A CENSURA PREVENTIVA E REPRESSIVA.
UM CASO DE MÁRIO SOARES (Portugal antes do 25 de abril)
Fleming de Oliveira
Em muitos países, a censura ao texto impresso (no
referente aos livros), era feita após a publicação, de acordo com o princípio
segundo o qual o cidadão deve assumir a responsabilidade dos seus atos. Nesses
casos, a censura chama-se punitiva ou repressiva.
Do ponto de vista da forma como é exercida, a censura
pode ser preventiva, repressiva e indireta, embora esta seja a mais difícil de
contrariar, dada a sua forma normalmente subliminar.
Censura prévia ou preventiva, é o direito a que se
arroga um governo de exercer vigilância fora da ação dos tribunais sobre a
publicação de livros ou periódicos, a encenação de peças teatrais ou outras
manifestações de inteligência.
Estudos sociológicos, já tentaram demonstrar que o maior
rigor da censura, do ponto de vista da moral sexual, coincide com a ascensão
política da classe média, no pressuposto que essa supremacia só se consegue e
mantém pelo trabalho e hábitos morigerados, virtudes que seriam abaladas pelo
relaxamento sexual.
Já a alta burguesia e a aristocracia parecem não dar a
mesma importância a esse aspeto. Veja-se o caso paradigmático do Reino Unido.
A Grécia Antiga, foi a primeira sociedade a elaborar uma
ética de justificação para a censura, com base no princípio de que o governo da
polis (Cidade-Estado), constituía a boa expressão dos desejos dos cidadãos e
que, portanto, podia reprimir todo o que os tentasse contestar.
Na sociedade ateniense, alguns delitos de opinião podiam
ser punidos com a pena de morte, como aconteceu com Sócrates, obrigado a beber
cicuta após ser condenado por irreligiosidade e corrupção de jovens.
O respeito a alguns princípios de ordem, era tão
arreigado na sociedade de Atenas, que mesmo Platão (discípulo de Sócrates),
defendia a censura, como um dos requisitos essenciais ao governo.
Durante o período medieval, as autoridades eclesiásticas
impuseram uma rígida conceção do mundo secular e do Além, com base em
princípios que se queriam eternos e imutáveis.
O Tribunal do Santo Ofício exerceu uma censura de
carácter moral, político e religioso, sendo os acusados sujeitos a torturas,
tão violentas como os ordálios, longos períodos de prisão, morte na forca ou
fogueira.
Depois da Reforma, o clima geral de intransigência
religiosa, tanto nos países católicos, como nos protestantes, deu ensejo a mais
práticas repressivas.
A Igreja Católica Romana publicou, durante o Concílio de
Trento, uma relação de obras cuja leitura era proibida aos fiéis, salvo alguns
velhos e de alta confiança, o Index Librorum Prohibitorum.
Nos países protestantes, as proibições não se limitavam
aos livros católico-romanos, mas também aos de outras igrejas reformadas.
No mundo moderno, alguns fatores acarretaram
modificações no conceito de censura.
Tal processo foi fruto de um longo trabalho de educação,
de evolução, que permitiu atingir um espírito crítico mais refinado.
A disseminação de obras, desde as artísticas às de
informação, como as enciclopédias e jornais, diminuiu o grau de desinformação e minimizou
superstições como preconceitos ancestrais e acríticos.
Mesmo assim, o século XX assistiu ao nascimento e derrota
de regimes autoritários (de direita ou de esquerda), onde a censura teve uma atuação
doentia, dado o rigor ou a falta com que foi exercida, bem como pela virulência de seus princípios.
Ocorreu com o governo nazi na Alemanha, na Itália fascista, na Espanha
franquista, no Portugal salazarista, bem como na URSS e satélites.
Em nome do socialismo, a URSS e os países do bloco
socialista, como ainda hoje Cuba, China, Coreia do Norte ou Birmânia e outros
países (Irão), adotaram e adotam uma censura tão rigorosa, intolerante e
obscurantista, quanto a do Fascismo, Nazismo ou Santo Ofício.
O movimento pelos direitos civis, nascido nos Estados
Unidos e disseminado pelo mundo nomeadamente com Martin Lutter King, trouxe uma
mudança radical de padrões e valores, que muito contribuiu para o desfavor da
censura e o fortalecimento da democracia liberal.
É
curioso, na minha opinião, invocar um depoimento de Mário Soares, que não
obstante todo o seu indiscutível mérito de Pai
da Democracia, não estará isento de críticas sobre censura que exerceu sobre a comunicação social, enquanto no poder.
A censura durante o período da ditadura,
1926-1974, representou, com altos e baixos, conforme as épocas, de maior ou
menos dura repressão, o regime do puro arbítrio: polícia intelectual, e do
pensamento, mais ou menos cega, sem qualquer subtileza e pouco critério.
A censura exercia-se, antes do mais,
digamos, preventivamente, porque os publicistas e os escritores, sentiam-na
omnipresente sobre as suas próprias cabeças, inibindo-se de escrever sobre
temas que sabiam que suscitavam, necessariamente, o lápis azul da censura.
No entanto, não houve escritor que se
prezasse, que não tivesse um ou vários livros apreendidos, proibidos ou
mutilados pela censura. Sendo um escritor circunstancial, sem nunca ter
abordado temas de ficção, senti o peso directo da censura sobre apenas dois livros:
Escritos Políticos, editado clandestinamente pelo corajoso director do Jornal
do Fundão António Paulouro, como edição do autor, em 1969, no tempo da chamada
primavera caetanista. Apesar disso, foi apreendido pela censura e teve quatro
edições, sucessivas, as duas últimas com a chancela da Editorial Inquérito do
saudoso Eduardo Salgueiro. O outro, O Portugal amordaçado, só pôde ser
publicado em português depois do 25 de Abril. Foi editado em 1972 em francês Le
Portugal Baillonné-témoignage, pela Calman-Levy, graças ao enorme empenho do
meu amigo Alain Oulman, então gerente da editora que pertencia a um seu tio.
Foi depois traduzido em inglês, italiano, espanhol, alemão e, já depois de
1974, em grego e chinês. Outro que intitulei Escritos do Exílio foi publicado
pela Livraria Bertrand, mas só em 1975, tendo em parte sido publicado, nos anos
finais da ditadura, no Brasil, intitulado Caminho Difícil, do Salazarismo ao
Caetanismo. Portanto, a censura que se exerceu contra mim foi pouca coisa, em
matéria de livros.
Mas na imprensa, onde tentava furar,
aproveitando as curtíssimas frinchas da chamada liberdade suficiente, foi
terrível.
Tive inúmeros artigos cortados e nunca me
foi possível ter acesso à Rádio nem à Televisão. Escrevi muito em jornais e
revistas estrangeiras, com o meu nome e com pseudónimo. Dei inúmeras
entrevistas e conferências de imprensa na América, no Brasil, em França e no
Reino Unido. Mas a primeira vez que apareci na Televisão portuguesa, foi já
depois do 25 de Abril. Nos últimos anos do exílio, em França, inventei um
pseudónimo com que subscrevi vários artigos para o Jornal República: Claim
d'Estaing, que obviamente se lia como a tradução de clandestino. A censura
deixou-os passar. Nunca percebeu que Claim é um nome que não existe em França e
como tinha d'Estaing talvez tenha pensado ser algum primo de Valery Giscard
d'Estaing, então Presidente da República Francesa...
A censura constituiu
uma arma de excelência de Salazar e Caetano, para abafar, se possível à
nascença, qualquer veleidade de contestação ou denúncia sérias. O que se sabe,
comprova que a censura, o Exame Prévio concretamente, foi um dos elos fortes do
regime, que assentava num aparelho repressivo vasto e tentacular com o
S.P.N./S.N.I., a L.P., a M.P. (Masculina e Feminina), a Obra das Mães para
Educação Nacional, o O.M.E.N., (ligada à MPF e cujo objetivo consistia em
preparar as gerações femininas para os seus deveres maternais, domésticos e
sociais, promover a habilitação das mães para a educação familiar e para o
embelezamento da vida rural, desenvolver o gosto nos filhos pelos trabalhos
domésticos, contribuir para a educação nacionalista da juventude), a F.N.A.T.,
o Conselho Permanente da Ação Escolar e principalmente a P.I.D.E./DGS.
Contrariamente
ao que ainda é quase voz corrente, a censura não se limitou a amordaçar a
literatura, a imprensa escrita. Ela esteve presente no teatro, no cinema, na televisão,
na rádio, nas artes plásticas. Em suma, a censura para além de tentar abafar a
contestação popular, visou moldar o pensamento dos portugueses em conformidade
com os valores e interesses do Regime, com o pretexto do Bem Comum.
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE
SALAZAR, CAETANO E OUTROS
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