AS MELHORES MISTURADAS SÃO AS DOS MONTES.
COMIDA DE POBRE?
Fleming de Oliveira
Dizia-se
(diz-se?) que as melhores misturadas são as dos Montes, feitas com feijão de
sopa, semeado em março nas serradas (chão de hortas ou terrenos de sequeiro),
colhido no início do verão e que exalavam um aroma divinal, que vinha da
cozinha e chegava até à rua.
Em
casa de Joaquim Pereira de Magalhães, de acordo com uma prática que chegou até
hoje, punham-se os feijões dentro de um alguidar com água fria, durante cerca
de duas horas, para amolecer a casca, a fim de facilitar a cozedura. Depois de
demolhados levavam-se a uma caçarola,
para cozer lentamente em água temperada com sal e azeite. Estando o feijão
cozido, reduzia-se o puré a cerca de metade, juntando-lhe água, se necessário,
tendo em atenção que o puré devia ficar grosso. Levantada a fervura,
misturavam-se as couves, previamente cortadas aos bocadinhos e retificava-se o
sal e o azeite. Devia deixar-se cozer bem as couves e pronto, siga para a mesa que já é tarde.
Inácio
Catarino, conta que as mulheres disputavam entre si os respetivos méritos na
arte das misturadas e nos casos em que se deitava pouco azeite (por uma questão
de economia), os que passavam na rua, bem o percebiam e diziam jocosa e
depreciativamente que cheirava a raposas.
As
misturadas era um bom combustível para
aguentar o trabalho do dia-a-dia do campo. Com as misturadas, no dia seguinte
ou mesmo dois dias depois, faziam-se as papas, um prato suculento e forte, com
farinha de milho, cozendo-se as couves, a batata e o feijão que, depois, se
acompanhavam com sardinha ou bacalhau.
TI Zé
das Tojeiras costumava dizer que pobre come arroz, batata, vegetais,
bacalhau, carne de porco e doce uma vez por outra. Resultado, se não morrer
empanzinado, cresce com uma saúde de fera. Já o rico come um monte de coisinhas
delicadas. O filho de rico, o citadino de Alcobaça, é criado longe do pó da
terra, longe dos mosquitos e da lama. É criado a comer apenas papinha fina. Ser
pobre, portanto, é melhor para a saúde….
Um
rico se passasse a comer por sistema essas delicadezas,
ficaria doente, pois tornou-se alérgico às comidas normais. Não é raro encontrar um rural que jamais foi ao um médico.
Já os ricos, não saem dos consultórios.
Deolinda,
a viúva de Ti Zé, corta ao meio o pão tipo caseiro, retirado de um saco de
pano. As metades são colocadas junto do lume para torrar devagarinho e à medida
que as postas altas e brancas de bacalhau vão a assar. O cheiro a bacalhau
espalha-se pela cozinha. António o sobrinho, oferece-se para ir a casa buscar
azeite. É do bom. É caseiro. É melhor que
o do supermercado.
Meia
hora depois, e após ser virado várias vezes, o bacalhau está no ponto. O pão é
regado com muito azeite. Não tem nada a
ver com outra coisa. É muito melhor, confessa um conviva.
Deolinda
lembra o tempo em que este prato de bacalhau assado era comida de pobre.
Como o pão untado em azeite enche muito,
dava para o pessoal aguentar muitas horas sem comer. Hoje é caro e
não se pode comprar.
Lurdes
Domiciano, que sempre viveu na aldeia, lá para os lados da Ataíja, tem uma tese
interessante sobre os méritos da sopa e a comida tradicional portuguesa de que
é indefetível adepta.
Sopa é comida de pobre?
Comida de pobres e
dos que recordam a pobreza? Não, se é que
nunca, nunca, deixa de o ser, diz a D. Lurdes, que acrescenta, mal de quem sendo pobre ou remediado renega
a sopa a pensar que passa por rico.
Enfim, mal dos que
deixaram a sopa para tentar apagar as marcas de um passado modesto ou de
privações.
D. Lurdes reconhece
quanto é valiosa, tal como os filhos que vivem no Luxemburgo. A sopa deve ser
comida de rico, de urbano apressado, de remediado, de rural, de trabalhador
braçal e ou mesmo de ocioso. É boa para meninos, adultos e idosos.
A sopa pertence à
tradição portuguesa porque sempre foi, e não deixa de ser, boa para a saúde.
Por isso se desenvolveu o gosto pela sopa, o prazer em a saborear, cheirar,
olhar. É honrada por vários mitos, estórias
e contos. Há séculos e séculos que a sopa é um dos maiores monumentos
alimentares da cultura mediterrânica e portuguesa.
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE
SALAZAR, CAETANO E OUTROS
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