrido, lembrava-me do assunto da Albertina, pois foi dos primeiros que assumi enquanto novel advogado no escritório do Dr. Amílcar Magalhães.
Albertina M., menina de boas famílias de Pataias, aos 18 anos deixou de estudar, para casar, com um rapaz de 25 anos, com um bom emprego, mas sem fortuna. Foi um romance de amor, bem aceite em casa, que acabaria por ser abençoado no altar do Mosteiro de Coz. Mas a paixão arrefeceu e, passados não muitos anos, a quase ainda menina, viu o marido sair de casa, deixando-lhe a filha Luísa nos braços.
Como a Albertina era pessoa de profunda e tradicional formação católica (que herdou da família aonde havia dois sacerdotes), rejeitava liminarmente o divórcio, que aliás no antes do 25 de Abril não era possível. Luísa recordava a dor que a rutura conjugal provocou na mãe Albertina, a que acresceu uma certa marginalização da sociedade, família e amigos.
Albertina, achava que o marido, ao sair de casa e deixar a família, cometeu um pecado grande e, por isso, não iria para o Céu. Embora tenha refeito a vida com outro homem, com quem viveu (e creio que ainda vive não obstante ser idosa), muito mais tempo, que com o primeiro marido, é a aliança do casamento católico que tem mantido no dedo, verdade seja dita, com um certo constrangimento do outro. Albertina, sempre ouviu dizer em casa dos pais, que “o que Deus juntou ninguém pode separar”.
O facto de a lei civil não permitir o divórcio aumentava o sentimento de culpa/pecado da Albertina, que só teve mais dois filhos, aliás muito mais novos que Luísa, após legalizar a situação no escritório do Dr. Magalhães, isto é, convertendo a separação de pessoas e bens em divórcio, evitando o ónus dos filhos ilegítimos.

Naquela história, estava em causa uma troca de sopapos entre dois elementos locais de partidos diferentes (creio em Turquel), num sábado à noite de campanha para as eleições para a Constituinte de 1975.
O do PPD, apresentou queixa contra o outro do CDS, por ofensas à integridade física. Tudo acabou de uma forma satisfatória, de acordo com o auto elaborado pelo Sarg. Barbosa, que até se dizia ir lanchar muitas vezes a casa do queixoso, de onde trazia um garrafão…., de vinho ou azeite.
“Pelos elementos apurados, não se compreende na realidade o que se passou, visto que houve gente ouvida no processo que não falou a verdade. Há duas testemunhas a dizer que o agressor andava num Fiat branco e, pelo menos uma, afirmou que era o sr. Manuel (…) que tem um Fiat branco. Apareceram outras pessoas de boa situação social, uma professora, um bancário, um comerciante e um empreiteiro, também conceituados na praça a dizerem o contrário. Isto é, disseram que estavam naquele momento com o arguido. Assim sendo, havendo só um Manuel (…) não poderia estar em ambos os locais à mesma hora. “

No Tribunal de Alcobaça, por alturas de 1977 um individuo estava a ser julgado pelo juiz Morais, que durante quase um ano só despachava no crime.
Na parte final do julgamento, o juiz fez-lhe perguntas sobre as suas posses e rendimentos. Tinha em vista colher dados que lhe permitissem fixar o montante da multa se, porventura, viesse a impor-lhe uma sanção desse tipo. O valor de cada dia de multa é fixado em função da situação económico-financeira do arguido.
Este, era pouco esperto mas muito vaidoso, pelo que não querendo prejudicar a imagem de empresário de sucesso que julgava arranjada em França, respondeu que não tinha salário fixo, havendo alturas em que ganhava muito dinheiro e outras em que ganhava menos.
O juiz Morais, que precisava de dados concretos, provocou uma resposta concreta, perguntando:
-“Ganha 1000, 2000, 5000 contos por mês?”
O arguido (do alto da sua soberba), respondeu apenas que havia meses em que até ganhava mais. Foi condenado na taxa diária máxima.

Vejamos agora uma notificação expedida na sequência de um despacho de arquivamento de um processo crime, na fase de inquérito no MP.

Alcobaça, 22 de outubro de 1974

Exmº Sr.
Comandante da GNR de
Alcobaça

Rogo a V. Exª que seja notificado o arguido
( …), residente em (…), de que por despacho de 15.10.1974, do Digno Agente do MP, e nos termos do Artigo 277º,, nº 1 do CPP, foi ordenado o arquivamento dos autos, dado o crime ser de natureza cível.

Tanto o Dr. Manuel Almeida, como o Dr. Amílcar Magalhães eram advogados muito respeitados e conceituados em Alcobaça, quando se deu o 25 de Abril.
Além destes, também exercia o Dr. José Bento da Silva, e residualmente o Dr. Amílcar Ramos Ferreira,  Tinham acabado de chegar à comarca e começado a exercer advocacia, Virgílio Ribeiro e Pessanha Gonçalves. Eu vim viver para Alcobaça, a 20 de abril de 1974, acabada a comissão militar na Guiné e  trabalhar com o Dr. Amílcar Magalhães.

O Dr. Manuel de Almeida, ainda exerceu durante alguns anos, recusando-se a seguir alguns novos conceitos e métodos da profissão. Era vulgar ve-lo, ao fim da tarde, à porta do escritório na Praça 25 de Abril, conversando afavelmente com quem passava. Não era frequentador de cafés ou restaurantes e nunca quis ter automóvel ou mesmo carta de condução.
Contava aos colegas mais novos, alguns dos seus casos, sempre “muito complicados” e o daquele advogado de Leiria, licenciado no pós-25 de Abril, que comentava a propósito de um inventário, que o “de cujus”, isto é, o falecido e inventariado, havia deixado cinco “de cujinhos”.
Ele queria dizer, na sua ignorância, que o morto deixou cinco filhos vivos, menores.
O Dr. Amílcar Magalhães (meu sogro), gostava de salientar que “jamais aceitou uma causa em que tivesse de mentir com inteiro conhecimento, pois o juiz e o colega da outra parte descobririam tudo pela sua cara e o cliente acabaria por perder a questão”. Assim, na década de 1960 recusou tomar conta do caso de um indivíduo da Nazaré, ao descobrir que isso seria a ruína de uma viúva, com seis filhos. O caso referia-se a seiscentos contos.
Numa carta ao cliente recusado, o Dr. Magalhães dizia que “não fico com o seu caso, embora pudesse, sem dúvida alguma, ganhá-lo. Há coisas que são legalmente certas, mas moralmente erradas. Quando puder passe pelo meu escritório para lhe explicar melhor”.
O Dr. A. Magalhães deu-lhe depois, um gratuito conselho, que desconheço se foi apreciado, “um homem vivo, capaz e enérgico como o senhor, deveria tentar recuperar os seiscentos contos de outra maneira, sempre civilizada…”

E o caso daquela mulher acusada de ter partido um braço a uma outra, que andava enrolada com o seu marido e se ria quando se cruzavam na rua. O Dr. Magalhães defendia a acusada e, embora fosse muito formal, fleumático e normalmente pouco dado a graçolas, em alegações orais finais perante o juiz Morais não resistiu em salientar a importância da sincera confissão, pois “ela diz sempre a verdade. Ela (a acusada) disse que ia dar uma valente sova aquela filha da mãe e deu mesmo!”
Foi condenada, embora com a pena suspensa.

A notícia caiu como uma bomba nos meios forenses da região, mas nunca foi muito divulgada.
Na Marinha Grande, fizera-se um Auto de Fé na praça pública, pois o Senhor Juiz (comunista assumido, frequentador da sede do PC), mandou queimar os “códigos fascistas”.
Julgamentos de ações de despejo, tinham a intervenção (nem sempre meramente consultiva), de comissões de moradores e de populares. Não que estes atos, fossem verdadeiramente originais, não que não tivessem sido perpetrados noutros tempos e paragens.
Não que houvesse diferença especial entre os pressupostos da esquerda radical portuguesa, da direita nazi-fascista, exceto no facto daquela aplicar esses métodos com a hipocrisia da defesa das virtudes públicas e sociais. Camilo José Cela, escreveu in “Tomas Cerudellar Cavilador” que um juiz deve ser sereno, velho e cético, dado que a justiça não tem por missão consertar o mundo mas, sim, evitar que se deteriore mais, isso basta. Quando um juiz se sente depositário dos valores morais da sociedade, a justiça ressente-se e protesta.

Para além da queima dos “códigos fascistas” na Marinha Grande, noutro tempo e locais, estiveram incluídos na lista de material combustível, livros ou páginas de escritores como Ana Hatherly, José Régio, Urbano Tavares Rodrigues, Hermano Saraiva, Fernanda de Castro, Tomás Ribas, Vitorino Nemésio, Barrilaro Ruas, Esther de Lemos, Calvet de Magalhães e Maria de Lurdes Belchior.
O que formalmente distinguiu quaisquer um dos ditos autos-da-fé portugueses, dos levados a cabo pelos nazis, decorreu que estes, eram feitos, em geral, sem alarido público, mais ou menos às escondidas.
Por sua vez, os nazis assumiam com orgulho e publicitavam os seus autos de fé.

Sottomayor Cardia, num discurso em outubro de 1976, dois anos depois do despacho de Rui Grácio, Secretário de Estado da Educação, que determinava os autos de fé, acusou o ME de ter “à maneira inquisitorial, ordenado a destruição de livros pelo fogo. Há no Ministério prova da realização de autos de fé por determinação oficial.”
Na altura, os jornais na sua censura não ligaram a estas denúncias, porque alinhavam com o politicamente correto, que dominava os meios de comunicação social.
Veja-se Saramago, no Diário de Notícias, que acharia profilática a queima dessa literatura viciosa e, assim, exercia a censura camuflada, sob a capa das boas intenções.



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