quarta-feira, 30 de abril de 2014

JUSTIÇA PORTUGUESA NOS TEMPOS DO PREC. -O CASO ZÉ DIOGO (julgamento popular/condenado o morto!). -DESOCUPAÇÃO EM JULGAMENTO POPULAR (Lisboa/Boa-hora). -JÁ NEM SE RECORDAVAM DA LUA DE MEL. -Tribunal Cívico sobre a Reforma Agrária. -Tribunal Cívico Humberto Delgado. -Tribunal Russel.


JUSTIÇA PORTUGUESA NOS TEMPOS DO PREC.
-O CASO ZÉ DIOGO (julgamento popular/condenado o morto!).
-DESOCUPAÇÃO EM JULGAMENTO POPULAR (Lisboa/Boa-hora).
-JÁ NEM SE RECORDAVAM DA LUA DE MEL.
-Tribunal Cívico sobre a Reforma Agrária.
-Tribunal Cívico Humberto Delgado.
-Tribunal Russel.


Fleming de Oliveira

José Diogo, assalariado rural, foi acusado de ter morto à facada em Castro Verde, Columbano Monteiro, um latifundiário de 78 anos, seu antigo patrão, que o havia despedido e ameaçara.
Em sua defesa, o réu invocou a provocação da vítima e um longo rol de ações prepotentes ao longo do “tempo da outra senhora”.
Depois de peripécias algo rocambolescas que o caso provocou, dada a atenção (política) de que foi objeto, o réu foi julgado e condenado regularmente. De uma das vezes em que o julgamento esteva agendado quando o processo corria no Tribunal de Tomar (os advogados de defesa eram José Augusto Rocha, Amadeu Lopes Sabino e Luís Filipe Sabino e de acusação Proença de Carvalho), o Coletivo presidido pelo Corregedor Soares Caramujo, que lhe havia imposto uma caução de 50.000$00, marcou nova data (adiou) para outubro.
No exterior (na escadaria do edifício), organizou-se um Tribunal Popular, composto por 20 elementos selecionados entre a assistência (operários da cintura industrial de Lisboa e assalariados rurais do sul).
José Diogo (homicida confesso), foi absolvido, apesar de o “tribunal” ter reconhecido que, a ação, sendo um ato de violência individual não podia ser considerada revolucionária, enquanto que a vítima foi “condenada postumamente”, pela “opressão e exploração que exerceu sobre o povo” !
A fiança foi paga por Américo Duarte (o telecomandado deputado da UDP na Assembleia Constituinte, como diz Melo Biscaia e refiro noutro local), e à noite, José Diogo, compareceu num comício do partido no Campo Pequeno, que o vitoriou como herói da revolução proletária.

Este caso é interessante, pois põe em confronto diferentes graus de regulação das formas de direito. Para o direito segundo o Tribunal Popular, isto é a legalidade revolucionária, a ação da vítima e réu, eram eticamente semelhantes.
Se a ação do acusado não era considerada como revolucionária, estava todavia isenta de culpa, como resposta ao comportamento provocatório da vítima.

Em novembro de 1975, no Tribunal da Boa-Hora, estava marcado o julgamento de Maria Rodrigues, acusada de ter ocupado uma casa clandestina, melhor dizendo, um cubículo clandestino pertencente a Viúva Rodrigues & Rodrigues, Ldª.
Perante a decisão do Juiz em realizar o julgamento na Sala de Audiências, as cerca de 400 pessoas que haviam comparecido para demonstrar a sua solidariedade com a acusada, convocaram um Tribunal Popular com Júri, que realizou o julgamento no pátio, e decidiu que “a senhoria era especuladora, exploradora e opressora do povo e, como tal, sua inimiga”.
As denunciantes, eram “fascistas criminosas, inimigas do povo”, pelo que iriam ser levadas a tribunal popular, quando o povo assumisse o poder. A inquilina/ocupante foi absolvida, com o reconhecido direito a permanecer na casa, enquanto precisasse.
Ainda foi decidido criar uma equipa de vigilantes para defender a Maria Rodrigues, do “capital e dos provocadores”.

E o caso do taxista pouco escrupuloso que prestava serviço no aeroporto de Lisboa, e que tentou enganar dois pombinhos que regressavam da lua de mel de Maiorca?
Na viagem de regresso a casa, o taxista teve pouca sorte, porque a recém casada apercebeu-se de que a tarifa que lhes estava a ser cobrada, era imprópria. O caso envolveu a polícia e acabou no tribunal, cerca de dois anos depois, pois que a justiça portuguesa é normalmente lenta, muito lenta.
Menos normal foi o tom dissonante dos depoimentos dos antigos noivos. Não foram rigorosos e nada esclarecedores.
“Não se lembram?”, perguntava o juiz surpreso, “era a vossa lua de mel. Concerteza que se recordam daquele dia!”

Pois é, a vida moderna e a morosidade da justiça têm consequências estranhas.
Os noivos, entretanto, divorciados, tinham varrido das respetivas memórias as recordações que importavam para o caso.

No dia 6 de julho de 1979, pelas 22 horas, iniciou-se na Voz do Operário, em Lisboa, a primeira sessão do “Tribunal Cívico sobre a Reforma Agrária”.
A comissão promotora deste singular tribunal cívico, era integrada por nomes como Rui Luís Gomes, Paulo Quintela, Teixeira Ribeiro, Bernardo Santareno, Ary dos Santos, Carlos Paredes, Carlos do Carmo, Fernando Lopes Graça, João de Freitas Branco, Luís Albuquerque, Rui Polónio de Sampaio, Helena Cidade Moura, Alexandre Cabral, Urbano Tavares Rodrigues, Óscar Lopes, Avelãs Nunes, Mário Murteira, Luís Francisco Rebelo, César Oliveira, Miriam Halpern Pereira, José Gomes Ferreira, António Hespanha, Gomes Canotilho, Boaventura Sousa Santos, Jorge Leite e Xencora Camotim.
O processo, alegadamente, obedeceria aos rituais próprios de um julgamento regular, sendo o tribunal presidido pelo juiz desembargador Aníbal de Castro e contava, na qualidade de juízes, nomes como o historiador Armando de Castro, o escritor Manuel da Fonseca ou os professores universitários Maria Lúcia Lepecki, Orlando de Carvalho e Vital Moreira. Perante uma assistência variada, que integrava trabalhadores rurais alentejanos e convidados estrangeiros, o advogado comunista Fernando Luso Soares desempenhou, com facilidade, o papel de acusador público, sendo ouvidos, como testemunhas, José Saramago, Lino de Carvalho ou Carlos Carvalhas, entre outros.
Feitas as alegações da acusação, o acórdão decidiu “condenar o latifúndio, reconhecer a legitimidade da reforma agrária” e, enfim, “condenar a ofensiva contra a reforma agrária”.

Tudo se passaria ali como se de um julgamento normal se tratasse, não fora a circunstância de só existir uma parte.
O princípio do contraditório não teve lugar. No “Tribunal Cívico sobre a Reforma Agrária”, apenas existiu uma acusação e um acusador, não se prevendo que os réus apresentassem defesa ou sequer comparecessem. Do extenso Rol de Testemunhas, donde constavam muitos funcionários do PC (nenhuma fora chamada para contestar a legitimidade da reforma agrária, criticar alguns excessos, abusos ou referir aspetos menos conseguidos, constrangedores, do processo de ocupações levado a cabo).

À distância de 40 anos, é difícil ajuizar o motivo pelo qual se realizou esta encenação político-judiciária, o que levou pessoas, a oferecerem o prestígio de seus nomes, a um simulacro de processo judicial que não passava de uma manifestação puramente política. Se o desfecho era conhecido à partida, chamar tribunal não passava de uma figura de estilo, duvidosa quanto à forma, inútil quanto aos resultados e, acima de tudo, questionável quanto à ética dos procedimentos.
Por esse tempo, outras organizações levaram a cabo iniciativas semelhantes, como o “Tribunal Cívico Humberto Delgado”, promovido pela Associação dos Ex-Presos Políticos Antifascistas. É certo também que existiram precedentes estrangeiros, com destaque para o “Tribunal Russell”, em Estocolmo, sobre a participação dos EUA no Vietname.
O verdadeiro réu na Voz do Operário, condenado “in absentia”, era com efeito, o processo histórico, para recorrer à fraseologia marxista que esteve presente nas sessões e depoimentos.
Se a incapacidade de reverter o Rumo da História, como diria Sartre, é sintoma de independência, poder-se-á dizer que o Tribunal da Voz do Operário, pese ter ouvido apenas uma das partes, sem se preocupar em assegurar o contraditório, foi mesmo assim, uma instância independente.
Mas de uma independência que resulta tão-só da impotência dos julgadores em alterarem a Marcha da História.



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