quarta-feira, 30 de abril de 2014

RETORNADOS DE ANGOLA. AFRICANOS DE PELE CLARA.

 


RETORNADOS DE ANGOLA.
AFRICANOS DE PELE CLARA.

Fleming de Oliveira



João Ribeiro da Ponte, a residir em Albarraque desde 1975, é um um poeta (de textos na gaveta da secretária, incapaz de publicitar).
Falando de Angola e “sua” Luanda, aonde viveu muitos anos (os melhores da vida como me diz), emociona-se ao dizer que ter saudade é dizer pouco, “quando se recorda de um quinhão de vida espraiado por imensas paragens, de sol e mar, como que prometendo a eternidade sobre a face da terra”. Afirma, com a sabedoria e segurança dos seus muitos anos que “quem não conhece África, não pode imaginar a que me refiro”.

Nascido em Oeiras, a 13 de outubro de 1930, José da Ponte tinha cerca de 20 anos quando acabou o curso comercial e, pouco depois, partiu para Angola. E foi esta a terra que lhe deu a conhecer a esposa, Maria da Conceição, a quem dedicou mais de 50 anos de vida.
Na década de 1950, José da Ponte observava os passeios de uma bonita rapariga, num jardim de Luanda e, um dia, enchendo-se de coragem, abordou-a e, gaguejando, pediu-lhe namoro.
Resultado?
Em 1958, casaram e seguiram-se mais de 50 anos de uma vida de partilha, sendo que, ao longo de muitos anos trabalharam até 1975 no mesmo local, o Banco de Angola.
Nessas mais de duas décadas, fizeram amigos, tiveram duas filhas e viveram um tempo feliz. Então podiam dizer que tanto a vida era boa, quanto bom era viver.

José da Ponte, não esquece o Jorge, servente de limpeza que falava mal português, aprendeu ao mesmo tempo a ler, com vinte anos e ele com sete, e por isso chegou a contínuo, no Banco de Angola, um africano  que queria ser “assimilado”.
No fim da tarde, depois do serviço no Banco, o Jorge tomava um duche e ia apanhar o maximbombo, para voltar para casa, no musseque. Vestia, com capricho, um fato que lhe fora oferecido e seguia pela rua fora, de livros debaixo do braço, de óculos e uma caneta à mostra no bolso de cima do casaco.
José da Ponte  lembra-se de, por vezes, o ouvir cantarolar, uma letra que vinha no livro da primeira classe.

Mas há muitas mais coisas interessantes a registar, pois não, José da Ponte?
Nos seus seis ou sete anos de idade, quando aprendeu a ler, o Jorge não foi o seu único colega. Uma outra empregada, a Bela, uma jovem de uns vinte e cinco anos, vinda de Moledo, que era quase tão analfabeta como o Jorge  também andava a estudar pelo livro da primeira classe. Mas ela, por ser branca, ganhava mais do que o Jorge. Ambos trataram de si, ambos lhe pegaram ao colo e ambos, são afinal, seus compatriotas.
Já que me refero à língua dos pretos (como a que o Jorge  falava melhor), parece-me interessante registar que Maria Kandimba era das canções mais antigas, ouvidas na rádio em Luanda.
Tocava no rádio da cozinha da casa, e José da Ponte lembra-se de “Ó Tempo Volta P´ra Trás”! (António Mourão) e “E Que Tudo o Mais Vá p´ró Inferno”,  (Roberto Carlos).
Maria Kandimba, assim como outras canções de autores angolanos, só começou a tocar na Emissora Nacional de Angola, entre 1967/1968. Antes, era proibido passar “música de pretos”, pois apenas eram tolerados os “Ngola Ritmos” e o “Ouro Negro”, agrupamentos considerados mulatos.
Cantores que cantavam em kimbundu (alguns  vindos do musseque), só chegaram à rádio por essa altura ou mais tarde, por influência de um jornalista português que conseguiu que o governo provincial/colonial autorizasse a passar a música, por recear que os angolanos ouvissem a rádio clandestina, que a UPA/FNLA e o MPLA, emitiam a partir do Zaire.

Uma das filhas de José da Ponte, Amélia, recorda quando ao domingo a mãe, Maria da Conceição, preparava uma caixa térmica cheia de sanduíches e bebidas “e a gente passava o dia inteiro na Ilha, no Mussulo ou no Morro dos Veados. Porque só ali”, interrompe o poeta José da Ponte, “sob a sombra da palma da mão aberta em toldo, com o oceano atrás do ângulo de visão e, em frente dos olhos, o areal frondoso a perder de vista, é que é possível imaginar como o mundo é grande. Só ali, abrindo os braços ao vento e correndo até ao limite do cansaço, se pode assegurar, sem desmentido possível, que Deus criou a terra com generosidade e uma imaginação tão grandes que nunca, nunca mesmo, alguém poderá merecê-la”.

Amélia também lembra as balas tracejantes que, em 1975, cruzavam os céus de Luanda e que de noite lhe pareciam muito bonitas e de chorar quando atravessou a cidade a fugir, aninhada à mãe, no jeep.
E da bicicleta que teve de deixar para trás? “Meu Deus, o quanto chorei por saber que não a poderia trazer comigo no avião…”
Dizer saudade é, portanto, pouco para José da Ponte, e sem receio de ser tido por velho lamechas, “só quem nunca viu esta terra pode ter desistido desse sentimento que resta, comum a todos os que viram a transição do seu próprio mundo”.

A família de Laura Benevides, estava há três gerações em Angola.
Não tinha interesses, salvo algum dinheiro, parentes ou amigos em Portugal. Sentia-se bem naquela terra. Era a sua, não tinha nem queria outra.
No ano de 1973, Laura com dez anos entrou para o liceu D. Guiomar de Lencastre (vulgo liceu feminino), estabelecimento que se orgulhava da educação que proporcionara a jovens e futuras mulheres durante duas décadas (fora criado em 1954).
Em 1973, no liceu já se podiam usar as batas curtinhas, e as suas eram tão curtas, que “minha mãe mandava fazer uns calções, para estar em condições quando fosse chamada ao quadro ou estivesse no recreio”.
Mas Laura calcula que era a mãe que não gostava de a ver de bata pelos joelhos, apesar das suas perninhas, se parecerem como dois pauzinhos de vassoura.

Em 1974, começaram os confrontos em Luanda e o liceu, que devia ser um espaço de formação e estudo, transformou-se em acampamento de desalojados e feridos.
Foi o tempo de alguns amigos começarem a partir (bruscamente) para Portugal. De fugas, perdas e lutos. Mas para outros, em contrapartida, de sonhos, alegrias, esperanças e celebrações de vida. Misturaram-se prazeres e dores, nascimentos e despedidas, despiram-se as vestes da ingenuidade trazida da infância e das ilusões exponencialmente romanceadas pelo sonho vivido quente e intensamente. Os que ficaram tiveram de ajudar no que fosse preciso. E era muito.
Laura, continuava a ir todos os dias ao liceu, sempre que possível levada pelo pai, apesar dos tiros e do risco que isso comportava.
Não queria faltar.

Em junho de 1975, o liceu abriu portas para servir de abrigo a quem vinha fugido da guerra.
Nas salas de aulas, passaram a escutar-se gemidos, outras línguas e viram-se panos de todas as cores. Na cerca, nos jardins interiores, na Sala de Lavores e até perto do tanque onde se podia espreitar os jacarés, ao pé da sala de Canto Coral, cuidava-se de pessoas. E procurava-se cuidar por inteiro, apesar de faltar tudo.
Dividir tarefas era a operação principal e mais difícil. Era preciso dividir espaços, horas, até pensamentos e os pouquíssimos alimentos disponíveis. Dividir sem apenas subtrair, fazendo os restos virar ganhos. Nos muitos nadas que enchiam os bolsos, era sempre possível descobrir-se alguma coisa mais e partir para novas operações.

Com 12 anos, Laura foi encaminhada para ajudar numa enfermaria.
Um dia, puseram-lhe um frasco de álcool numa mão e um rolo de gaze com uma tesoura na outra. Enquanto, o enfermeiro limpava a ferida de uma mulher, com ar desesperado e olhos vítreos, ia-lhe dizendo para por álcool no algodão “enquanto vou ver se encontro a bala nas costas”.
Laura sentiu, nesse momento, que não aguentava, (podia desmaiar a todo o tempo), pelo que pediu que a colocassem noutro lugar e, assim, foi parar à cozinha, a descascar batatas.
Mas como era uma menina-família, branca e sem prática, os encarregados não ficaram satisfeitos com o trabalho, pelo que foi recambiada, dessa vez, para a secção das crianças.
Levava-as para a cantina e, depois de comerem, brincavam e cantavam, faziam jogos até adormecerem, entretendo-as para não pensarem nas mães ou pais feridos, estropiados, mortos ou desaparecidos.
Em tão pouco tempo, viu o que os seus pais sempre a haviam poupado. Mas mesmo assim não queria ou não podia vir embora.
No caso afirmativo, para onde?
No largo em frente ao liceu, já não paravam os carros dos papás e as motos dos rapazes a ver o “santo sacrifício da saída”, mas ainda havia quitandeiras a vender mangas, abacaxi, abacates, micates e vendedores ambulantes. Os ardinas deixaram de passar.
Quem iria comprar jornal?

No liceu, com os seus 12 anos a amadurecer rapidamente, Laura aprendeu que a vida pode mudar rapidamente de cenário.
Mais um ano decorrido, ao sábado passou a haver campanhas de limpeza, onde todos participavam. Não, não era obrigatório, mas Laura e outros rapazes e raparigas, brancos havia cada vez menos, gostavam da função e acreditavam que o país precisava que se arregaçasse as mangas.
O ambiente era definitivamente diferente. Tão diferente dos tempos em que menina pequena ia com o pai ou a mãe de ou para as aulas. Parecia ter passado tanto tempo...
Morava perto do liceu. Por isso, tendo vindo para Portugal em 1980 para continuar os estudos, ainda assistiu à sua morte, lenta por degradação. Depois da “dipanda”, o Guiomar de Lencastre deu lugar ao Nzinga Mbandi.

Hoje, nas suas instalações recuperadas em 2000, partilham-se outros saberes, falam-se de outros reis e rainhas. Laura Benevides, já voltou a Luanda duas vezes, mas vive em Lisboa, onde é professora de história, no ensino secundário onde ensina os reis e rainhas de Portugal.


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