RETORNADOS DE ANGOLA.
AFRICANOS DE PELE CLARA.
Fleming de Oliveira
João Ribeiro da Ponte, a residir em Albarraque desde
1975, é um um poeta (de textos na gaveta da secretária, incapaz de publicitar).
Falando de Angola e
“sua” Luanda, aonde viveu muitos anos (os melhores da vida como me diz),
emociona-se ao dizer que ter saudade é dizer pouco, “quando se recorda de um quinhão de vida espraiado por imensas paragens,
de sol e mar, como que prometendo a eternidade sobre a face da terra”.
Afirma, com a sabedoria e segurança dos seus muitos anos que “quem não conhece África, não pode imaginar
a que me refiro”.
Nascido em Oeiras, a 13 de outubro de 1930, José da
Ponte tinha cerca de 20 anos quando acabou o curso comercial e, pouco depois,
partiu para Angola. E foi esta a terra que lhe deu a conhecer a esposa, Maria
da Conceição, a quem dedicou mais de 50 anos de vida.
Na década de 1950, José da Ponte observava os passeios
de uma bonita rapariga, num jardim de Luanda e, um dia, enchendo-se de coragem,
abordou-a e, gaguejando, pediu-lhe namoro.
Resultado?
Em 1958, casaram e seguiram-se mais de 50 anos de uma
vida de partilha, sendo que, ao longo de muitos anos trabalharam até 1975 no
mesmo local, o Banco de Angola.
Nessas mais de duas décadas, fizeram amigos, tiveram
duas filhas e viveram um tempo feliz. Então podiam dizer que tanto a vida era
boa, quanto bom era viver.
José da Ponte, não
esquece o Jorge, servente de limpeza que falava mal português, aprendeu ao
mesmo tempo a ler, com vinte anos e ele com sete, e por isso chegou a contínuo,
no Banco de Angola, um africano que
queria ser “assimilado”.
No fim da tarde,
depois do serviço no Banco, o Jorge tomava um duche e ia apanhar o maximbombo,
para voltar para casa, no musseque. Vestia, com capricho, um fato que lhe fora
oferecido e seguia pela rua fora, de livros debaixo do braço, de óculos e uma
caneta à mostra no bolso de cima do casaco.
José da Ponte lembra-se de, por vezes, o ouvir cantarolar,
uma letra que vinha no livro da primeira classe.
Mas há muitas mais
coisas interessantes a registar, pois não, José da Ponte?
Nos seus seis ou
sete anos de idade, quando aprendeu a ler, o Jorge não foi o seu único colega.
Uma outra empregada, a Bela, uma jovem de uns vinte e cinco anos, vinda de
Moledo, que era quase tão analfabeta como o Jorge também andava a estudar pelo livro da
primeira classe. Mas ela, por ser branca, ganhava mais do que o Jorge. Ambos
trataram de si, ambos lhe pegaram ao colo e ambos, são afinal, seus
compatriotas.
Já que me refero à
língua dos pretos (como a que o Jorge
falava melhor), parece-me interessante registar que Maria Kandimba era
das canções mais antigas, ouvidas na rádio em Luanda.
Tocava no rádio da
cozinha da casa, e José da Ponte lembra-se de “Ó Tempo Volta P´ra Trás”! (António Mourão) e “E Que Tudo o Mais Vá p´ró Inferno”,
(Roberto Carlos).
Maria Kandimba,
assim como outras canções de autores angolanos, só começou a tocar na Emissora
Nacional de Angola, entre 1967/1968. Antes, era proibido passar “música de pretos”, pois apenas eram
tolerados os “Ngola Ritmos” e o “Ouro Negro”, agrupamentos considerados
mulatos.
Cantores que
cantavam em kimbundu (alguns vindos do
musseque), só chegaram à rádio por essa altura ou mais tarde, por influência de
um jornalista português que conseguiu que o governo provincial/colonial
autorizasse a passar a música, por recear que os angolanos ouvissem a rádio
clandestina, que a UPA/FNLA e o MPLA, emitiam a partir do Zaire.
Uma das filhas de José da Ponte, Amélia, recorda quando ao domingo a
mãe, Maria da Conceição, preparava uma caixa térmica cheia de sanduíches e
bebidas “e a gente passava o dia inteiro
na Ilha, no Mussulo ou no Morro dos Veados. Porque só ali”, interrompe o poeta José da Ponte, “sob a sombra da palma da mão aberta em toldo, com o oceano atrás do
ângulo de visão e, em frente dos olhos, o areal frondoso a perder de vista, é
que é possível imaginar como o mundo é grande. Só ali, abrindo os braços ao
vento e correndo até ao limite do cansaço, se pode assegurar, sem desmentido
possível, que Deus criou a terra com generosidade e uma imaginação tão grandes
que nunca, nunca mesmo, alguém poderá merecê-la”.
Amélia também lembra as balas tracejantes que, em 1975,
cruzavam os céus de Luanda e que de noite lhe pareciam muito bonitas e de
chorar quando atravessou a cidade a fugir, aninhada à mãe, no jeep.
E da bicicleta que teve de deixar para trás? “Meu Deus, o quanto chorei por saber que não
a poderia trazer comigo no avião…”
Dizer saudade é, portanto, pouco para José da Ponte, e
sem receio de ser tido por velho lamechas, “só
quem nunca viu esta terra pode ter desistido desse sentimento que resta, comum
a todos os que viram a transição do seu próprio mundo”.
A família de Laura Benevides, estava há três gerações em
Angola.
Não tinha interesses, salvo algum dinheiro, parentes ou
amigos em
Portugal. Sentia-se bem naquela terra. Era a sua, não tinha
nem queria outra.
No ano de 1973, Laura com dez anos entrou para o liceu
D. Guiomar de Lencastre (vulgo liceu feminino), estabelecimento que se
orgulhava da educação que proporcionara a jovens e futuras mulheres durante
duas décadas (fora criado em 1954).
Em 1973, no liceu já se podiam usar as batas curtinhas,
e as suas eram tão curtas, que “minha mãe
mandava fazer uns calções, para estar em condições quando fosse chamada ao
quadro ou estivesse no recreio”.
Mas Laura calcula que era a mãe que não gostava de a ver
de bata pelos joelhos, apesar das suas perninhas, se parecerem como dois
pauzinhos de vassoura.
Em 1974, começaram os confrontos em Luanda e o liceu,
que devia ser um espaço de formação e estudo, transformou-se em acampamento de
desalojados e feridos.
Foi o tempo de alguns amigos começarem a partir
(bruscamente) para Portugal. De fugas, perdas e lutos. Mas para outros, em
contrapartida, de sonhos, alegrias, esperanças e celebrações de vida.
Misturaram-se prazeres e dores, nascimentos e despedidas, despiram-se as vestes
da ingenuidade trazida da infância e das ilusões exponencialmente romanceadas
pelo sonho vivido quente e intensamente. Os que ficaram tiveram de ajudar no
que fosse preciso. E era muito.
Laura, continuava a ir todos os dias ao liceu, sempre
que possível levada pelo pai, apesar dos tiros e do risco que isso comportava.
Não queria faltar.
Em junho de 1975, o liceu abriu portas para servir de
abrigo a quem vinha fugido da guerra.
Nas salas de aulas, passaram a escutar-se gemidos,
outras línguas e viram-se panos de todas as cores. Na cerca, nos jardins
interiores, na Sala de Lavores e até perto do tanque onde se podia espreitar os
jacarés, ao pé da sala de Canto Coral, cuidava-se de pessoas. E procurava-se
cuidar por inteiro, apesar de faltar tudo.
Dividir tarefas era a operação principal e mais difícil.
Era preciso dividir espaços, horas, até pensamentos e os pouquíssimos alimentos
disponíveis. Dividir sem apenas subtrair, fazendo os restos virar ganhos. Nos
muitos nadas que enchiam os bolsos, era sempre possível descobrir-se alguma
coisa mais e partir para novas operações.
Com 12 anos, Laura foi encaminhada para ajudar numa
enfermaria.
Um dia, puseram-lhe um frasco de álcool numa mão e um
rolo de gaze com uma tesoura na outra. Enquanto, o enfermeiro limpava a ferida
de uma mulher, com ar desesperado e olhos vítreos, ia-lhe dizendo para por
álcool no algodão “enquanto vou ver se
encontro a bala nas costas”.
Laura sentiu, nesse momento, que não aguentava, (podia
desmaiar a todo o tempo), pelo que pediu que a colocassem noutro lugar e,
assim, foi parar à cozinha, a descascar batatas.
Mas como era uma menina-família, branca e sem prática,
os encarregados não ficaram satisfeitos com o trabalho, pelo que foi
recambiada, dessa vez, para a secção das crianças.
Levava-as para a cantina e, depois de comerem, brincavam
e cantavam, faziam jogos até adormecerem, entretendo-as para não pensarem nas
mães ou pais feridos, estropiados, mortos ou desaparecidos.
Em tão pouco tempo, viu o que os seus pais sempre a
haviam poupado. Mas mesmo assim não queria ou não podia vir embora.
No caso afirmativo, para onde?
No largo em frente ao liceu, já não paravam os carros
dos papás e as motos dos rapazes a ver o
“santo sacrifício da saída”, mas ainda havia quitandeiras a vender mangas,
abacaxi, abacates, micates e vendedores ambulantes. Os ardinas deixaram de
passar.
Quem iria comprar jornal?
No liceu, com os seus 12 anos a amadurecer rapidamente,
Laura aprendeu que a vida pode mudar rapidamente de cenário.
Mais um ano decorrido, ao sábado passou a haver
campanhas de limpeza, onde todos participavam. Não, não era obrigatório, mas
Laura e outros rapazes e raparigas, brancos havia cada vez menos, gostavam da
função e acreditavam que o país precisava que se arregaçasse as mangas.
O ambiente era definitivamente diferente. Tão diferente
dos tempos em que menina pequena ia com o pai ou a mãe de ou para as aulas.
Parecia ter passado tanto tempo...
Morava perto do liceu. Por isso, tendo vindo para
Portugal em 1980 para continuar os estudos, ainda assistiu à sua morte, lenta
por degradação. Depois da “dipanda”, o Guiomar de Lencastre deu
lugar ao Nzinga Mbandi.
Hoje, nas suas instalações recuperadas em 2000,
partilham-se outros saberes, falam-se de outros reis e rainhas. Laura
Benevides, já voltou a Luanda duas vezes, mas vive em Lisboa, onde é professora de história, no ensino
secundário onde ensina os reis e rainhas de Portugal.
Sem comentários:
Enviar um comentário