DOIS
SAPATEIROS ANTIGOS
Fleming
de Oliveira
De
entre coisas que pertencem às memórias de infância de Manuel João, da Vestiaria,
ficaram-lhe as tardes que passou na oficina de Chico Sapateiro. Não, não era este o seu nome de batismo. Sapateiro, como era conhecido, vinha tão
só de ser sapateiro, embora nas horas
vagas, fosse agricultor.
Era
naquele mundo de sapatos à espera de nova alma, de colas de aromas estranhos,
martelos, torqueses, sovelas e ferramentas, que nunca percebeu bem o que eram ou
para que serviam, entre pregos de variados tamanhos, atacadores, que Manuel
João passava algumas das suas tardes, sem escola.
Entre
os hábitos de Chico Sapateiro, Manuel
João recorda alguns que lhe pareceram estranhos, o de pentear o cabelo ralo com
água, sabão e um pente a que faltavam alguns dentes, e o benzer-se, com uma
pequena vénia, diante de uma imagem que dizia ser a de S. Sebastião, padroeiro
dos sapateiros, situada numa prateleira, cheia de tralha.
O
tempo passou, com ele a infância, a adolescência e depois a juventude, até que
chegou o tempo de adulto de Manuel João, que acabou por fazer a vida em Lisboa,
até regressar, reformado, a Vestiaria. A Chico Sapateiro perdeu o rumo, ou do que lhe tinha sucedido, embora
saiba que faleceu há bastantes anos, sem deixar sucessores no seu mister.
Por
sua vez, Ti’ António Sousinha, conserva os segredos do ofício de sapateiro.
As
formas, suspensas na parede por pregos, reportam-se uma atividade, também
suspensa. A arte que herdou do pai, e
que lhe garantiu o sustento durante anos, conhece agora tempos difíceis,
insuperáveis. Ainda assim, este sapateiro ao abrir a porta da sua pequena
oficina, onde quase já só vende sapatos de S. João da Madeira ou da Benedita, a
par das suas memórias, lembra as encomendas que se sucediam, os dias cheios de
serviço e o processo manual de fabrico de um par de sapatos ou botas que lhe
tomavam um dia inteiro. Hoje, a produção nas fábricas de calçado, satisfaz a
procura, e faz perigar, se não extinguir, este ofício de raros mestres e já sem
aprendizes.
NOTA-cfr. o nosso, NO TEMPO DE
SALAZAR, CAETANO E OUTROS
Sem comentários:
Enviar um comentário